Teologia, antropologia e psicanálise. Desafios para o cristianismo, hoje. Entrevista com Jean-Daniel Causse
A onipotência de um Deus
Todo-poderoso alimenta a angústia e a culpa, adverte Jean-Daniel Causse, pois
este é associado a um déspota.
Nossa época tem ódio ao corpo e à encarnação
porque "a falta nos é insuportável”, constata o psicanalista.
"Exegese e psicanálise
correspondem a dois métodos distintos; suas perspectivas ou projetos não são os
mesmos, seus léxicos são específicos, etc. Portanto, só há diálogo e
articulação se as singularidades forem respeitadas”, disse Jean-Daniel Causse na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ele,
seu interesse e de Elian Cuvillier em escrever: Traversée du christianisme.
Exégèse, anthropologie, psychanalyse (Montrouge: Bayard, 2013) foi, ao revisar
os grandes temas do cristianismo, "compreender que figuras do humano são
elaboradas. Se preferirmos usar o singular: qual sujeito é construído pelo
cristianismo?”
E acrescenta: "Um Deus que
não é autofundado, ou causa dele mesmo, é o que permeia o pensamento de
Agostinho. Na verdade, o que ele diz em dado momento é que o Pai não é Pai sem
que haja o Filho. Só existe Pai porque existe o Filho. Não há Pai em si, nele mesmo.
É o Filho que faz do Pai um pai. E, inversamente, o Filho não é Filho sem o
Pai”.
Jean-Daniel Causse é psicanalista
pela Universidade Paul Valéry, Montpellier III, na França, e doutor em
Teologia pela Universidade Marc Bloch-Strasbourg II, nesse mesmo país. Leciona
no Departamento de Psicanálise da Universidade Paul Valéry, Montpellier III e
é membro do Centro de Pesquisas Interdisciplinares em Ciências Humanas e
Sociais (C.R.I.S.E.S, sigla em francês).
Também com Elian Cuvillier escreveu
Mythes grecs et mythes bibliques. L’humain face à ses dieux (Paris: Cerf,
2007). Com Cuvillier e André Wenin é autor de Divine violence. Approche
exégétique et anthropologique (Paris: Cerf, 2011).
Confira a entrevista:
IHU On-Line - O que motivou você
a realizar este trabalho interdisciplinar de releitura das principais
afirmações teológicas do cristianismo?
Jean-Daniel Causse - Em
Traversée du christianisme. Exégèse, anthropologie, psychanalyse
(Montrouge: Bayard, 2013), texto que redigi junto com Elian Cuvillier, revimos
as grandes afirmações do cristianismo – os dogmas, como se diz – para saber se
ainda podemos esperar que elas nos esclareçam o contexto considerado pós-moderno
dos dias de hoje. Em nossa abordagem central, fizemos as seguintes perguntas: O
que o cristianismo ainda nos dá a pensar? Qual forma de existência e qual
compreensão do mundo decorrem do cristianismo? Qual é, afinal, o gesto decisivo
do cristianismo? O que é o cristianismo, no fundo? Foi a essas perguntas muito
simples que tentamos responder. Tínhamos a convicção de que o cristianismo é
uma invenção de um sujeito humano e uma forma dada ao mundo.
IHU On-Line - Em que aspectos ou
em que bases metodológicas a exegese e a psicanálise conseguem dialogar nessa
revisão de concepções teológicas que acompanham a história do cristianismo?
Jean-Daniel Causse - Não é a
primeira vez que cruzamos as perspectivas exegéticas e psicanalíticas. Já o
fizemos anteriormente num livro intitulado Violence divine (ao qual se associou
o exegeta belga André Wenin) e, antes disso, por exemplo, em Mythes grecs,
mythes bibliques. L’humain face à ses dieux. Exegese e psicanálise correspondem
a dois métodos distintos; suas perspectivas ou projetos não são os mesmos, seus
léxicos são específicos, etc. Portanto, só há diálogo e articulação se as
singularidades forem respeitadas. Você deve ter percebido que Traversée du
christianisme tem por subtítulo: exegese, antropologia, psicanálise. Entre a
exegese e a psicanálise, há a antropologia. Esta funciona como um traço de
união. De fato, o que nos interessou, ao revisarmos os grandes temas do
cristianismo, foi compreender que figuras do humano são elaboradas. Se
preferirmos usar o singular: qual sujeito é construído pelo cristianismo?
