E se não houvesse religiões? – Por Paulo de Almeida Sande*
O ser humano precisa de
transcendente, repito. Precisa de uma fé que lhe dê esperança e o justifique, e
tanto mais quanto mais miserável for a sua vida.
Existe no Facebook um grupo com
9044 membros (ao tempo em que escrevo este post) designado “Imagine que não
havia religiões”. Creio não violar nenhuma norma ou interdito ao comentá-lo, já
que o seu descritivo indica que todos o podem ver, bem como aos seus membros e
conteúdos. O grupo é fundamentado da seguinte forma:
“(…) Deus não passa de uma infame
chantagem de medo, de um amesquinhamento ignóbil e indigno de quem tem um
mínimo de respeito por si próprio, não é mais do que uma desculpa cobarde de
quem não tem a coragem e a dignidade suficientes para olhar a morte de frente e
para, antes, aproveitar e desfrutar em liberdade cada um dos momentos que a
vida nos proporciona”. “Imagine que não havia religiões”. Tentei imaginá-lo: e
se não houvesse religiões?
Na troca de argumentos entre
crentes e não-crentes que ocorre no grupo o que mais impressiona é a parte de
violência que contém (há excepções, claro): são violentos os argumentos dos
não-crentes, violentas as respostas dos crentes de qualquer religião (nele
“postam” cristãos, evangélicos, muçulmanos, judeus e muitas outras denominações
religiosas).
Recorre-se a filmes (de actualidade, como os linchamentos no
Estado Islâmico ou declarações mais ou menos caricatas de pastores de distintos
cultos), caricaturas, sim, lá está o traço inconfundível do Charlie Hebdo no
seu pior, citações das escrituras ou do Corão, fotografias e muito mais, em
defesa do sim e do não. O maniqueísmo é absoluto, a já descrita violência
(verbal ou, neste caso, escrita e visual) servida a rodos e com generosidade.
Os anti-religião recorrem a múltiplas
formas para desacreditar “o inimigo” (os crentes): são os habituais recursos de
estilo, ironia e sarcasmo, generalização, argumentos científicos última ratio,
invocação de causalidades impossíveis de provar (religião = guerras, ódio,
miséria). A julgar pelo conteúdo ou tom dos textos, são quase todos ateus. Não
são agnósticos, são ateus.
Faz toda a diferença: os ateus
negam a existência de qualquer Deus, os agnósticos não o aceitam nem o negam,
limitam-se a considerar ser impossível para a razão humana analisar e apreender
quaisquer questões metafísicas. E o sentimento anti-religioso é conduzido por
ateus em nome da razão, qual Deus de uma causa: a destruição (ou conversão?)
dos crentes. Colocam-se assim no mesmo plano dos que criticam. Sob pena de uma insanável
contradição, a condenação da religião como responsável secular pela violência
no Mundo não pode basear-se na violência, seja ela física, verbal ou escrita.
“Imagine”, pedem-nos os criadores
do grupo: imagine? “Imagine… there’s no heaven”.
Imaginemos levar à letra as palavras de John Lennon, a proposta de um Mundo sem
religião, sem inferno em baixo (“no hell below us”), em paz, gente a viver em
harmonia, “como um só”. Um Mundo “living for today” numa imensa fraternidade,
“brotherhood of man”, e partilha. Soa a utopia? É utopia; é, aliás, matéria de
muitas utopias. E é também, curiosamente, o ferro de que foi forjado o
cristianismo, nas primitivas asserções bíblicas designável (e muitas vezes
designado) “comunismo primitivo”.
Utopia: Lennon imagina um Mundo
sem países, sem nada por que matar ou morrer; sem propriedade ou bens privados
(“no possessions”), sem ambição nem fome. Um ideal inexistente que certamente
não apreciariam 90% dos ateus militantes anti-religião, um não-lugar mais
utópico do que o “paraíso” de Thomas Morus a que aportou o jovem português
Rafael Hitlodeu.
