A lição de uma folha escrita no deserto, ou como Maomé protege os cristãos – Por Paulo Mendes Pinto
Num local sagrado para judeus,
cristãos e muçulmanos, que mais podemos procurar e desejar para fomentar o
diálogo do que uma carta de Maomé a proteger os cristãos?
O mundo dos
eremitas sempre fascinou muito o nosso imaginário cultural cristão de
purificação, de ascese, de encontro com o divino, ou não assentasse o início da
vida pública do próprio Jesus nas célebres tentações que ao longo de 40 dias
sofreu exactamente nesse inóspito mundo, no deserto.
Hoje, depois de se ter tornado
assente que a vida de retiro no deserto, a génese do monaquismo, nasceu muito
antes do Cristianismo, e sabe-se também que a chegada desse movimento de fuga
mundi à fé dos seguidores de Cristo se deve ter dado nas regiões do delta
do Nilo e nas vertentes do Sinai, zonas de grande efervescência mística desde,
pelo menos, o caldo cultural criado pelas invasões de Alexandre, no séc. IV
a.C.
Entre os vários mosteiros que se
terão formado no Sinai, mais ou menos organizados, ou mesmo verdadeiramente
informais, com grupos de discípulos em torno de um mestre carismático,
encontra-se o de Santa Catarina. Com uma vida complicada, no meio de rotas
caravaneiras, sujeito a ataques frequentes, Justiniano terá decidido fortificar
alguns desses dois mosteiros do Sinai.
O significado deste lugar e mesmo
do próprio topónimo é imenso, e nele se conta toda a história religiosa do
Mediterrâneo nos últimos três milénios. O Mosteiro de Santa Catarina estará
supostamente junto ao local da sarça-ardente, o centro da hierofania a que
Moisés assistiu e da qual resulta uma unidade ética mediterrânica em torno dos
Dez Mandamentos.
Nessa simbólica da luz, que não
se pode ver mas que traz a plena sabedoria e protecção, e que, seguindo um
apócrifo cristão, Maria na fuga para o Egipto, terá colocado Jesus nessa mesma
chama, como que revivificando a Aliança anterior feita com o seu povo através
de Moisés.
Mais tarde, quando nascem os
mosteiros, o nome usado será o de uma mártir com pendor filosófico, com uma
vida repleta de episódios que lembram Hipátia de Alexandria, a mulher filósofa
há pouco anos recordada na tela do cinema.
Catarina é a junção entre a
Sabedoria e a Ascese, o martírio, o centro da vida monástica. Ironia dos tempos
cartesianos, já no século XX o seu nome foi retirado dos calendários litúrgicos
romanos por falta de provas da sua real existência, como se o real no coração
dos crentes se manifestasse por provas historiográficas.
Neste contexto, o Mosteiro de
Santa Catarina é o exemplo perfeito de uma convivência religiosa, cultural e
mental. A uma altitude de 1570m, na cidadela que compõe o complexo, hoje
podemos encontrar dentro dos mesmos muros uma basílica, várias capelas, e uma
mesquita, tudo em torno de um lugar de memória judaica.
No interior da mesquita
encontra-se, segundo a tradição, um manuscrito do Profeta Maomé, que, ao ter
sido ali bem acolhido pelos monges, pede o bom tratamento dos cristãos por
parte de todos os muçulmanos.
Num momento em que é tão
importante encontrar aquilo a que hoje chamamos de “boas práticas”, olhemos
para essas palavras atribuídas a Maomé. Trata-se de uma carta que ostenta a sua
legitimidade, através da impressão da mão do Profeta fundador do Islão.
"Esta é uma mensagem de
Muhammad ibn Abdullah, um pacto para quem adoptar o cristianismo, perto e
longe, estamos com eles. Em verdade, os servos, ajudantes
e os meus seguidores devem defendê-los, porque os cristãos são meus cidadãos, e
por Deus! Eu serei contra qualquer coisa que os desagrade. Nenhuma compulsão
sobre eles. Nem os seus juízes são removidos de seus cargos, nem os monges dos
seus mosteiros. Ninguém destruirá a casa de sua religião, para a danificar, ou
para tomar qualquer coisa, para casa de muçulmanos. Se alguém procedesse desta
forma, ele iria estragar a aliança de Deus e desobedecer ao Seu Profeta. Na verdade, eles são meus aliados
e são protegidos pela minha carta de protecção contra tudo o que odeiam.
Ninguém os forçará a viajar ou obrigará a lutar. Os muçulmanos devem lutar por
eles. Se uma mulher cristã casa com um muçulmano, o casamento não pode ter
lugar sem a sua aprovação. Ela não deve ser impedida de visitar sua igreja para
orar. Suas igrejas são para ser
respeitadas. Eles não devem ser impedidos de repará-las, nem de exercer a
santidade de seus convénios. Ninguém da nação (muçulmanos) desobedeça a aliança
até ao final dos tempos."
Demonstrando os novos tempos
tecnológicos, mas essencialmente tempos de possibilidades de diálogo, neste
cantinho da Europa, recebi uma tradução em inglês deste texto através de um
imã, Rachid Ismael, director do Colégio Islâmico de Palmela. Já tinha ouvido
falar do texto mas não o conhecia.
Posto a circular entre investigadores de
Ciência das Religiões, um católico, Rui Oliveira, indicou-me esta tradução para
português, feita por um padre ortodoxo, protopresbítero Alexandre Bonito, uma
das pessoas neste país mais implicadas nas questões do diálogo inter-religioso.
Nesta rede de homens de Boa Vontade, tive o prazer de redigir este texto para
que mais pessoas dele tenham conhecimento.
Historicamente, pouco se pode
afirmar de certo sobre este texto. Sendo uma importante relíquia, o original
foi levado em 1517 para Constantinopla pelo sultão Selim I, e estará no
Topkapi, em Istambul. Em Santa Catarina encontra-se uma cópia oferecida pelo
sultão.
De resto, é impossível saber se a
dita carta foi escrita pelo Profeta dos Muçulmanos, ou não. A ciência talvez
pudesse fazer aqui algum milagre. Mas, tal como em relação à existência de
Santa Catarina, o mais importante, hoje, é que existe o mosteiro com o seu
nome, tenha ela existido, ou não. As palavras são mais importantes do que a
materialidade do seu suporte ou a fluência da língua lá vertida.
Perante um
texto desta natureza, a sua simples verosimilhança é de uma força tremenda. A
factualidade escondida nos gestos que produziram estas linhas é o menos
importante, tanto mais que, independentemente da autoria, o conteúdo vai de
acordo com os ensinamentos de Maomé, o Profeta do Islão, e podem-se colher em
vários trechos do próprio Corão.
De resto, as palavras são claras
e lançam-nos de um passado de quase milhar e meio de anos para um futuro que é
o imediato, o ainda nem amanhã, mas o agora. A urgência da nossa existência
pede-nos que olhemos para este texto, onde as tradições religiosas, cristã e
muçulmana, se consensualizaram num gesto de Paz, com o desejo de frutificação
dos tempos.
Num local sagrado para judeus,
cristãos e muçulmanos, que mais podemos procurar e desejar para fomentar o
diálogo que uma carta de Maomé a proteger os cristãos?
Paulo Mendes Pinto - Director do
Instituto Al Muhaidib de Estudos Islâmicos da área de Ciência das
Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do Parlamento Mundial das
Religiões.
Fonte: http://www.publico.pt
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