O Feitiço do samba: corpo e alma do Brasil - Por Luis Pellegrini
No carnaval, quando as grandes
escolas desfilam na avenida, o samba vive a sua apoteose.
Na pista ou nas
arquibancadas, sob o fascínio do cintilar ouro e prata das roupas dos sambistas,
impregnados pelos ritmos quentes das baterias, ninguém consegue reprimir uma
energia mágica que sobe pela espinha e se esparrama por todo o corpo. É o
feitiço do samba. Música popular na aparência, oração e meditação africana na
realidade.
Em 1988, ano do centenário da
abolição dos escravos, vivia ainda na periferia de São Paulo uma ex-escrava
africana. Chamava-se Tertulina, e afirmava ter 114 anos de idade. Muito lúcida,
apesar de quase inválida, ela dizia que nada acontecia por acaso, nada era
gratuito. No seu entender, tudo na vida e no mundo, mesmo os episódios
aparentemente mais banais, possuíam significado e importância espiritual.
Quando lhe perguntei qual o significado espiritual da vinda dos africanos para
o Brasil, sua resposta estava pronta e era surpreendente: "Viemos trazer o
samba".
A mais brasileira das danças e
das músicas, o samba, entendido como razão espiritual da vinda ao Brasil
do povo negro. Como propósito oculto do tráfico de milhões de escravos que aqui
chegaram e ficaram, submetidos por muitas gerações a quase quatro séculos
de sofrimentos no cativeiro. A ideia à primeira vista parece pouco ou nada
racional. Para entendê-la é preciso voltar o pensamento ao continente negro e
tentar assimilar a maneira africana de ver as coisas.
Para começar, convem
dizer que, do mesmo modo que nas demais civilizações de tipo xamânico,
essencialmente baseadas no pensamento mágico e no culto às forças da natureza,
as religiões africanas consideram que a música e a dança não constituem apenas
formas de arte ou diversão. O alcance e o poder dessas atividades vai muito
mais longe: o canto e a dança são as formas por excelência da meditação e da
oração africanas. As pontes pelas quais pode-se passar do território
profano àquele sagrado.
O branco reza e medita em silêncio, na tentativa de alcançar
estados superiores de consciência mais próximos à Divindade; o negro africano
canta e dança com o mesmo objetivo.
O samba deriva diretamente da
música ritual africana. Por isso o sentido de religiosidade sempre
presente nessa música impregna também, de modo consciente ou inconsciente, todo
o chamado "mundo do samba".
O imenso território por onde
transitam compositores, cantores, músicos e dançarinos sambistas, bem
como os que simplesmente apreciam esse gênero musical. Não por
acaso um dos mais conhecidos sambas brasileiros chama-se Samba em feitio
de oração. Por causa de tudo isso, o que a velha Tertulina queria
realmente dizer era: "Viemos trazer o nosso modo de entrar em contato com
Deus".
Muitos elementos das tradições
negras africanas, como é notório, deram notável contribuição para a formação e
o enriquecimento da cultura brasileira. Sua influência foi marcante não apenas
na nossa estrutura econômica e cultural, mas também no idioma, nos
costumes, nos trajes, na religião, na cozinha, na arte e sobretudo na música e
na dança.
Se hoje podemos falar de uma alma brasileira, temos de
reconhecer que se trata de uma alma mestiça: branca, negra e índia. E fica
realmente difícil saber qual das três contribuições é a mais importante.
Nos tempos da escravidão uma das
únicas liberdades concedidas aos negros era aquela de organizar suas festas,
cantar, dançar e se adornar. A música e a dança foram, inicialmente, os grandes
derivativos da presença africana no Brasil devido ao inegável pendor natural do
negro para a música e a expressão corporal.
Essas festas dos escravos tinham
quase sempre um fundo religioso, e era nelas que os africanos conseguiam
perpetuar as suas tradições. Mas isso passava em geral despercebido pelos
senhores portugueses e pelas autoridades da igreja católica, os quais pareciam
acreditar que tudo não passava de folguedos lícitos daquela gente
"primitiva".
Por tal razão, era comum que as festas dos escravos
acontecessem na frente ou ao lado das próprias igrejas. Essa proximidade com os
templos cristãos favoreceu o processo de sincretismo religioso
afro-brasileiro. Vários santos e figuras da Igreja foram assimilados a
divindades e a heróis do panteão africano, criando um sistema religioso repleto
de figuras híbridas até hoje vigente na umbanda e em outros cultos
similares.
