Jerusalém esmagada pelo passado – Por Eduardo Cintra Torres



Lutar pela paz é combater o passado.

Camadas sobre camadas. Do rei David ao nosso tempo, Jerusalém, ovo das três grandes religiões monoteístas, de Deus, de Deus e de Deus, acumula camadas de história.

Para se ver lajes que Jesus terá pisado no mercado junto ao Templo, é preciso descer debaixo da terra. As paredes mostram camadas de construções sobre construções, religiosas, militares, civis. Ruínas.

Placas lembram "foi aqui que…" Um gigantesco cemitério sobe o Monte das Oliveiras em fileiras de pedras tumulares de há milénios ou de hoje, um sítio geológico humano. Os mortos espreitam os vivos. 

A cidade velha divide-se em zonas que distribuem camadas históricas pela superfície: o bairro cristão, o bairro islâmico, o bairro judeu, o bairro arménio. Há portas milenares e muros do século XXI. Torres de igrejas, cúpulas de sinagogas e minaretes de mesquitas disputam no céu a última camada do espaço.

Uma camada comprime a outra e cá em cima Jerusalém vive esmagada pelo passado. Os vivos são prisioneiros dos mortos. Diferentes culturas, religiões de guerra e paz, nações valentes que se querem mais imortais que as outras. Vive-se o presente no receio de que o futuro seja a colocação duma nova camada de sangue seco nas pedras velhas e muros novos. Lutar pela paz é combater o passado.

Quando se promove o encontro de culturas, sente-se perigo. Juntar pessoas vítimas de passados diferentes é um acto de coragem, como o narrado pelo documentário de Erez Miller e Henrique Cymerman, ‘East Jerusalem, West Jerusalem’, estreado em Portugal na Judaica, Mostra de Cinema e Cultura.

O músico israelita David Broza quis fazer um álbum em Jerusalém Oriental com músicos judeus e palestinos. O filme acompanha esta pequena guerra pela paz, os encontros no estúdio, quase clandestinos, as conversas dos dois lados do muro de cimento e passado que separam pessoas iguais em mundos diferentes.

A iniciativa de Broza, que noutros lugares seria vulgar, é ali arrancada ao preconceito, como se alguém roubasse uma pedra antiga duma camada de passado do Outro na cidade velha. Os músicos judeus e palestinos dizem coisas para nós banais, mas para eles actos da guerra pela paz: somos iguais, podemos encontrar-nos, gravar juntos, viver em harmonia.

O projecto de Broza e deste documentário aconteceu nove anos depois, nove anos depois!, do difícil concerto, também documentado em filme, da West-Eastern Divan Orchestra, com músicos judeus, muçulmanos e cristãos, em Rammalah, Palestina. Quanto anos para o próximo? Estes lutadores, na música e nos documentários, sonham com uma última camada da história de Jerusalém, a da paz.







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