O bom aluno – Por António Guerreiro
Em 1992, numa
entrevista a um canal de televisão grego, o filósofo e psicanalista francês
Félix Guattari incitava os gregos a recusarem as regras que fazem da política
europeia um teatro de sombras semelhante ao que a lei edipiana faz na família:
“A Grécia é o mau aluno da Europa. É essa a sua qualidade. Felizmente que há maus alunos,
como a Grécia, que trazem a complexidade. Que trazem uma recusa de uma certa
normalização germano-francesa. Por isso, continuem a ser maus alunos e
continuaremos bons amigos.”
Em Portugal, nessa altura, já
estávamos a ser ungidos pela metáfora do bom aluno e ainda hoje transportamos o
brilho intenso e o contentamento sem reserva que a metáfora irradia. O que é,
neste caso, um bom aluno?
O bom aluno caracteriza-se por um
determinado comportamento, por um programa de acção, mas é também aquele que
interiorizou convictamente uma moral, ao ponto de política e moral serem para
ele a mesma coisa. A dívida, como sabemos muito bem, segrega uma moral própria.
Um breve exercício genealógico
ajuda a perceber porquê. Actualmente, já não é preciso ter lido a Genealogia
da Moral, de Nietzsche, para saber que o conceito moral de culpa remonta ao
conceito material de dívida, que, por isso, se diz, em alemão, exactamente com
a mesma palavra, Schuld.
A figura do “homem endividado”,
que o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato definiu como o representante por
excelência da condição neoliberal, é afinal, a figura típica de uma economia da
salvação, como nos lembrou Walter Benjamin num célebre fragmento de 1921
sobre: O Capitalismo como Religião, onde define o capitalismo como uma
religião sem dogma, caracterizada pela celebração de um culto sem tréguas, para
o qual não existem dias feriados. “Este culto”, diz Benjamin, “é gerador de
culpa” (ou de dívida, já que a palavra verschuldend significa as duas
coisas).
E acrescenta: “O capitalismo, com
toda a probabilidade, é o primeiro caso de um culto que não redime o pecado,
mas gera culpa” (isto é, dívida). Uma culpa que não pode ser expiada, e essa é
a condição paradoxal da religião capitalista, mas tornada universal.
O bom aluno é aquele que
interiorizou plenamente a moral da culpa e sabe que deve comportar-se como um
ser em débito. Haverá algum momento em que a culpa vai ser expiada, isto é, em
que o débito vai ser saldado?
Evidentemente que não. Por isso é
que se criou a figura da “dívida eterna” ou infinita. Por ela, o homem
endividado interiorizou para sempre a dívida e é isso, e não que a pague de uma
vez por todas, que o credor lhe exige. Comentando Nietzsche, escreveu Deleuze:
“A dívida torna-se a relação de
um devedor que nunca acabará de pagar e de um credor que nunca acabará de
esgotar os interesses da dívida.” O infinito que o cristianismo introduziu na
religião, reinventa-o o capitalismo ao nível económico, num plano imanente.
Para se tornar um bom aluno, como
lhe é exigido para continuar a dar-lhe crédito, a Grécia não precisa de pagar a
sua dívida, que é infinita e eterna.
Tem é de dar como garantia do
fictício e sempre diferido reembolso um conjunto de virtudes sociais e
políticas que são a carne e o sangue da moralidade a que está obrigada. Tem de
sujeitar-se eternamente ao performativo da promessa. Não é que as promessas
paguem dívidas, mas são uns reconhecimentos e uma ritualização da culpa.
Em suma: é preciso que o modo de
existência da Grécia, o seu ethos, seja determinado pela culpa que todos
os bons alunos interiorizaram e que os faz arrastarem-se, de ombros descaídos e
olhar baixo, sempre que está por perto um supremo credor.
Fonte: http://www.publico.pt
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