A nova terra santa – Por Ricardo Feltrin
A coexistência entre estado laico
e uma das maiores pluralidades religiosas do mundo transformam o Brasil no
lugar perfeito para novas crenças que são motivo de polêmica em outros países.
Você tem alguma religião?
Considera-se um cristão? Acredita em Deus? Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), a chance de você ter respondido "não" a
essas três perguntas é de apenas 8%.
Essa é a porcentagem da população
brasileira que declara não ter nenhuma religião, ser ateia ou agnóstica. Mas os
cerca de 15 milhões de brasileiros declaradamente ateus ou agnósticos não vivem
imunes a esse poder.
Pelo contrário. Enquanto você lê
este TAB, a maior bancada do Congresso, a evangélica, age para mudar as
leis de acordo com sua fé e dogmas. Às vezes a vítima está até na
própria política: este ano, o deputado Cabo Daciolo foi expulso do PSOL porque
queria substituir a expressão constitucional "todo poder emana do
povo" para "todo poder emana de Deus". O PSOL o acusou de ferir
o princípio do Estado laico. Mesmo expulso, o Cabo Daciolo não ficou ao
deus-dará (perdão pelo trocadilho). Foi-lhe permitido manter o mandato.
A cada semana, pelo menos duas
novas igrejas são abertas apenas em São Paulo. A bancada evangélica é hoje o
maior "partido" do Congresso: quase 80 parlamentares, mais do que o
próprio PT, que tem 70 deputados federais. A religião também invade a vida de
100% da população brasileira através da TV e do rádio. Entre TVs pagas e abertas, as
igrejas que são donas de emissoras ou compradoras de horário exibem atualmente
mais de 5.000 horas de programação por mês. É o segundo maior conteúdo, só
atrás da categoria filmes & séries.
Em rádios AM e FM, então,
evangélicos nadam de braçadas. A tecnologia, indiretamente, também trabalha a
favor da religião. Hoje há sites e aplicativos que permitem assistir a uma
missa ou culto em tempo real, em seu celular. Além disso, pequenas máquinas de
cartão de crédito e débito tornam possível ao fiel fazer doações ou pagar o
dízimo de forma rápida e segura.
Capital da Fé
A religiosidade se expande no
Brasil por um motivo fundamental: o país sempre foi aberto, tolerante e fértil
para qualquer religião, não só as cristãs-evangélicas. Na Alemanha, ser fiel da famosa
Igreja da Cientologia pode fazer uma pessoa virar alvo de discriminação de
vizinhos e colegas de trabalho.
Seguir e beber o Santo Daime na Indonésia
certamente fará o fiel ser condenado à morte. Até poucos anos atrás, quem fosse
pego lendo o guru do xamanismo Carlos Castaneda (1925 - 1998) na China ia para
a cadeia. Na Rússia, tentaram banir a literatura associada ao Quarto Caminho,
de George Ivanovitch Gurdjieff. Seja a velha teosofia ou neoteosofia, nenhuma
das duas é bem-vinda em países muçulmanos, como Arábia Saudita e Líbia.
No Brasil, no entanto, todas
essas velhas e principalmente as novas religiões, as que surgiram nos últimos
50 anos, não só são bem-vindas como florescem e se espalham mais que aroma de
incenso queimando. A Igreja Hillsong tem no astro
canadense Justin Bieber um dos seus fiéis convertidos. A australiana Igreja
Hillsong, uma das mais atuantes e em expansão da atualidade, anuncia para
dezembro a abertura de seu primeiro templo no Brasil, em São Paulo.
Ligada às Assembleias de Deus, a
Hillsong tem um forte trabalho social e cultural em todo o Reino Unido. Uma da
de suas marcas registradas também é a propagação do louvor e da música gospel
de elevada qualidade, que, aliás, é imitada ou reproduzida por artistas de
quase todos os países, inclusive o Brasil.
A chegada da Hillsong é apenas
mais uma semente fertilizada nas últimas décadas no país. Desde o final dos
anos 90 e início dos anos 2000 várias vertentes evangélicas surgiram, como a
Igreja Mundial (de Valdemiro Santiago, banido da Igreja Universal); a Plenitude
(de Agenor Duque, dissidente da Mundial), e a Bola Neve (do apóstolo Rina,
ex-pregador da Renascer).
Polêmica sem sermão
Mas as novas religiões distantes
da fé cristã, judaica, hinduísta ou budista também crescem no país com
liberdade. A Igreja da Cientologia, por
exemplo, que ficou famosa (e polêmica) graças à presença de ilustres fiéis como
Tom Cruise e John Travolta, foi perseguida por décadas em países como EUA,
Alemanha e França, acabou liberada em todos.
