Páscoa: festas religiosas nas fazendas de Minas Gerais do século XIX – Por Mary Del Priore



As fazendas costumavam ter, na extremidade das varandas, uma capela ou um quarto de santos. 

A fazenda de Manuel de Abreu Guimarães tinha ao final da sua, uma capela dedicada à Nossa Senhora do Carmo, “com seu emblema de três estrelas douradas e um escudo pintado de azul. Havia ali cantos, nas noites de domingo”, conta Richard Burton que a visitou. A Carrapixo, próxima ao Tejuco, possuía “capela de dizer missa”. Pequenos oratórios, também, integravam as práticas de religiosidade.

Marianne North almoçou na casa de um escravo forro, cujo senhor lhe deixara o seu, com móveis entalhados e santos além de objetos de culto em prata. Em certa fazenda onde ficou hospedada, percebeu que africanos usavam de suas práticas religiosas, mesmo debaixo do nariz dos senhores brancos: “Old Pedro, deixava de quinze em quinze dias, nas noites de sexta-feira, pão e carne no quarto em que seu antigo dono, o padre, morrera. Como ele nunca encontrava nada na manhã seguinte, afirmava que o velho amo vinha para comer”. 

O “velho” Pedro apenas reproduzia crenças enraizadas na cultura banto, que acreditava viverem os mortos num mundo de sombras, onde se reproduziam as condições terrenas. Dar-lhe de comer era normal. Afinal, em África, os mortos nunca morriam…

Os fazendeiros que tinham ermida com capelão assistiam, com agregados e cativos, a missa em casa. Os demais eram obrigados junto com seus escravos a deslocar-se até a igreja mais próxima. A construção de centenas delas foi obra generalizada nas Minas Gerais, todas repletas de retábulos, imagens talhadas e soberbos altares policromados.

Um sacerdote fiscalizava presenças e ausências lendo em voz alta os nomes dos fiéis. Cabia então aos familiares do Santo Ofício, figurões das irmandades religiosas e intrigantes em geral, a delação das faltas e todos eram compelidos a se justificar.

Isso também acontecia por ocasião da comunhão pela Páscoa e da desobriga anual de confissão, devidamente vigiadas por tais olhos e ouvidos da Inquisição, Roubos, assassinatos, estupros, desonestidade, concubinato, tudo se acertava na época da desobriga mediante o pagamento de espórtulas e donativos às igrejas e irmandades.

Cruzes às portas das casas, nos caminhos, altos de morros, nas guardas das pontes, em toda a parte, erguiam-se para espantar o Demônio, que, segundo Lima Júnior, tinha motivos de sobra para sentir-se à vontade, não fossem os empecilhos da redenção.

Importantes romarias e festas religiosas congregavam todos os fazendeiros. Entre as primeiras, destacava-se a do Bom Jesus de Congonhas, em setembro; à Senhora da Lapa, em outubro, a do jubileu da Porciúncula, em São Francisco de Assis de Mariana. Entre as festas religiosas, a Páscoa e a Semana Santa. Na Quarta-Feira de Cinzas, realizava-se a procissão das Cinzas. Dias antes, deixavam suas fazendas percorrendo ostensivamente as estradas:

“Grande número de homens e mulheres passavam a cavalo que iam assistir a festa e apesar do calor extremo, quase todos estavam envoltos em amplas capas de gola alta, semelhantes às que se usam na França na época do Natal. Esse costume era originário de Portugal e vinha sendo adotado há muito tempo na província de Minas […] não havia um único trabalhador que saísse sem ela e a posse dessa peça do vestuário era cobiçada por todos os mulatos livres”, registrou Saint-Hilaire. As mulheres “capoteiras”, muitas delas fazendeiras, eram conhecidas por sua piedade e o hábito de puxar o terço.

Na cidade, quem vinha da aérea rural, assistia à missa cantada. Procissões durante a Quaresma traziam “mulatos trajando túnicas cinzentas semelhantes com que se apresentam, em nossas óperas, os Gênios do Mal. Um deles levava uma grande cruz de madeira e os outros dois, seguravam, cada um, um longo bastão com uma lanterna na ponta. Imediatamente atrás deles vinha outro personagem, vestido com um traje muito justo, de tecido amarelado, no qual havia sido desenhado com tinta negra os ossos que compõe o esqueleto. Esse personagem representava a Morte, e em meio a grandes palhaçadas, fingia golpear os passantes com uma foice de papelão”, contou Saint-Hilaire. 

Aos fiéis fantasiados de Adão e Eva, Caim e Abel, seguiam-se andores com imagens em tamanho natural, pintadas e vestidas com roupas de verdade. A seguir: Jesus no Jardim das Oliveiras, Madalena, São Luís rei de França e até Yves, bispo de Chartres. Transportavam, também, a Virgem em toda a sua glória, além de São Francisco, beijado por Cristo.

“Mais ridículo, eram meninos de raça branca, vestidos de anjo que acompanhavam cada andor. As sedas, os bordados, as gazes e as fitas eram usados com tal profusão em seus trajes que eles mal podiam caminhar, embaraçados por tantos arrebiques”: tiaras de gaze e fitas que encobria as cabeças, saias balão bem armadas, corpetes de gaze plissada e meia dúzia de asas. “Havia certo encanto nessa cerimônia irreverente, em que ridículas palhaçadas se misturavam com o que a religião católica tem de mais respeitável”, anotou o naturalista francês.

