Recebidos como heróis, afegãos libertados de Guantánamo tentam retomar suas vidas – Por Dawood Azami
Nas ruas de Cabul e de outras
províncias afegãs, poucas pessoas consultadas pela BBC haviam ouvido falar de
Manhattan ou do World Trade Center, as duas torres derrubadas no atentado de
11 de setembro de 2001. Mas todas elas tinham ouvido falar de Guantánamo.
Cerca de 220 afegãos ficaram
detidos na prisão da base militar americana. A maioria já voltou para casa,
onde suas histórias de cárcere e, em alguns casos, de abusos, têm tido um
grande impacto.
"Milhares de pessoas das
minhas aldeias e da região vieram me dar as boas-vindas. Apertei a mão de mais
de 2 mil pessoas", conta Haji Shahzada Khan, ancião de Kandahar, sul do
Afeganistão.
"As pessoas me receberam
muito bem. Algumas me compraram cabeças de gado e o que conseguiam
comprar", diz Izatullah Nasratyar, ex-combatente mujahedin, que na
juventude ajudou a expulsar tropas soviéticas do Afeganistão com ajuda
americana. Alguns ex-detentos escreveram
livros, que viraram best-sellers no Afeganistão e no Paquistão. Outros são mais
reservados.
"Eles (americanos) fizeram
coisas conosco que são contra a humanidade, os direitos humanos e o islã.
Sequer consigo falar sobre isso", afirma Haji Nasrat Khan, pai de
Izatullah. Quando foi detido pelas tropas
americanas, em 2003, já estava com mais de 70 anos e a saúde debilitada e alega
que não havia provas contra ele. "E não fui só eu, havia outros inocentes
detidos."
Haji Shahzada também fala pouco.
"Se falar a verdade sobre as condições lá, vai aumentar a preocupação e o
sofrimento dos parentes de quem ainda está detido. Não posso contar a realidade
da vida em Guantánamo."
'Privilégio da liberdade'
Mas a vontade de falar sobre a
experiência no centro de detenção muda de ex-prisioneiro para ex-prisioneiro.
Alguns chegaram a publicar seus relatos em livros, que viraram best-sellers no
Afeganistão e no Paquistão, outros são bem mais reservados. Ao que tudo indica, as
experiências também foram variadas.
Alguns, os que seguiam as regras
do centro de detenção, podiam conviver com outros detentos de seu bloco e
aproveitaram para aprender e ler. "A única boa memória de lá é
que aprendi o Corão, aprendi a escrever e tive uma experiência diferente",
conta Haji Ghalib, que passou quatro anos em Guantánamo.
Já Haji Ruhullah, líder tribal do
leste afegão, pinta um quadro mais sombrio. "Guantánamo não me tirou
apenas a liberdade de movimento, mas outros direitos. Nem falar era
permitido", diz. "Os guardas nos puniam quando líamos o Corão porque
diziam que estávamos falando com os demais prisioneiros." A maioria dos ex-detentos
entrevistados pela BBC afirmou que não esperava sair de lá vivo. E dizem que se
sentem renascidos.
"(Quando voltei ao
Afeganistão) foi como voltar do mundo dos mortos", diz o ex-ministro do
Comércio talebã Mawlawi Abdul Razaq, que passou cinco anos no presídio.
"Lá não sabíamos nada do mundo exterior. As cartas de familiares eram
geralmente censuradas."
Izatullah diz,
surpreendentemente, que a experiência mudou sua perspectiva sobre a vida.
"A prisão me trouxe coisas
boas: eu não era grato o bastante pelas dádivas que Alá nos dá. Eu não era
grato a Deus pela liberdade, o sol ou (a possibilidade) de ir ao banheiro
quando se quer. Mas lá, nas mãos de outros homens, eu percebi que Deus nos
concede muitas dádivas. Eu entendi o privilégio da liberdade."
Passada a alegria de voltar para
casa, a retomada da vida teve momentos amargos. "Fui ver meus vinhedos após
ser libertado, e muitos pés haviam secado", relembra Shahzada Khan.
"Meus filhos pequenos não conseguiram cuidar de si mesmos durante a minha
ausência. Foi nesse dia que me dei conta de que realmente havia estado
preso."
Perdas
Alguns homens perderam seus
empregos e meios de vida. "Ninguém vai nos dar emprego, não trabalhei desde que voltei para casa", diz o ex-policial Ghalib.
"Se foi provada nossa inocência, por que ninguém nos ajuda?". Mesmo os que foram libertados sem
jamais terem sido indiciados dizem ainda sofrer assédio de tropas americanas e
afegãs, que suspeitam de seus elos com insurgentes.
Alguns ex-detentos foram mortos
em ataques; outros voltaram a ser presos no Afeganistão, acusados de atividades
"subversivas". Cerca de 90 deles se uniram em 2012
na Associação de Ex-Detentos de Guantánamo no Afeganistão, "para nos
apoiarmos e defendermos nossos direitos", alega Haji Ruhullah Wakil, líder
do grupo.
"Nos encontramos com o
presidente (afegão Hamid) Karzai, comandantes da Otan e autoridades americanas
em Cabul para discutir nossos problemas e assegurá-los que não somos uma
ameaça." A mera existência de Guantánamo,
no entanto, segue sendo uma ameaça e um fato usado pelo Talebã para recrutar
insurgentes.
Uma canção descreve um jovem
talebã detido escrevendo uma carta para sua mãe. "Sou prisioneiro na prisão
de Cuba; nem de dia nem de noite consigo dormir, oh mãe", diz a música.
'Não posso perdoá-los'
Guantánamo ainda tem 155 detentos, já chegou a abrigar 800. "Os detentos trazidos para
cá foram capturados no campo de batalha. Os mantivemos aqui para afastá-los do
campo de batalha", afirma o almirante Richard Butler, comandante da
Força-Tarefa Conjunta, que coordena a prisão militar.
"Uma vez que a cadeia de
comando decide que eles não precisam mais ficar presos por essa razão, eles são
transferidos. Mas até lá não faço julgamento quanto à culpa ou inocência dos
detentos."
Haji Ghalib voltou ao Afeganistão
e se reencontrou com sua família. Mas, sem emprego e vivendo em um apartamento
precário em Cabul, sua vida deu uma guinada radical para pior. "Dois americanos me disseram
que seu governo me pedia desculpas pelos cinco anos preso e que eu havia sido
inocentado", ele conta. "Eu respondi: 'com todo meu coração, não
posso perdoá-los'."
Fonte: http://www.bbc.co.uk
Comentários