A essência do cinema iraniano – Por Ana Elizabeth Diniz



O novo cinema iraniano é aquele produzido pós-Revolução Islâmica (1979), em que os diretores usam linguagem metafórica para abordar temas proibidos e como aparato político e de intervenção social.

“Se num primeiro momento, na década de 80, tais diretores realizavam um cinema mais ‘humanista’, depois passam a fazer um cinema com maiores implicações políticas. O maior mérito da cinematografia iraniana é produzir filmes que tocam a alma humana, com simplicidade, por meio de histórias do cotidiano. Os diretores se inspiram na milenar tradição da poesia persa. O cinema é um instrumento de transformação e crítica social”, comenta Graziela Cruz, 49, jornalista com mestrado em cinema pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.

A fascinação pelo cinema iraniano foi arrebatadora na vida dessa professora de teoria da comunicação na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e de cursos livres e de extensão na área de cinema. Graziela apresentou, ao lado do professor José Tavares de Barros, o programa “Sala de Cinema”, na TV Horizonte.

“No final dos anos 90, assisti pela primeira vez a um filme iraniano, “Filhos do Paraíso”, do diretor Majid Majidi, que fez muito sucesso no Brasil. Logo percebi que se tratava de uma proposta cinematográfica diferente daquela que nos chega em abundância, que lota a maioria das salas de cinema e que privilegia o ‘mainstream’. Tudo me atraiu: a estética, o ritmo lento do filme, a naturalidade dos diálogos, a ambientação natural, a história envolvente, a presença de crianças e a metáfora poética. Dali em diante, sempre que tinha oportunidade, buscava viajar para aquele outro lado do mundo por meio dos filmes”, relembra a jornalista. 

Segundo ela, “no Irã, a religião não é um aspecto separado de outros setores sociais, como acontece aqui, no Ocidente. Lá, o islamismo dita as normas culturais, morais e está intimamente ligado à condução política do estado. Tanto que o Irã é a única república islâmica do mundo, ou seja, tem um presidente eleito e um governo também religioso, dos aiatolás. Na Revolução Islâmica de 1979, quando o xá Reza Pahlev foi deposto, a grande figura política e religiosa foi o aiatolá Khomeini”.

Graziela ressalta que a religião nos filmes está presente o tempo todo. “O Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e o islamismo ditam a forma como as mulheres devem se vestir e se comportar em público, os rituais familiares, fúnebres etc. A religião é muito presente, pois é um aspecto cultural. É a própria forma de viver do povo”.

A jornalista diz que o chamado “novo cinema iraniano”, surgido no período pós-Revolução Islâmica de 1979, “colocou em evidência diretores que conseguiram falar de temas universais de forma muito simples, driblando a censura existente no país e inspirados por uma tradição poética persa milenar. Eles produzem um cinema extremamente envolvente e comprometido com os ideais de justiça, paz e liberdade”.

Ela explica que esse cinema “não segue a fórmula hollywoodiana do “início, apresentação do conflito, ápice, solução do conflito, happy end”, mas apenas se ocupa de contar uma história, de forma linear, geralmente a partir de um argumento simples, sobre temas do cotidiano. Não há efeitos especiais, nem grandes astros e estrelas, o famoso star system”.

O respeito ao espectador é atraente. “Os filmes não ‘entregam’ tudo mastigado, com conclusões prontas. Há muitas lacunas, silêncios, vazios a serem preenchidos pelo próprio espectador. Em vários deles, o filme parece não ter fim, pelo menos o “fim” a que estamos acostumados. Simplesmente não há um desfecho conclusivo, é como se a história continuasse depois que o filme termina. Essa falta de conclusões é uma característica muito interessante, pois cabe ao espectador decidir o que acontecerá com a narrativa, com os personagens. É como a vida que segue e segue”, pondera Graziela.

Denúncia

“O Círculo”, do diretor Jafar Panahi, mostra a realidade de nove mulheres marginalizadas na sociedade iraniana, mas até hoje não teve autorização para ser exibido no Irã.

Obras da nova safra são voltadas para o ritmo do cotidiano

Os “filmes de autor”, de diretores como Abbas Kiarostami, Jafar Panahi, Bahman Gobadi, Mohsen Makhmalbaf, Majid Majidi e Samira Makhmalbaf, têm, segundo a jornalista Graziela Cruz, o grande mérito de ir na contramão do “cinema, espetáculo” de Hollywood.

“Trata-se de um cinema que se volta para o olhar que degusta o ritmo do cotidiano, buscando nele o sentido para a vida. Os filmes dessa safra de diretores trazem para a tela a poesia escondida nas trivialidades do cotidiano, o protagonismo do ser humano com suas angústias, buscas e descobertas, as metáforas como caminho para a denúncia das injustiças”, analisa ela.

“Alguns estudiosos chegam a ligar o novo cinema iraniano ao neorrealismo italiano dos anos 1940/50, por ambos compartilharem algumas características, como a ausência de filmagens dentro de estúdios, som direto, atores não profissionais, um tom de documentário em algumas produções e a não utilização de efeitos especiais. O cinema iraniano tem narrativa distinta e não utiliza o melodrama tal como o fazia o neorrealismo. E, sobretudo, as condições históricas e culturais são peculiares e fazem toda a diferença, se considerarmos o cinema como um produto cultural realizado dentro de um momento histórico”, observa.

Filmes revelam contradições e imposições morais

Os diretores do chamado “novo cinema iraniano” realizaram num primeiro momento, logo depois da Revolução Islâmica de 1979, e nas primeiras duas décadas, filmes mais humanistas, utilizando crianças como protagonistas de temas do cotidiano.

"Já no final dos anos 90 e depois de 2000, vários filmes passaram a apresentar um conteúdo de contestação política, crítica social e defesa dos direitos humanos, especialmente os das mulheres. É muito forte o recurso da metáfora para abordar a opressão social”, analisa a jornalista e professora Graziela Cruz.

Segundo ela, diretores como Kiarostami e Makhmalbaf deixaram o país para ter mais liberdade de criação e outro grande nome, que é Jafar Panahi, foi condenado a seis anos de prisão domiciliar e 20 anos de proibição para dirigir filmes. Ainda assim, ele conseguiu fazer “Isso Não é Um Filme” e “Taxi”, enviar clandestinamente para fora do país e ganhar prêmios importantes no Festival de Cannes.

“Os filmes retratam questões humanas que perpassam toda e qualquer civilização (justiça, solidariedade, sentido da vida e da morte, solidão, esperança, ética) e ainda revelam as contradições da sociedade iraniana e os problemas decorrentes das imposições morais”, finaliza Graziela.






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