É divino, maravilhoso: o império do Divino Espírito Santo, o imaginário e as insistências da memória na Cidade de Goiás – Por Alex Mendes
A Cidade de Goiás me inspira a
pensá-la.
Encontramos na cidade e nas suas tradições ecos importantes do que já
fomos e do que representávamos, vestígios de fazeres próprios da nossa cultura
e saberes de épocas passadas que ainda servem, de forma importante, para nos
definir como goianos. Aqui e em nossas outras tantas cidades históricas,
encontramos práticas que vêm do passado e invadem o século presente e nos
marcam.
A memória dos vilaboenses está em seu corpo social. Jacques Le Goff, na
sua obra Memória e História, citando Pierre Nora, diz que memória coletiva se
define como o que fica no passado, no vivido dos grupos, ou que os grupos fazem
do passado.
Essa lição importante do eminente medievalista francês justifica a
minha profunda simpatia pela Cidade de Goiás, suas velharias (como muitos
dizem), suas invenções do passado e do presente, suas tradições, ora
celebradas, ora desprezadas dentro e fora dos limites de sua urbe.
Sem a resistência contra a
remanência da memória do passado, e imbuído do desejo de vê-la ativa no
presente é que resolvi ler, com certo entusiasmo, a obra Os sentidos da
devoção: o Império do Divino na Cidade de Goiás (Séculos XIX e XX).
O título,
muito bem escolhido, dispensa apresentações mais gerais da obra. É um anúncio
de que vamos mergulhar num mar de memórias em torno do culto do Divino Espírito
Santo, a terceira pessoa da Trindade, uma profunda imersão no catolicismo
popular vilaboense. Memória é a palavra-chave do livro, como rezam os autores,
Clóvis Carvalho Britto, Paulo Brito do Prado e Rafael Lino Rosa na apresentação
do livro, intitulada: Memórias do Divino: um convite à entrada no imaginário
vilaboense.
Apresentado por Mary Karasch, uma das maiores autoridades
estrangeiras sobre a história brasileira, professora emérita da Universidade de
Oakland, nos Estados Unidos, a obra tem o peso do ineditismo e da ousadia
desses pesquisadores.
Essa incursão começa com o
primeiro passo, entrando na Folia do Divino em torno do Campo de Santana (Praça
da República), no Rio de Janeiro. Esse texto, apesar de não tratar das
tradições do espaço urbano vilaboense, é um excelente modo de nos introduzir à
Festa do Divino em sua plenitude.
Martha Abreu abre a série de nove ensaios de
modo magistral, pois seu texto: História, cultura e poder nas festas do Divino
Espírito Santo ensina ao leitor de onde vem essa devoção, como acontecia na
capital do império no século XIX, quando já acontecia aqui em Goiás,
sincronicamente.
A realidade carioca e as práticas de Vila Boa se pareciam de
modo surpreendente. O texto se aprofunda na economia material e simbólica da
festa, mostrando as relações de poder e consumo ali presentes, a existência da
devoção, o esforço das autoridades para controlá-la, ações que também se farão
presentes na terra dos Goyazes.
A partir da leitura de Martha
Abreu, proponho um trajeto diferenciado pela obra. O próximo texto a se ler
seria o de Clóvis Britto, Entre mascarados, mouros e cristãos: Por uma memória
topográfica das cavalhadas no Campo do João Francisco em Goiás. O ensaio trata
da decadência das cavalhadas como parte da Festa do Divino, na Cidade de Goiás,
num processo que lembra o descrito pela autora do primeiro texto. Parece ao
leitor que as disputas em torno dos poderes em curso na Festa do Divino incluem
uma luta clara pelo espaço físico onde acontecem.
Do Paço da Catedral, passando
pelos itinerários mutantes dos bandos precatórios, ao campo das cavalhadas e
folguedos, a realização da festa é uma luta de espaços, embate num tabuleiro de
xadrez. O lugar ocupado pelos folguedos do Divino, pelo palanque para os
espectadores das cavalhadas vilaboenses, assim como o Campo de Santana do Rio
de Janeiro, parecia estar numa disputa velada por sua ocupação.
