Igreja e questão agrária - Por Guilherme C. Delgado
Interesses ruralistas incrustados
nos poderes de Estado convertem a terra em “mercadoria como outra qualquer” à
revelia do direito constitucional, que não comporta esta noção absurda.
Em sua última Assembleia Geral
anual (52a), encerrada no dia 9 de maio, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) aprovou importante documento, de caráter doutrinário e pastoral,
sobre a atual questão agrária brasileira, tema a que a grande mídia ora dedica
estrepitoso silêncio, ora tratamento estritamente ideológico, pelas razões que
veremos em sequência.
Depois de um longo debate
interno, que dura no caso específico desde o segundo semestre de 2009, os
bispos católicos resolveram enfrentar o tema da terra, como costumam falar, nesta época de plena hegemonia da economia do agronegócio.
Observe-se que em ano eleitoral
como o é 2014, o posicionamento da CNBB sobre o tema, depois de 34 anos dá última abordagem similar em “Igreja e Problemas da Terra”, de 1980, é não
apenas um fato eclesial importante, como também político e social. Deve-se
recordar que o documento de 1980 teve influência doutrinária e política na
elaboração do regime fundiário da Constituição de 1988.
O cerne do documento de 2014 é o
tratamento dos limites doutrinários e jurídicos dos direitos de propriedade sobre
a terra na atual quadra histórica. O tratamento doutrinário, da Doutrina
Social da Igreja e jurídico, da Constituição de 1988 convergem para os
critérios de legitimação da função social e ambiental dos direitos de
propriedade, posse e uso da terra. Muito embora reconhecendo os critérios constitucionais (Art, l86 – função social da propriedade) como eticamente
adequados, o episcopado denuncia sua sistemática obstrução na execução da
política agrária concreta.
Interesses ruralistas incrustados nos poderes de
Estado convertem a terra em “mercadoria como outra qualquer” à revelia do
direito constitucional, que não comporta esta noção absurda. Ela põe em risco
a vida humana, não apenas dos povos da terra engolidos pelos tentáculos da
terra de negócio, como também a população urbana, dependente dos recursos
naturais contínuos (águas, clima, biodiversidade etc.)
A dicotomia terra de negócio x
terra de trabalho, formalmente resolvida no direito constitucional, volta à centralidade da economia política pela captura do Estado realizada pela
autodenominada economia do agronegócio, recalibrada nos anos 2000 com
especialização primário-exportadora do comércio externo.
O documento dos bispos contém
também uma análise social e econômica da atual quadra histórica, mas não é
este seu eixo e sua linguagem. São ‘clamores dos povos da terra, das águas e da
floresta’ e os riscos sociais e ambientais que afetam toda sociedade,
especialmente os mais pobres, que movem o episcopado a voltar ao tema da terra.
O julgamento teológico da situação, que não cabe aqui tratar, é a verdadeira
justificação do falar e agir da Igreja perante esses dados de realidade.
A
larga maioria com que se aprovou este texto, 96% dos votantes, contra apenas
4,% de votos negativos, sinaliza rumos eclesiais muito mais próximos do papa
Francisco e da própria tradição da Igreja pós-conciliar no Brasil. Na verdade,
a moderna idolatria da “terra mercadoria como outra qualquer” tem
consequências radicais sobre a produção de uma sem número de vítimas sociais, indígenas, quilombolas, sem-terra, trabalhadores assalariados, epidemias
urbanas etc., fortemente associadas à posse e uso da terra sem limites sociais.
Este em síntese é o pensamento doutrinário e pastoral da Igreja, que a partir
dele pretende dialogar com a sociedade.
Finalmente temos uma verdadeira
provocação política a questionar os nossos presidenciáveis, que nessa pré-campanha eleitoral têm se mostrado ávidos por agradar os mercados. Afinal, um deles,
Aécio Neves, autoproclamou-se na última semana como verdadeiro líder do
agronegócio (Feira do Agrishow em Ribeirão Preto), disputando o bastão com a
Presidenta Dilma.
Enquanto isto. outro presidenciável, Eduardo Campos,
percorre o país proclamando a independência do Banco Central como pedra angular
da salvação da pátria. Que teriam eles a comentar sobre “Igreja e Questão
Agrária Brasileira no Início do Séc. 21”
Guilherme Costa Delgado é
doutor em economia pela Unicamp e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e
Paz.
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