Trata-se de uma questão de teologia – saber quem é Deus –, mas ela é
correlativa da questão de saber o que significa ser humano, e como sê-lo. Temos
então a ideia de que não é algo dado, mas um acontecimento ou uma emergência.
Trata-se de vir a ser sujeito.
IHU On-Line - Quais as principais
questões antropológicas subjacentes aos temas teológicos que vocês retomam
nesse estudo interdisciplinar? Que concepção – ou concepções - de ser humano
perpassa estes temas?
Jean-Daniel Causse - Na
realidade, as coisas são consideradas de outro modo. Poderíamos dizer que a temática
geral segue um credo. Um pouco como o símbolo dos Apóstolos. Não há aí nenhum
retorno nostálgico, nenhuma ideia de atemporalidade. Há a ideia de que aí está
o que precisamos pensar para hoje. Mas cada tema – o leitor perceberá isso se
consultar apenas o sumário – é construído em relação com uma questão
antropológica central. Por exemplo: em que sentido a encarnação – que está no
cerne do cristianismo – é um modo de pensar o corpo e provavelmente de produzir
uma nova concepção do corpo? De que modo a criação – como mito fundamental –
permite rever a relação com a origem? De que maneira a ideia de onipotência
deve ser retomada para não produzir a angústia ou o fatalismo? O que faz com
que o dogma cristão da trindade permita pensar a necessidade dos "três”
para que haja laço social entre os humanos? Será que é realmente possível
encontrar uma pertinência na ideia do pecado original ou naquela do sacrifício?
De que modo aressurreição é um vazio constitutivo que faz surgir um ser
que foge daquilo que quer contê-lo num saber ou num poder?
IHU On-Line - Como podemos
compreender hoje o problema da natureza humana e divina deJesus enfrentado pela
Igreja primitiva? Como a kenosis de Jesus, na formulação que encontra na
antropologia paulina, contribui para resolver este problema?
Jean-Daniel Causse - Temos
aí um exemplo típico da nossa abordagem. Não estamos absolutamente interessados
nas questões especulativas sobre a divindade nem sobre a humanidade de Jesus,
não queremos saber como isso acontece. Nossa questão é diferente. Ela consiste
em indagar quais são as consequências antropológicas de pensar que Deus
encarna, torna-se humano etc. De fato, como você afirma, Paulo pensou a
encarnação em termos de kenosis. Embora raro, esse termo é central. Paulo o
emprega para dizer que Deus só toma corpo na condição de não ser o todo, ou
seja, se renunciar à totalidade (kenosis significa despojamento, o fato de
esvaziar-se de si mesmo). Algo deve perder-se para que haja corpo. São muitos
os efeitos de pensar, por exemplo, que nossa época é aquela do ódio do corpo,
da encarnação, justamente porque a falta nos é insuportável.
IHU On-Line - Que concepção de
ser humano atravessa o relato de sua origem como criação e a Nova Criação em
Cristo?
Jean-Daniel Causse - A
teologia antiga sustentou a ideia de que a criação divina é uma
criação ex nihilo, isto é, uma criação vinda de nada, do nada, ou daquilo que
não existe. Esta ideia da criação como criação ex nihilo opõe-se à ideia de um
demiurgo, de um deus artesão que cria a partir de uma matéria já existente. Não
podemos desenvolvê-la aqui, mas a tese da criação ex nihilo supõe que o criado
seja radicalmente diferente do criador. Aquilo que é criado é realmente Outro,
uma vez que não é a continuidade. Há também na criação ex nihilo uma ruptura
com uma relação de causa a efeito. A criação não é o que devia ser
obrigatoriamente. É o que poderia não ter sido. É, pois, aquilo que existe sem
causa, sem razão, portanto, gratuitamente, o que não significa sem destino, sem
meta. Observa-se o interesse disso para refletir sobre uma nova criação que se
encontra em Cristo.
IHU On-Line - Em que a concepção
teológica de "Deus todo-poderoso” se distingue de nossas concepções de
onipotência?