O Campo do João
Francisco foi ocupado de diversas formas até virar bairro da Cidade de Goiás,
na segunda metade do século XX. Os registros não apoiam uma afirmação direta
que justificasse um boicote à atividade, mas mostram que seu cessar se deu com
o tempo, caindo sob o poder do rígido controle sobre as Festas do Divino, vindo
da administração pública e da Igreja, sempre impondo a romanização da festa
popular, desde o século XIX.
O trajeto da leitura pode agora
voltar ao segundo texto, de João Guilherme Curado e Tereza Caroline Lôbo,
Divino Goiás: O espaço da festa e a festa no espaço (Séculos XIX e XX), que
também trata de itinerários, ocupação do espaço e sua relação com o simbólico
da festa na Cidade de Goiás.
O foco desse ensaio é nas ações da festa, no
comer, beber, rezar, cantar e dançar. Enfoca-se o fluxo dessa festividade sobre
o espaço vilaboense. O fluxo (saída dos bandos precatórios) e o refluxo (vinda
dos fiéis para os festejos na cidade). O texto também mostra o papel
romanizador da Igreja perante os fiéis e os participantes da festa, quaisquer
que sejam.
A romanização se intensifica no século XIX, principalmente porque o
texto narra a criação de uma diocese nessas paragens, em 1826. Essa movência da
Igreja sobre o espaço vilaboense fez o caminho contrário, quando do episcopado
de Dom Eduardo, no final do século dezenove. Esse bispo, por causa de
constantes desentendimentos com o Imperador do Divino, transfere a sua
residência para Uberaba, marcando um claro retirar-se dos poderes
ultramontanos, romanizantes e reguladores da Igreja, restaurados pelo próximo
bispo, a partir do século vinte.
O segundo trajeto do livro
percorre os textos de Sônia Maria de Magalhães, Ana Carolina Eiras Coelho
Soares, Paulo Brito do Prado, Clóvis Carvalho Britto e Carlos Brandão. Nesses
ensaios, o foco é na antropologia das diferenças e exclusões da Festa do Divino:
mulheres, crianças e negros são o foco dos trabalhos dos autores. O primeiro
texto desse percurso, o terceiro do livro, de Sônia Maria de Magalhães e Ana
Carolina Eiras Coelho Soares, Festa do Divino em Goiás: Mulheres, relações de
gênero, lembranças, festa e comida, trata da figura da mulher e seu papel na
devoção. Detentoras do saber fazer, organizadoras principais, trabalhavam em
prol da devoção ao Divino e pelo prestígio dos donos da casa, seus maridos,
pais e outros homens. O texto mostra a dimensão da ação feminina, passando
pelas memórias de Ofélia Monteiro, Anna Joaquina Marques e Cora Coralina.
O texto de Paulo Brito do Prado:
As muitas faces do Espírito Santo: gênero, devoção e silêncios na cidade de
Goiás (Séculos XIX e XX), baseia-se na memória das testemunhas históricas da
Festa do Divino ao tratar do papel feminino, relegado a segundo plano pela
Igreja e pelas instituições sociais no século XIX. A ação das mulheres era
sempre posta sob silêncios e interdições nas celebrações católicas. Nesse
ínterim, a Festa do Divino era um importante espaço de exercício de
resistência.
O texto também trata da romanização e dos conflitos religiosos
durante a Festa do Divino, tendo como ponto alto o conflito entre Dom Eduardo,
bispo de Goiás e Eduardo Pereira de Abreu, festeiro do Divino. Relações
aparentemente pouco importantes, mas que se revelam cruciais no exercício do
poder religioso foram mostradas nesse capítulo. O resultado do embate entre os
Eduardos certamente foi a prevalência da romanização sobre os costumes
populares. Nessa esteira, está também a restrição ou proibição dos festejos dos
negros.