Ao longo dos séculos várias
modalidades de música e de dança foram cultivadas e desenvolvidas pelos negros
no Brasil. No início deste século várias delas se fundiram para dar origem à
grande síntese musical que é o samba.
Uma dessas modalidades que
convergiram para o samba foram os pregões dos "negros de
ganho", escravos que percorriam as ruas das cidades do Brasil
colonial vendendo toda sorte de produtos em benefício de seus patrões. Esses
negros criaram um riquíssimo estilo de canções destinadas, originalmente,
a exaltar as qualidades das mercadorias oferecidas.
Outra modalidade foram os acalantos,
as canções de ninar criadas pelas mães-pretas, as escravas encarregadas de
criar os filhos dos brancos muitas vezes desde o nascimento deles.
O lundu, que segundo
antropólogos apareceu no seio das comunidades da etnia banto, foi a
primeira manifestação coreográfica dos negros brasileiros. Nele encontramos uma
fonte importante para a criação do samba como dança.
A princípio o lundu era
uma dança febricitante e sensual, lasciva, de caráter nitidamente erótico.
Adquiriu depois requintes urbanos cheios de langor, com letras irreverentes,
satíricas e maliciosas. No lundu os dançarinos formavam um círculo. Uma
mulher dirigia-se para o centro, com meneios provocantes. Um homem seguia os
seus requebros e movimentos.
Os instintos entravam em ebulição e a volúpia
apoderava-se dos dançarinos. Dançavam em volteios sensuais, até que a mulher
caia nos braços do homem, em evidente atitude de entrega, e escondia o rosto
com um lenço para ocultar a emoção. O malicioso gingado escandalizava a
burguesia branca, incapaz de perceber o verdadeiro significado daquela dança:
ela era a memória viva de ritos arcaicos da fertilidade.
Para o samba contribuiu também a
tradição nordestina do maracatu, que permanece viva até hoje, e que é uma
das mais impressionantes danças dramáticas do repertório afro-brasileiro. O
maracatu deriva do mito da "coroação dos reis do Congo", e é um
elemento-chave no processo de criação da coreografia das escolas de samba
contemporâneas. Trata-se de um cortejo luxuoso, de grande pompa.
Tem rei,
rainha, príncipes, damas e nobres da corte, embaixadores. Os dançarinos
conduzem ricos estandartes e um grande chapéu-de-sol, significando a presença
do sol protetor, cobrindo as pessoas reais.
À frente dos cortejos do maracatu
costuma desfilar uma mulher que conduz na ponta de um bastão uma bonequinha
ricamente adornada. Esta boneca é a calunga, divindade secundária do culto
banto relacionada à ideia de "morada dos mortos", ou cemitério. A
presença desse símbolo no maracatu serve provavelmente para estabelecer uma
conexão entre a festa dos vivos e a presença dos antepassados mortos.
Igrejas, conventos e instituições
religiosas do Brasil escravagista também possuíam escravos. Até hoje os
historiadores não conseguem entender como essas organizações católicas
conciliavam os princípios da doutrina cristã com a exploração do homem pelo
homem através da escravidão.
Mas o fato é que os religiosos também desfrutavam
do trabalho dos seus escravos que, pelo menos, costumavam ser mais bem tratados
que os demais. Alguns desses escravos que possuíam talentos musicais naturais
eram usados nas atividades religiosas musicais. Recebiam para isso educação
musical formal tanto para o canto quanto para o manejo de instrumentos.
Esses
conhecimentos, fora do âmbito das igrejas e conventos, acabaram sendo
frequentemente aplicados à música da tradição africana original. Desse
contato surgiram importantes sínteses musicais que conferiram à música popular
brasileira níveis de grande erudição. Parte desse material foi posteriormente
recolhido e largamente utilizado por compositores brasileiros modernos como
Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Capiba, Waldemar Henrique, etc.
Todo esse imenso acervo musical
desembocou no samba, a música que melhor exprime a alma brasileira, e que
atinge o seu ápice expressivo no período do carnaval.
Mas, de todos os afluentes
musicais que convergiram para a formação do grande rio do samba, o mais
importante foi aquele que nasceu nos terreiros de candomblé, os templos da
religião xamânica africana transplantada no Brasil.
O samba nasceu nos
terreiros. Seu nome deriva das sambas, as mulheres encarregadas da organização
ritualística daquela religião. Nos festejos do carnaval essas mulheres
apareciam como figuras de destaque pelo seu modo de dançar e pelo molejo das
cadeiras.
