Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988 - Por Ingo Wolfgang Sarlet


A controvérsia sobre o ensino religioso em escolas públicas, ora em debate no Supremo Tribunal Federal e objeto de recente audiência pública convocada pelo ministro Luis Roberto Barroso, relator do respectivo processo, recoloca em pauta o antigo mas sempre atual e polêmico tema da neutralidade estatal em matéria religiosa, ou seja, a posição ocupada pelo Estado em face do fenômeno religioso.

A despeito da afirmação do caráter laico do Estado Constitucional contemporâneo, como também se verifica no caso brasileiro desde a proclamação da República, nunca é demais relembrar que as liberdades de consciência, de crença e de culto, as duas últimas usualmente abrangidas pela expressão genérica “liberdade religiosa”, constituem uma das mais antigas e fortes reivindicações do indivíduo. 

Levando em conta o seu caráter sensível (de vez que associado à espiritualidade humana) e mesmo a sua exploração política, foi uma das primeiras liberdades asseguradas nas declarações de direitos e uma das primeiras também a alcançar a condição de direito humano e fundamental consagrado na esfera do direito internacional dos direitos humanos e nos catálogos constitucionais de direitos. 

Todavia, o modo pelo qual a liberdade de consciência e a liberdade religiosa foram reconhecidas e protegidas nos documentos internacionais e nas constituições ao longo do tempo é bastante variável, especialmente no que diz com o conteúdo e os limites de tais liberdades, o que também se verifica na esfera dos textos constitucionais.

O que chama a atenção, contudo, é que a despeito das diferenças existem elementos comuns, os quais podem ser detectados já com base em uma análise comparativa dos textos internacionais e constitucionais. 

Dentre tais aspectos em comum situa-se a distinção (mas tratamento conjunto) entre as liberdades de religião e de consciência, ao menos em boa parte dos casos, o que também se deu no plano da Constituição Federal de 1988,  que, no artigo 5º, VI, dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, além de assegurar (artigo 5º, VIII), que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei”.

Todavia, as duas liberdades (de consciência e de religião), por mais que guardem forte conexão, não se confundem e apresentam dimensões autônomas, pois a liberdade de consciência assume uma dimensão mais ampla, considerando que as hipóteses de objeção de consciência, apenas para ilustrar com um exemplo, abarcam hipóteses que não têm relação direta com opções religiosas, de crença e de culto, como bem demonstra Jayme Weingartner Neto, na sua obra referencial sobre o tema (Liberdade Religiosa na Constituição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79 e ss.), bastando ilustrar com o caso daqueles que se recusam a prestar serviço militar em virtude de sua convicção (não necessariamente fundada em razões religiosas) de participar de conflitos armados e eventualmente vir a matar alguém.

No contexto constitucional, assume relevo a circunstância de que, na condição de direitos subjetivos, as liberdades de religião e de consciência asseguram tanto a liberdade de adotar e cultivar (ou não) uma fé religiosa ou uma convicção ou ideologia, quanto geram direitos à proteção contra perturbações ou qualquer tipo de coação oriunda do Estado ou de particulares. 

Já como elementos fundamentais da ordem jurídico-estatal objetiva, tais liberdades fundamentam a neutralidade religiosa e ideológica do Estado, como pressuposto de um processo político livre e como base do Estado Democrático de Direito (Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg: C.F. Müller, p. 167).

O que chama a atenção, diante desse quadro aqui muito sumariamente esboçado, é a tentativa crescente de se buscar isolar a liberdade religiosa e mesmo reduzir fortemente o seu alcance ao desconsiderar o significado de sua dimensão objetiva e do correlato princípio (e dever) de neutralidade do Estado em matéria religiosa, consagrado no artigo 19 da CF. 

Note-se que também nessa seara inexiste, no cenário global, uma única resposta correta e a margem de ação dos diversos Estados Constitucionais é significativa. Não é, portanto, sem razão que Jorge Miranda enfatiza a necessidade de se distinguir entre laicidade e separação (no sentido de independência) entre Estado e Igreja (e comunidades religiosas em geral) e o assim chamado laicismo ou mesmo de uma postura de menosprezo e desconsideração do fenômeno religioso (das religiões e das entidades religiosas) por parte do Estado, pois uma coisa é o Estado não professar nenhuma religião e não assumir fins religiosos, mantendo uma posição equidistante e neutra, outra coisa é assumir uma posição hostil em relação à religião e mesmo proibitiva da religiosidade (in: Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, p. 448-49).