Clovis Carvalho Britto escreve
sobre Benedicto D’Abadia, em Dos “batuques dos pretos” aos grilhões do
silêncio: Benedicto D’Abadia e a festa do Divino Espírito Santo dos Meninos em
Goiás (Século XIX), ex-escravo ativista religioso e cultural do século XIX, que
organizou a festa do Espírito Santo dos Meninos. Clovis Britto, a partir da
história desse ilustre desconhecido, apagado dos registros oficiais, prova que
a Festa do Divino era uma oportunidade única de protagonismo cultural,
religioso e econômico da população escravizada ou marginalizada.
As descobertas
do pesquisador confirmam a tese de que festejos do Rosário e de São Benedito
faziam parte dos festejos do Divino, mostrando claramente quais eram as festas
de pretos e brancos na cidade, à moda do que Carlos Brandão teria feito em
Pirenópolis, GO.
Os apagamentos históricos sobre Benedicto deixaram rastros
embaixo de camadas arqueológicas de dizeres depositados que revelam fatos
interessantíssimo, entre os quais escolho ressaltar a relação entre a festa do
Espírito Santo dos Meninos e Dom Pedro II, infante, tendo assumido o trono
ainda adolescente, numa relação interessante em que se repete no sagrado o que
acontece no profano, assim na Terra como no Céu.
Carlos Brandão retoma o seu
estudo a respeito das congadas vilaboenses, no seu ensaio A dança dos Congos da
Cidade de Goiás. O texto narra e analisa a decadência da dança dos Congos e
Tapuios, sob o impacto da modernidade.
A dança narra uma espécie de auto de fé,
em que as lutas entre negros e seus inimigos, com a prevalência dos cristãos ao
final, faladas reconfigurações identitárias e da permanência da segregação
discriminatória dos negros, aos quais sobram os lugares de escravos ou
marginalizados na sociedade. Os negros sabiam que seu papel no mundo
cristianizado era de inferioridade e submissão, por isso o exercício da
resistência pela dança popular, pela monumental Entrada da Rainha, talvez Oxum,
se amarela de ouro, talvez Yemanjá, se coberta de azul, talvez Yansã, se de
carmim e armas à mão, talvez Nanã, se coberta de flores e púrpura. Não sabemos.
Saberemos um dia?
Os textos de Rafael Lino Rosa e
Fernando Cupertino de Barros se integram de modo interessante à obra toda.
Podem ser lidos em sua singularidade temática, em separado ou integradamente.
A análise de Cupertino de Barros
da musicalidade da Festa do Divino no texto: A música no ciclo da festa de
Pentecostes na Cidade de Goiás mostra suas décadas de pesquisa e trabalho sobre
o tema, que perpassa a prática musical da festa, uma vez que o autor colaborou
com a execução dos coros cantados e da parte instrumental na cidade.
O músico
mostra a presença da música nas novenas e na serenata do Divino Espírito Santo,
com ênfase no estudo da letra e melodia do Hino ao Divino Espírito Santo, de
autoria de Pio Joaquim Marques e José Iria Xavier Serradourada, o papel da
música da liturgia das partes menos romanas da celebração, como a serenata e a
ascenção do mastro, no largo da Catedral.
O autor ainda faz jus à história
musical daqueles que colaboraram com a festa, para a manutenção de suas
músicas, parte da economia festiva local, assim como as comidas, as práticas
litúrgicas, paralitúrgicas e os itinerários da folia.
O texto de Rafael Lino Rosa, O
Espírito Sopra onde quer: De Ruah do Deserto ao Divino da Cidade de Goiás,
manifestações do Carisma, é único, por se configurar como um tratado teológico
profundo sobre pneumatologia bíblica judaico-cristã ocidental, feito com esmero
e pesquisa. Lançando mão da literatura sagrada e esotérica à mão, o autor prova
que o mesmo Espírito do Deserto, errante, que inflou do primeiro ao último
profeta, anima, fortalece e faz com que os bandos precatórios da Folia do
Divino percorram cidade e campo por devoção e fé, assim como Ruah impeliu os
judeus pelo Sinai, até Canaã.