O povo oferecia dinheiro, o cortejo parava. Formava-se uma roda, a samba no
meio a sambar acompanhada de palmas. A certa altura ela se agachava, com as
mãos nos quadris, e depois se levantava, num rebolar originalíssimo. A
seguir, batendo palmas, a samba tirava outra companheira que,
por sua vez, entrava na roda.
O samba antigo possuía letra
curta e tinha ênfase no aspecto rítmico. Modernamente tornou-se estilizado em
várias modalidades como o samba-canção (ênfase na melodia), samba-de-breque
(para se dançar em salões), samba-batucada (com grande participação dos
instrumentos de percussão e instrumentos de corda como o violão e o
cavaquinho).
Em todas as etnias africanas que
vieram para o Brasil, os instrumentos musicais são considerados objetos
sagrados. Cada um deles está ligado a um ou mais princípios divinos, e
sua presença é visível e obrigatória nos cultos. No caso dos atabaques, grandes
instrumentos de percussão de uso indispensável nos rituais do candomblé e de
certas linhas de umbanda, essa sacralidade atinge níveis extraordinários. Os
atabaques são considerados divindades em si mesmos, e como tais são objetos de
culto e de preparação ritualística.
Os atabaques são "vestidos" com
tecidos nas cores dos orixás (divindades do panteão africano) que representam,
e saudados como presenças sagradas não apenas pelos fiéis mas inclusive pelos
outros orixás que se manifestam através dos transes dos médiuns. O
atabaque contem as vozes dos orixás, que "falam"
através do seu som e dessa forma transmitem a sua energia e o seu poder.
A ritmologia litúrgica africana é
uma das mais ricas do mundo. Há muitas centenas de variedades rítmicas já
classificadas, correspondendo cada uma delas a alguma divindade ou a
"qualidades" específicas de divindades.
Por exemplo, o ritmo alujá costuma
ser atribuído ao orixá Xangô; o ritmo ilú ao orixá Oxalufã; o ritmo aguerê ao
orixá Iansã; o ritmo ijexá ao orixá Oxum. Cada variedade
rítmica possui também uma ou mais funções específicas na complicada
ritualística dos cultos afro-brasileiros.
Os ritmos dos pontos cantados (hinos
litúrgicos) constituem um dos principais fatores que mantêm o movimento
das energias físicas e espirituais no decorrer dos rituais afro-brasileiros.
Praticamente toda cerimônia desses cultos é acompanhada e sustentada pela
presença da música e da dança. Cada ritual, seja ele aberto ao público ou
fechado e reservado a iniciados, é entendido como uma operação alquímica
e energética, onde há carga e descarga de componentes energéticos. No ritual
ocorre uma grande interação de campos de energia de variados tipos.
Existe uma
ciência e uma sabedoria na criação e no desenvolvimento dessas interações de
campos energéticos, e seu domínio é privilégio dos "pais de santo" e
"mães de santo" (chefes de culto) competentes. Por isso, do início ao
fim de um culto de candomblé ou da maioria das linhas de umbanda, os
atabaques tocam o tempo todo. Seu som ritmado modula e conduz os fluxos de
energia de modo a que nada fique estagnado e se deteriore.
O som rítmico emitido pelos
atabaques é também um estímulo fundamental para a produção do fenômeno
dos "estados de transe mediúnico". Cada orixá possui a sua
frequência vibratória ou rítmica própria.
Tal frequência existe ao mesmo tempo
na natureza, no elemento natural que corresponde àquele orixá, por exemplo, no
caso do orixá Iemanjá trata-se da vibração da água do mar, e no
interior da pessoa que, usando esse mesmo exemplo, é "filho de
Iemanjá", ou seja, alguém que "carrega" dentro de si, como
princípio energético predominante, aquela mesma vibração de Iemanjá.
Submetido
ao estímulo sonoro de um dos ritmos de Iemanjá, o "filho" desse orixá
dança e ao dançar desperta e potencializa a sua "Iemanjá interna". Quando esta estiver bastante ativada, estabelece-se o "transe", que
nada mais é do que a conexão mais ou menos profunda e bem sucedida das energias
do orixá interno com as energias daquele mesmo orixá na
natureza.
Não apenas a música e a dança,
mas toda a herança social, cultural, artística e religiosa da cultura africana
transplantada no Brasil, convergem e se amalgamam no grande carnaval das
escolas de samba. As maiores estão no Rio de Janeiro, mas elas existem hoje na
maioria das cidades brasileiras. Cada uma delas congrega milhares de músicos e
dançarinos que passam praticamente o ano todo preparando o grande desfile de
carnaval.
Fantasias luxuosas, damas,
príncipes e nobres da corte, nostálgicas recordações dos senhores e senhoras
europeus dos séculos passados, ecos das antigas realezas africanas, criam o
imenso espetáculo dos desfiles.