Vez por outra, um bispo vindo de Mariana, passava numa cidade perto das fazendas. Repicavam os sinos e crianças vinham de toda a parte, receber crisma ou fazer a primeira comunhão. Nos batizados e casamentos, muitos fazendeiros encomendavam roupas na Corte. As festas duravam quinze dias, esvaziavam-se caixas de vinhos franceses enquanto uma “chuva de comidas” caia sobre os convidados.

Nos ranchos de negros ou senzalas, erguiam-se mastros com “imagens de santos negros” e na época de São João, esse era enfeitado com espigas de milho e frutas, signo de abundância. Aliás, o ciclo junino guardava celebrações de grande significado no mundo rural: junto ao hasteamento da bandeira com a efígie do patrono, plantava-se uma árvore à qual se penduravam flores e enfeites, ao som de cantos. Aos seus pés, lançavam-se ovos, para proteger animais de penas, de pestes. 

Os frutos da terra, sobretudo o milho, a ela amarrados, deviam estar os mais expostos possível, Eles representavam a passagem da vegetação que morria para a que brotaria. Depois da festa, o mastro era queimado e guardados os tições. Acreditava-se que era possível controlar com eles as forças das tempestades, neutralizando raios e trovões.

No Norte da província, praticava-se o canjerê, reunião religiosa associada a feitiços ou mandingas, acompanhada de bailados e sapateados. Nas festas de São Gonçalo e nas Folias de Reis, afrodescendentes saiam pelas estradas com violões, cavaquinhos e pandeiros despertando os moradores para pedir-lhes esmolas para a festa. No dia de Nossa Senhora das Candeias ou Candelária era realizada uma copiosa refeição.

O Divino abençoava até a exploração, pois senhores, antes de dar ordens aos seus escravos, diziam: “Deus dê prosperidade e bom êxito ao seu trabalho”.

Segundo Lima Júnior, tradições judaicas também foram incorporadas no cotidiano da vida rural. O uso da lamparina acesa no quarto da parturiente, pois antes do batismo, originalmente, da circuncisão, a criança não podia ficar no escuro; o hábito de acender velas nos oratórios aos sábados; a gentileza de enviar aos viajantes uma bacia de água morna para a lavagem dos pés; a repulsa em ingerir a carne de animais não sangrados previamente, e a presença do “abafador”, homem que “ajudava a morrer”, no quarto do moribundo. Aliás, era comum visitar, consolar e lamentar os doentes. Segundo Burton, as janelas fechadas, o ambiente abafado e o calor de velas acesas eram capazes de matar qualquer um.

A presença de grandes manadas bovinas reforçava tradições religiosas: na festa do Espírito Santo oferecia-se o “boi do Divino”. Um animal era sacrificado e a carne distribuída entre o povo em nome da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Entre escravos, o bumba-meu-boi acompanhava os festejos em torno da sagrada Pombinha.

O encontro de culturas diversas, assim como a complexidade e a diversidade da economia e da população são características marcantes da história de Minas Gerais. Suas fazendas não seriam exceção. Muito pelo contrário. Elas evoluíram na dispersão, atendendo aos reclamos da economia regional: poucas nos campos rupestres de altitude, onde se localizava a região do ouro e diamantes. Muitas na zona da Mata, onde se situa São João del-Rei e Juiz de Fora. 

E, tardiamente, no Triangulo Mineiro, onde não houve mineração e sim, gado. A vida cotidiana nesse complexo mundo rural retrata formas de viver e de sobreviver especificamente mineiras.

Vidas marcadas pela produção multíplice que consolidou o mercado interno da antiga Colônia e depois Império. Pelo caráter e mentalidade mercantil de tropeiros, boiadeiros, atravessadores, mascates e vendedores de serviços. Mas, também de produtores rurais, artesãos e escravos. Mundo onde lavras, roças e currais, homens livres e escravos, a religiosidade leiga e a secular, o som de sinos e do ranger de rodas, mandingas e “vissungos”, procissões e novenas, a vida urbana e a vida rural dialogavam.

Universo no qual se multiplicou a dialética entre riqueza e decadência, rusticidade e hospitalidade, religiosidades brancas e negras, sociabilidades e tensões.

Universo de “fé cega e faca amolada”. Ali, também as relações de trabalho, nas suas formas diversas, andavam lado a lado: podiam ser escravistas ou camponesas. Quilombos coexistiam com pequenas ou grandes propriedades, e a mineração com a lavoura, tudo se interligando. Nas Geraes, o fixo e o incerto, a mudança e a permanência estavam em permanente conversa.

Era terra de “gente que vai, gente que vem”, como canta o poeta Milton Nascimento, de “filho do branco e do preto correndo na estrada atrás de passarinho”, do “morro verdinho” pintado por tantos naturalistas e da “agricultura bárbara” onde o cultivador com um machado na mão e um tição na outra ameaçava as matas de total destruição, como previu o naturalista do Tijuco, José Vieira Couto. Finalmente, “num carro de boi ir por aí… quantas coisas eu vou conhecer” nas velhas fazendas de Minas Gerais.







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