Acima de tudo, o texto de Rafael mostra a
impossibilidade de se conter o impulso de Ruah dentro de moldes impositivos das
instituições humanas. É da pneumatologia escatológica que o autor retira
categorias de análise que permitem esclarecer os tabus e histórias fantásticas
do imaginário popular sobre o Espírito Santo. Há toda uma estrutura do medo do
Espírito e sua condenação cabal, biblicamente embasada pelas advertências dos
evangelhos, de que todo pecado será perdoado, menos a blasfêmia, a negação, a
apostasia direcionada ao Espírito.
As análises de Rafael Lino Rosa não se
limitam, no entanto, à teologia. O Divino Espírito Santo toma uma importante
força no seu texto, como uma divindade que, para além do Pai e do Filho, anima,
vivifica, transforma e distribui entre todos os prazeres e os frutos da terra.
Aparecendo no Domingo de Páscoa, o Divino eclipsa a figura central do
cristianismo, relegando a um plano de quase esquecimento a figura de Cristo, de
Deus Pai e de outras devoções. O mariano mês de maio passa despercebido, mesmo
que pelas novenas, ainda que nelas se reze a Maria e a Jesus (ave-marias e
credo) e Deus (pai-nosso e credo), um Deus sem corpo, feito de ar, e que se
manifestou em Cristo como uma Pomba mística, pregando um evangelho de alegria,
copos cheios e comida farta, sacia a fome material e espiritual de pobres e
ricos há trezentos anos, pelo menos, nos sertões de Goiás.
A celebração de
Corpus Christi parece mais ser o final da Estação do Divino, com a posse do
Imperador, passagem das insígnias, minorando Cristo. Tão importante quanto a
existência de um outono Divinal, maravilhoso, farto em luzes, cor vermelha e
víveres, é a produção da identidade dos vilaboenses, de sua cultura, de seu
sentimento de pertença.
Essa obra, talvez, seja o que se
pode ler de mais rico a respeito da religiosidade goiana, atualmente. Nenhuma
obra analisa um fenômeno religioso de tamanha duração e com essa tal
intensidade. Mais do que uma história da religiosidade goiana, o texto é sobre
a formação da identidade, da circulação de bens simbólicos, poderes pelo local,
passa também pelo processo de civilização e subjetivização impostas pela Igreja
Romana.
A Festa do Divino era a mesa em que as negociações em torno do
simbólico e material estavam em jogo. Talvez o Campo do João Francisco seja o
exemplo topográfico mais claro das movências dos significados, símbolos e
poderes da Festa sobre a Cidade.
O desaparecimento da sua função de campo das
cavalhadas, a demanda do espaço para a urbanização e utilização de outras
formas também atende à proposta da extinção de poderes religiosos laicos e o
recorte mais minucioso da ação da Igreja. Uma luta que se travou no Campo do
João Francisco e o fechou para outras batalhas simbólicas, tendo todos ganhado
e perdido, deixando à caduquice da memória a lembrança dos idos de outrora.
A
permanência da Festa do Divino, mesmo que tenha sofrido extirpações religiosas
e culturais é um fenômeno notório. É essa síntese antropofágica, rapsódica,
absorvente. A mesma fome com que os foliões atracam os doces, as comidas e as
bebidas da Festa, também deglutem, digerem e metabolizam a mensagem cristã,
impelidos pelo desejo político (soprado por Ruah?) de terem espaço de ação,
fartura, sociabilidade e vivência comunitária.
(Alex Mendes, licenciado em
Letras: Português e Inglês, mestre em Letras e linguística pela Universidade
Federal de Goiás, pesquisador na área da Análise de Discurso, é também
professor da Rede Estadual de Educação, morador recente da Cidade de Goiás e
apaixonado por essa terra, suas riquezas materiais e imateriais).
Fonte: http://www.dm.com.br
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