Utopia, como é utópica é a ideia de uma civilização humana sem
religiões. E é interessante recordar que a mais radical e sistemática rejeição
do direito humano de crer em deuses é a do comunismo, outra utopia, que lhe
chamou “ópio do povo” e proscreveu a prática religiosa como inimiga do Estado
(soviético, chinês, cubano).
A religião é por definição um
caminho de esperança, alternativa aos totalitarismos de que acaba sempre por se
tornar inimiga; e não se confunda esse facto com conivências ou cumplicidades
forjadas no molde da cupidez, ambição e estupidez humanas, nem com a violência
e o obscurantismo em que se geraram aberrações como a Inquisição ou os actuais
radicalismos islâmicos.
As religiões são sempre, na essência, buscas de
fundamento e caminho, e a competição entre elas, que existe, não faz sentido. O
ser humano precisa, para sua sanidade e equilíbrio, de transcendente. Acreditar
em Deus, em qualquer Deus, mesmo num deísmo a que se chega por gnose, isto é,
directamente, percorrendo através da intuição o caminho da salvação e a busca
da imortalidade humana, é profunda e muito naturalmente humano, faz mesmo parte
da natureza do humano.
Uma razão para a necessidade de
transcendente é justamente a incapacidade da razão de tudo explicar, deixando
sem respostas os frágeis habitantes do terceiro planeta a contar do sol: quem
somos? De onde vimos? Para onde vamos (sobretudo isso)?
Dizem-nos que a ciência já
explica quase tudo. A sério? Então porque razão não temos a menor ideia do que
é feita a matéria escura e ainda menos a energia escura, explicação possível
para a expansão acelerada do Universo?
A ciência explica tudo… mas não consegue
explicar 95,6% da composição do nosso Universo? A verdade é que ela ainda explica
muito pouco. Isto não é negá-la, não tem nada a ver com criacionismo ou
crendice, é apenas colocar as coisas no lugar. E quanto ao que sucede
antes do big bang, são várias as teorias, da existência de um Universo precedente
à ideia da escala infinita.
A verdade (como julgo ter ouvido, não sei onde, a
Neil deGrasse Tyson, o já famoso apresentador da nova versão de Cosmos) o que
se passa antes do big bang é do domínio da metafísica e de Deus, um
Deus qualquer.
O ser humano precisa de
transcendente, repito. Precisa de uma fé que lhe dê esperança e o justifique, e
tanto mais quanto mais miserável for a sua vida. Algo em que os ateus pecam
(perdoem-me a ironia do verbo maldito) é a aparente incapacidade de perceber a importância
da religião, seja ela qual for, para os mais desfavorecidos; imaginem, meus
amigos do “imaginem”, que aos animistas da pobre África profunda, aos islamitas
das aldeias remotas do Atlas, aos cristãos das favelas lúgubres da América
Latina, se negava a possibilidade de crer num além feliz, no Ser (ou nas forças
da natureza) transcendente que os ama apesar da sua aparente exclusão do
banquete humano? Cruel, diriam?
Mas não só: já em tempos citei
Miguel de Unamuno e a sua versão racional: fomos nós, humanos, que inventámos
Deus, e a religião (todas elas, digo eu), pondo-o ao serviço da nossa própria
justificação, da sede de imortalidade que nos habita.
Para que se ao nada
estivermos destinados, possamos viver de forma a torná-lo uma injustiça, acreditando.
Essa é a mensagem que vale a pena, não o ódio de ateus que recusam o direito
dos outros acreditarem no que quiserem. Direito a não acreditar, sem dúvida;
chamar cobarde a quem escolhe acreditar e acredita livremente, sem peias,
convictamente, parece cobardia. E é cruel…
O Papa Francisco já
explicitamente assegurou que também os ateus vão para o céu, desde que
pratiquem o bem. É interessante imaginar o encontro no céu entre ateus e
crentes. P: “Você é ateu?”. R: “Sou, graças a Deus” (do conhecido cartoon do
brasileiro Will Leite).
* Professor da Universidade
Católica, Instituto de Estudos Políticos.
Fonte: http://observador.pt
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