No Brasil, isso nunca ocorreu. A
igreja desembarcou em 1994 com a missionária Lucia Winther e hoje já são três
sedes instaladas em São Paulo. Ela atribui as polêmicas ao pouco conhecimento
de quem produz conteúdo sobre a igreja. Há inúmeras reportagens, documentários
e livros que desabonam a Cientologia. "Você sabe que é sempre notícia ruim
que dá cartaz", diz Lucia.
A Cientologia é uma religião
prática. Não tem rituais e nem propaga a fé, tampouco a salvação da alma.
"Na Cientologia você não precisa acreditar em nada, não ouve sermões. Você
analisa e experimenta tudo. Se for verdadeiro para você será", afirma
Lucia Winther.
A igreja defende a evolução do ser humano e se baseia em dois
fundamentos: o estudo com afinco à vasta obra de L. Ron Hubbard (1911-1986) e a
aplicação de testes chamados de "audições". Nessas audições, o fiel é
submetido a uma espécie de sabatina na qual uma "auditora" treinada
por anos nos EUA sabatina o fiel com perguntas genéricas e pessoais.
O fiel responde à sabatina monitorado
por um aparelho criado por Hubbard, chamado e-metro. Trata-se de um mensurador
de energia eletromagnética, que lembra vagamente um detector de mentiras. A
reportagem do TAB se submeteu a uma sessão com o e-metro na sede da
igreja.
Talvez nenhuma religião esteja em
mais sintonia com a era tecnológica do que a cientologia. É preciso pagar para
fazer as sessões de audição, e os valores variam. "Nós temos de pagar
aluguel, funcionários, treinamento, impressão de livros. Como vamos pagar sem
dinheiro?", diz Carmélia Rodrigues, auditora da cientologia. Porém, a
igreja não obriga os frequentadores a fazer as audições ou pagamentos.
Outra escola religiosa, ou de
filosofia aplicada, que encontrou interesse e terra fértil no Brasil foi a
escola do Quarto Caminho. Há vários grupos independentes dessa linha, que se
baseia no conhecimento legado por George Ivanovitch Gurdjieff (1866-1949) e P.D
Ouspensky (1878-1947).
Um dos maiores grupos do Quarto
Caminho é o Instituto Gurdjieff do Brasil, mas há outros menores e bem mais
fechados, como a Fellowship of Friends, com sede permanente na Califórnia, EUA,
e presente aqui, mas sempre em endereços incertos e mutáveis.
O Quarto Caminho ficou conhecido
do grande público no final dos anos 70, com o filme: "Encontro com Homens
Notáveis", de Peter Brook. A obra contava a impressionante saga de
Gurdjieff em busca do conhecimento definitivo para evolução humana.
Como a cientologia, também renega
a fé. Se baseia em práticas específicas, tanto físicas como
"psicológicas" e todas visam a evolução máxima possível ao homem. Uma
das bases do Quarto Caminho é que o ser humano está adormecido e vive de forma
mecânica do nascimento à morte. A única forma de despertar é por meio da
lembrança de si mesmo, uma transição para a interrupção do diálogo interno.
Ninguém para de pensar nunca, como todos sabem.
Culto na Selva
Outra igreja que encontrou bom
terreno no Brasil, em todos os sentidos, é o Santo Daime, que se baseia na
ingestão de uma bebida alcaloide preparada com dois vegetais existentes na
Amazônia: a folha de chacrona e o cipó jagube (ou mariri). Há, claro, um líder
(padrinho Alfredo), mas o aprendizado e evolução do fiel ocorre de acordo com o
que cada um vivencia após ingerir a bebida. Há os mais diversos efeitos, aliás,
desde vômitos, sofrimento e penúria, até estados de graça, chamados de miração.
O culto surgiu no início do
século 20 por meio do desbravador maranhense Irineu Serra, o Mestre Irineu
(1892-1971). Ele disse ter tido contato com um espírito da floresta,
identificado por ele como a Virgem Maria, que lhe ensinou o preparo da bebida e
cedeu os primeiros hinários.
O Daime tem hoje cerca de 2.000
fiéis fardados no Brasil (são os iniciados oficialmente). Há um número muito
maior de frequentadores casuais ou visitantes. A religião também virou um polo
de atração de estrangeiros. Segundo o jornalista Oswaldo Guimarães Carvalho,
que mora em plena floresta, anualmente cerca de cem visitantes, a maioria
oriundos de EUA e Espanha, viajam até a Amazônia para conhecer a igreja sede
do daimismo, instalada no Céu do Mapiá.
Ao contrário de outras religiões,
a Igreja do Santo Daime não dá ênfase a seus líderes humanos. Trata-se de uma
pequena comunidade instalada a cerca de oito horas de barco de Boca do Acre, que, por sua vez, fica a 212 km da capital Rio Branco. É preciso muita fé para
chegar lá.
Oswaldo, o Vado, como é
conhecido, abandonou São Paulo 15 anos atrás e hoje é um fiel atuante da
igreja. "Não sinto falta alguma da cidade." O Daime é permitido no
país inclusive pela Senad (Secretaria Nacional Antidrogas), categorizado como
bebida ritualística.