Hoje os enredos das escolas de samba podem usar
qualquer tema, do passado, do presente e até do futuro, e esses temas podem ser
brasileiros ou estrangeiros. Mas no início os enredos estavam diretamente
ligados à história do Brasil e à memória arrebatada do continente negro, seus
heróis e seus deuses, as primeiras aspirações de liberdade, suas brincadeiras
e alegrias para sobrepujar o banzo (melancolia extrema do negro
escravo que se deixava morrer de nostalgia da terra de origem e da liberdade
perdida).
Eram histórias que refletiam os seus costumes e a sua ascensão
social. Das cozinhas e senzalas (recintos onde eram trancados os escravos) às
grandes avenidas; do povo humilde para a gente importante e para turistas de
todo o mundo.
Sociólogos entendem hoje a escola
de samba como uma manifestação popular ritualística, no sentido
de que projeta num discurso simbólico aspectos cruciais da estrutura da
sociedade brasileira. Como manifestação carnavalesca, ela adquiriu enorme
projeção a partir dos anos 30.
Progressivamente consolidou seu predomínio
sobre outras expressões populares a ponto de se converter em símbolo
identificador não só do "espírito" carioca como também da imagem que
se tem projetado do homem brasileiro.
"Os negros", diz
Roger Bastide em Brasil, Terra de Contrastes, "não contentes por
terem transferido da África seus próprios divertimentos, invadiram também
o folclore português e cristão e o africanizaram em parte".
Como
explica ainda Bastide, se o carnaval europeu, como aquele de Veneza, é o
triunfo do indivíduo, que escapa durante três dias à atmosfera cinzenta da vida
cotidiana para participar da alegria da multidão, o carnaval afro-brasileiro é,
ao contrário, coletivo.
São os clãs tribais, as "nações", que se
dirigem em grandes grupos, com seus reis e rainhas, com suas oriflamas e
seus animais totêmicos, das favelas e subúrbios proletários para o centro da cidade.
Nas escolas de samba, os mestres de samba exercem rigoroso comando.
Revivem assim a antiga estrutura social que a escravidão
destruíra.
Voluptuoso e telúrico, apenas na
aparência o samba de carnaval é puro divertimento. Toda a sua base rítmica e
melódica corresponde à música litúrgica que veio da África, e que faz flutuar,
acima da grande loucura carnavalesca, a pungente nostalgia da terra dos
antepassados.
O samba é um dos recursos
de que os negros brasileiros dispõem para compensar a exploração econômica e as
injustiças sociais de que, ainda hoje, são vítimas. Quem canta seus males
espanta, diz a letra de um samba. Ao som dos tambores, do violão, do
pandeiro e do tamborim, nos morros do Rio de Janeiro, nos pagodes da periferia
de São Paulo, o negro afugenta suas penas cantando-as.
Tristezas de amor, falta
de dinheiro, ciúmes, a violência do preconceito, a psicologia negra e
mulata revela-se nas palavras desses sambas. Mas elas também descortinam toda a
poesia do povo, o amor pela natureza, a ternura pelo mar, o vigoroso pulsar da
vida.
No carnaval, como a ilustrar o
mito da fênix que renasce das próprias cinzas, as nações africanas
retornam sob a forma de escolas de samba. Sob o feitiço do samba, tudo volta às
origens: os totens reaparecem, os mestiços voltam a ser índios, os
brancos encontram de novo, na barafunda dos sexos e das classes sociais, as
raízes profundas das saturnais romanas.
No samba, as duas civilizações, a
dos terreiros xamânicos da África e a das igrejas barrocas de Portugal, não
contrastam uma com a outra, mas se interpenetram, se harmonizam, dando origem a
um amálgama espiritual que energiza o Brasil.
Como escreveu Roger Bastide,
"O cintilar contínuo do ouro corresponde, no domínio da vista, ao
barulho do tantã no domínio da audição; ambos são um apelo para
sair da vida profana e entrar no mundo sagrado".
O samba brasileiro é a prova
evidente de que as duas civilizações, a católica europeia e a xamânica
africana, que parecem tão afastadas uma da outra, não precisam se chocar como
forças antagônicas, mas podem, como disse ainda Bastide, "compor uma única
música a duas vozes: o órgão barroco e o tambor febril; os santos óleos do
batismo e dos moribundos, e o azeite de dendê que escorre das pedras sagradas
da África; a mística dos santos e a mística dos orixás".
Fonte: http://www.brasil247.com
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