Jean-Daniel Causse - A
onipotência é uma questão muito delicada, pois alimenta uma angústia e uma
culpa. Associa-se o Deus Todo-poderoso a um déspota. Paulo inverteu
completamente a perspectiva, não passando da onipotência divina a uma
não-potência divina ou a uma impotência, mas sim sustentando, paradoxalmente,
que a potência se realiza na fraqueza. O que isto quer dizer? Em todo caso, que
a condição humana, com seus limites, contém recursos insuspeitos e infinitos. É
a diferença que existe em Paulo entre a energeia e a dunamis.
IHU On-Line - Que conhecimento da
Trindade perpassa o Novo Testamento? Quais as principais referências para uma
compreensão da Trindade em chave antropológica?
Jean-Daniel Causse - Buscaríamos
em vão, nos textos do Novo Testamento, a expressão do dogma trinitário do modo
como é formulado nos concílios ecumênicos. No entanto, os elementos fundadores
que conduzirão à formulação do dogma trinitário estão bem presentes nos
diferentes testemunhos dos textos do Novo Testamento (cf., por exemplo, 1 Cor
12, 4-6; 2 Cor 13, 13; Ef 4, 4-6; Mt 28, 19). Eles estão, certamente, ainda
longe dos grandes concílios, mas, de certa maneira, já estão no caminho deles.
Na verdade, ao abrir espaço para a confissão de um Deus Único e, ao mesmo tempo
plural (o que não significa, obviamente, três deuses!), o Novo Testamento
testemunha esse fato incontestável e, ao mesmo tempo, decisivo para o nosso
propósito: os primeiros cristãos expressaram sua fé no Deus Único, revelado de
modo singular em Jesus, o Senhor, e revestido pelo Espírito Santo, ou seja,
pelo próprio Espírito de Deus. Esta figura do Espírito, aliás, é central no
livro dos Atos (mais de 50 ocorrências), ou no evangelho de João, com a noção
de "consolador” (Jo 14, 16-17. 25-26; 15,27; 16, 7-11), ou ainda no texto
de Rom 8, 23. 26-27).
IHU On-Line - Quais as
contribuições de Agostinho e Lacan para uma explicitação das relações
intratrinitárias entre o Pai e o Filho e o Espírito Santo? Como nós, crentes,
estamos implicados nessas relações?
Jean-Daniel Causse - Agostinho
foi, sem dúvida, o primeiro a tematizar, pelo menos com tal sutileza, um
pensamento da Trindade. Ele reflete numa lógica de substancialista. Mas, em
certos momentos, também se abre para a ideia de que a trindade é relacional.
Ele tem então a ideia de que o Pai não é autofundado. Um Deus que não é
autofundado, ou causa dele mesmo, é o que permeia o pensamento de Agostinho. Na
verdade, o que ele diz em dado momento é que o Pai não é Pai sem que haja o
Filho. Só existe Pai porque existe o Filho. Não há Pai em si, nele mesmo. É o Filho
que faz do Pai um pai. E, inversamente, o Filho não é Filho sem o Pai. Quanto
ao Espírito Santo, é o laço, a relação ou o que faz a mediação. Lacan retoma
isso de forma totalmente laicizada, formulando os três registros da
psicanálise: o real, o imaginário e o simbólico. A tese de Lacan é a de que
dois não é possível sem que haja três. Poderíamos dizer que para estar ligado
ao outro, é preciso que haja mais ou outra coisa além de um e outro
simplesmente.
IHU On-Line - Em que perspectivas
o pensamento lacaniano instiga o diálogo entre exegese e psicanálise? Quais são
as luzes e sombras que surgem desse nexo?
Jean-Daniel Causse - Lacan é
profundamente marcado pela cultura cristã, católica na verdade, mas à
distância. Ele não se reconhece numa confissão. Mas o pensamento lacaniano
questiona profundamente como se tornar alguém, uma pessoa, o que significa ser
reconhecido como sujeito singular. Lacan defendeu constantemente a
singularidade de cada um, o que faz com que cada um seja um ser único, a ser
reconhecido no que é. É esta posição que possibilita um diálogo. Porém, ao
mesmo tempo, o Outro de Lacan não é o Deus do cristianismo. Não se deve
estabelecer uma concordância. É preciso deixar que as coisas se aclarem na
diferença.
Fonte: http://site.adital.com.br
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