Importa destacar, ainda, que o laicismo e toda e qualquer postura oficial (estatal) hostil em relação à religião revela-se incompatível tanto com o pluralismo afirmado no Preâmbulo da Constituição, quanto com uma noção inclusive de dignidade da pessoa humana e liberdade de consciência e de manifestação do pensamento, de modo que a necessária neutralidade se assegura por outros meios, tal como bem o demonstra o disposto no artigo 19, I, bem como um conjunto de limites e restrições à liberdade religiosa, aspecto que aqui não será desenvolvido.

O postulado da neutralidade estatal em matéria religiosa, por sua vez, também interfere no exercício da liberdade religiosa, pois o poder público não poderá privilegiar determinada orientação religiosa, ainda que majoritária, como, por exemplo, se verifica na discussão em torno da colocação, ou não, de crucifixo em escolas e repartições públicas, que tem dividido a doutrina e a jurisprudência no Brasil e no direito comparado e internacional. Que a resposta correta depende de muitos fatores, inclusive e especialmente do marco do direito constitucional positivo, resulta evidente, embora nem sempre seja bem observado. 

A existência de uma tradição de tolerância e mesmo aceitação do uso de determinados símbolos religiosos ou mesmo de datas e feriados religiosos vinculados a uma orientação religiosa amplamente majoritária, sem que com isso se verifique uma intervenção desproporcional no exercício de liberdade negativa e positiva de religião por parte das demais correntes igualmente constitui critério relevante a ser observado, como, aliás, decidiu o Tribunal Europeu de Direitos Humanos no importante e recente caso Lautsi contra a Itália, julgado em caráter definitivo em 2011, no sentido de que os Estados que ratificaram a Convenção Europeia dos Direitos Humanos possuem uma liberdade de ação quanto a opção de manterem, ou não, o crucifixo em prédios do poder público e que não se configurou, no caso da Itália, uma violação da liberdade religiosa. 

Assim, embora a existência de decisões de Tribunais Constitucionais pela retirada do crucifixo, como foi o caso do famoso julgado do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em 1995, ou mesmo a recente e polêmica decisão administrativa do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do RS, que, mediante provocação de entidade não governamental e não religiosa, igualmente decidiu pela retirada do crucifixo dos prédios do Poder Judiciário Gaúcho (decisão de 06.03.2012), é possível argumentar que não se trata necessariamente da única resposta possível, mesmo e em especial no caso da ordem constitucional brasileira.

Em especial, é preciso ter sempre presente a circunstância que a o dever de neutralidade estatal nessa seara não poderão resultar nem em compressão desproporcional do direito fundamental de liberdade religiosa, nem em sua hipertrofia, de modo a instaurar um clima de intolerância para com outras formas de expressão e mesmo uma aniquilação de manifestações religiosas minoritárias em face daquelas adotadas pelo corpo social majoritário. 

O quanto a manutenção de tal equilíbrio se revela uma atividade complexa e de difícil consecução estamos a vivenciar diuturnamente, mas não será pela supressão ou substancial esvaziamento da liberdade religiosa (mesmo quando se busca preservar direitos conflitantes, como se verifica novamente no atual debate em torno do sacrifício de animais desde que sem recurso a meio cruel) que se evitarão ódios e perseguições, que o digam os totalitarismos ideológicos que tantas vidas ceifaram e que justamente tiveram em comum o descaso e mesmo supressão do fenômeno religioso.

Nessa perspectiva, é de se aguardar qual o caminho a ser trilhado pelo STF na questão do ensino religioso em estabelecimentos públicos de ensino, propiciando assim uma ampliação do debate em matéria futura. 

Além disso, a diversidade das manifestações da liberdade religiosa e sua articulação com outros direitos fundamentais, com os quais inclusive e não raramente entra em rota de colisão, há de ensejar a retomada do tema em outras ocasiões. 

O que importa sublinhar, por ora, é que não se pode reduzir a complexidade da questão e muito menos imaginar que existe uma única resposta correta, mas sim, uma resposta mais ou menos constitucionalmente adequada.

Ingo Wolfgang Sarlet é professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS e Professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).





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