Deuses Predadores
Mas, se Daime ou a Cientologia
são consideradas religiões polêmicas, é porque boa parte das pessoas nunca
ouviu falar do nagualismo ou xamanismo pré-colombiano. Isso sim parece coisa de
ficção científica. Ou de terror, dependendo da perspectiva de quem conhecer.
O Xamanismo (ou Nagualismo ou
Toltequidade) ensina que há dois tipos de seres no universo: os orgânicos e os
inorgânicos. Até aí o espiritismo também crê nisso. Orgânicos e inorgânicos são
abundantes e quase infinitos e estão presentes em todo o universo (ou seja, há
vida orgânica fora da Terra).
Para os xamãs, porém, milhares de
anos atrás, em tempos imemoriais, uma dessas "espécies" inorgânicas
chegou à Terra atraída pelo brilho da consciência humana. Fizeram da humanidade
uma presa.
Esses seres, muito mais antigos
que os humanos, têm natureza predatória. Se alimentam da luz da consciência (ou
das vibrações). Para ampliar essa luz e dominar os humanos, esses seres fizeram
uma manobra espetacular do ponto de vista de um predador: eles nos deram o que
conhecemos como a mente.
Eis o motivo, dizem os xamãs,
porque os humanos não conseguem nunca interromper os pensamentos, parar de
pensar, de brecar o diálogo interno. O motivo é que essa mente histérica e
hiperativa não pertence a nós. Ela é uma instalação literalmente alienígena. É possível interromper essa
subserviência, dizem os novos videntes toltecas, mas não é nada fácil. Para se
livrar desses seres, chamados em espanhol de Voladores (ou voadores, porque
lembram uma sombra negra que voa ameaçadora), é preciso começar a seguir três
práticas, entre outras tantas.
Quer um xamã na sua vida? Então
vá atrás. Nenhum deles irá atrás de você jamais. Antes que você se pergunte:
mas por que devemos tentar nos livrar deles? Para os feiticeiros-xamãs, essa é
a única forma de o ser humano evoluir e atingir novos níveis de consciência.
Até lá seremos prisioneiros. Eis a cartilha da libertação: fazer exercícios
chamados de tensegridade, que lembram movimentos do Tai Chi Chuan ou Kung Fu,
mas foram desenvolvidos para facilitar a reorganização de energia e a interrupção
do diálogo interno; a recapitulação, um exercício solitário, no qual devemos
lembrar cada momento de nossas vidas; e o "ensonho" (ensueño), que é
aprender a nos tornar despertos durante o sonho. Sim, para os xamãs isso é
possível, embora desde criança os adultos nos ensinem que "sonhos, sonhos
são".
Ou seja, a mente comum está longe
de ter sequer qualquer amizade com as práticas xamãnicas. O Xamanismo está
presente no Brasil com vários grupos, alguns fechados e outros abertos. Ele
ficou conhecido do público só no final dos anos 60 com o livro de estreia de
Carlos Castaneda ("A Erva do Diabo"). Um dos grupos mais ativos no
país hoje vem de uma cisão do nagualismo dos anos 90 e se chama Being Energy.
Trata-se de uma escola criada também por dois ex-discípulos de Castaneda.
A terapeuta, escritora e
tradutora Patrícia Aguirre é a representante dessa linha no país. "A Being
Energy torna os ensinamentos de Castaneda muito mais acessíveis por usar uma
linguagem mais direta e dos nossos tempos. Seus fundadores [o casal Aerin Alexander
e Miles Reid] conviveram com Castaneda e receberam instruções diretas de
aproximar os ensinamentos Toltecas (nagualismo) das descobertas mais
modernas", afirma.
Um dos temas mais polêmicos da
obra de Castaneda diz respeito ao sexo. O mestre do escritor exigia dele
celibato e isolamento de amigos. "Há confusão sobre o que D. Juan ensinava
sobre os relacionamentos, que não se deve casar, fazer sexo. Mas ele se referia
à configuração energética apenas de Castaneda. Também tem a ver, claro, com a
perda de energia causada pela socialização. Comprometemos a nossa energia
quando nos envolvemos de forma inconsciente em relações, e isto inclui o
sexo", explica Patrícia.
Se nenhuma das velhas ou novas
religiões lhe convenceu, mas despertou curiosidade, não faltam oportunidades
para entendê-las melhor em seu discurso de bem-estar, cultura da paz e expansão
da consciência. Eventos como a Jornada Being Energy, de 6 a 15 de julho, na
Chapada Diamantina, na Bahia, e a 1ª Virada Zen de São Paulo, em 24 e 25 de
outubro, estão aí para isso.
Deus os Abençoe! Namastê! Shalom!
Amém!
Ricardo Feltrin - Colunista do UOL. É homem de pouca fé, mas, enxerido, já esteve em quase todas as igrejas citadas neste TAB.
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