Santidade política – Por Marcelo Barros
Depois de longas discussões e
atropelos, o Vaticano retomou o processo de canonização de Dom Oscar Romero.
Nesse último sábado, 23 de maio, na praça principal de El Salvador, a Igreja
Católica o proclamou beato, etapa anterior ao reconhecimento oficial de que ele
viveu uma santidade que é exemplo para todos. Do mesmo modo, no domingo 03 de
maio, com permissão de Roma, a arquidiocese de Olinda e Recife abriu o processo
de canonização de Dom Helder Camara.
Conforme a fé cristã, todas as
pessoas batizadas são santificadas pela graça divina. Toda pessoa humana é
imagem e chamada a ser semelhante a Deus. Então, vivos e falecidos, somos todos
santos e santas, não por virtudes que possamos ter, mas pela ação do Espírito
Divino em nós. Isso deve ficar claro: o papa ou a Igreja não tornam ninguém
santo.
Deus é que santifica todos os seus filhos e filhas, espalhados pelo
mundo, pelos quais Jesus deu a vida (Jo 11, 52). Seja na Igreja Católica, seja
nas Igrejas Ortodoxas, canonizar uma pessoa significa apenas declarar que, além
de ter sido santificado/a por Deus, aquela pessoa é exemplo de santidade para
todo mundo.
Embora todos/as os batizados/as
sejam santificados, desde o início, o povo cristão sempre teve o costume de
venerar especialmente algumas figuras especiais de irmãos e irmãs falecidos,
cujo testemunho de vida pudesse animar o povo no caminho da fé. Assim, foram
reconhecidos como exemplos de santidade os apóstolos e mártires. Eram
reconhecidos como exemplos de santidade por terem dado a sua vida para que, no
mundo, se realize o projeto divino.
Nos primeiros séculos, os santos eram
canonizados por aclamação popular. (Canonizar significa colocar o nome da
pessoa no cânon, isso é, na lista dos santos reconhecidos pela Igreja como
exemplos de santidade). A partir da Idade Média, surgiu o processo de
canonização.
O objetivo da canonização é
estimular todo o povo de Deus a percorrer o mesmo caminho de santidade. O
processo de canonização analisa a vida e a obra do santo/a em questão. Até
agora, se pede o reconhecimento de ao menos três milagres, operados por Deus,
através da sua intercessão.
Hoje, a noção de milagres deve ser revista porque a
ciência atual tem uma visão bem mais ampla de cura. Em muitas religiões e
tradições espirituais, existem curadores/as e pessoas que fazem milagres. Com
todo respeito por essas tradições, nem sempre essas figuras de milagreiros são
exemplos de ética e de vida justa.
Também a própria Igreja mudou a
forma de compreender a santidade. No decorrer da história, foram canonizados
santos guerreiros, conquistadores e até cardeais que, como São Roberto
Belarmino, em sua vida, dirigiram tribunais de inquisição e presidiram sessões
de tortura contra cristãos considerados hereges. Sem negar que tais pessoas
possam ser santos, no sentido de estar em Deus e com Deus, de fato, atualmente,
só fundamentalistas e grupos terroristas considerariam tais pessoas como
exemplos de santidade.
Também devemos reconhecer: em outras épocas, o modelo
dominante de santidade era de ascetas que mortificavam o corpo. Quase não
comiam e pareciam viver fora do mundo real. Por isso, alguns critérios do
processo de canonização precisam ser revistos e modificados à luz do Evangelho.
Ao reconhecer figuras como Oscar
Romero e Helder Camara como santos, o magistério da Igreja parece propor outro
modelo de santidade, baseado principalmente na capacidade de viver a
solidariedade humana e defender a vida e a justiça em todas as suas dimensões.
Cada vez mais, o mundo precisa desse tipo de santidade social e política a
serviço do reinado divino no mundo. Em si, Oscar Romero e Helder Camara nem
precisariam de canonização. Ambos já são aclamados como exemplos por todo o
povo. No entanto, se a hierarquia da Igreja Católica quer reconhecê-los como
santos exemplares, Deus queira que seja para que todos nós nos comprometamos a
seguir o exemplo e a profecia que eles nos deixaram.
No ano 2000, a Igreja Anglicana
colocou no pórtico da Catedral de Westminster, em Londres, figuras de cristãos
que os anglicanos consideram santos, mesmo sendo de outras Igrejas. Assim,
antes do Vaticano reconhecer o bispo católico Oscar Romero como santo, o papa
Bento XVI visitou Londres em 2010. Ao entrar no pórtico da Catedral anglicana,
passou pela estátua de Dom Romero, já reconhecido como santo pelos anglicanos.
O que atualmente, no céu, Dom
Romero e Dom Helder mais gostariam de ver na terra é toda a Igreja universal
seguir as propostas de renovação eclesial feitas pelo Papa Francisco, na linha
que eles dois, em seu tempo, já ensaiavam. Certamente, os obstáculos existem,
mas, como diz a carta aos hebreus: "Cercados por tais testemunhas, (Romero
e Helder Camara) libertemo-nos dos obstáculos e corramos na direção do Cristo”
(Hb 12, 1).
Marcelo Barros
Monge beneditino, escritor e
teólogo brasileiro. Em 1969 foi ordenado padre por Dom Helder Camara e, durante
quase dez anos, de 1967 a 1976, trabalhou como secretário e assessor de Dom
Hélder para assuntos ecumênicos. É um dos três latino-americanos membros da
Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo
(ASETT), que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia e ainda minorias
negras e indígenas da América do Norte.
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