“Deixem a Igreja em paz” – Por Vladímir Mílov


Mesmo favorável a um Estado laico, líder do movimento Eleições Democráticas, Vladímir Mílov, não vê fundamento na onda de críticas negativas à Igreja Ortodoxa Russa desencadeada no país ao longo dos últimos meses.

A história do grupo punk Pussy Riot agravou ainda mais as contradições religiosas na sociedade russa. Seria injusto afirmar que a Igreja interferia muito mais na vida política e civil da sociedade russa no passado. Ainda assim, entre os boêmios de Moscou acostumados a olhar a religião ortodoxa com desconfiança, é comum acusá-la de intervenção em assuntos civis.

Algumas de suas críticas têm fundamento. Em primeiro lugar, as outras religiões do país são, até certo ponto, pressionadas e colocadas em desvantagem em relação à Igreja Ortodoxa Russa, seja pela construções de templos nos escassos espaços públicos da cidade ou pela transmissão de missas natalinas e pascoais em rede nacional.

Não sou religioso e defendo profundamente a necessidade do caráter laico de nosso Estado e a igualdade de direitos de todas as religiões presentes no país. No entanto, graças à justiça, devo dizer que nunca senti uma intervenção tão grande da Igreja em minha vida nem em minhas atividades políticas e sociais.

As tentativas da Igreja de abalar os pilares laicos do Estado não surtiram efeito. Sua iniciativa de introduzir os conceitos da religião ortodoxa no currículo escolar, entre outras medidas duvidosas, foram combatidas com êxito e, logo, rejeitadas. Jamais poderia afirmar que a Rússia está deslizando rapidamente para o abismo de um Estado teocrático.

Nesse contexto, é especialmente estranho ver quantos intelectuais russos e empresários, bem como pessoas ociosas chamadas de, segundo a moda atual, “classe criativa”, sucumbiram à histeria antirreligiosa por causa do processo contra as Pussy Riot. Francamente, esse movimento é mais irritante do que todos os problemas causados ​​pela Igreja Ortodoxa no país. Aqui algumas coisas devem ser lembradas.

Em primeiro lugar, é óbvio que a repressão contra as Pussy Riot não foi idealizada pela Igreja nem pelos fiéis, e sim pelo Estado. Foi, inclusive, com sua complacência que o componente religioso se consolidou em nossa vida cotidiana ao longo últimos dez anos.

O segundo aspecto está relacionado com o próprio grupo punk. Nadéjda Tolokonnikova, uma de suas integrantes, apareceu pela primeira vez no cenário político russo durante uma manifestação de 2007, acompanhada de seu famoso marido Peter Verzílov, que subia em carros para estimular os manifestantes a atacar a polícia de choque. Verzílov foi várias vezes detido, mas acabava sempre solto porque tinha em sua comitiva “homens à paisana” que sabiam “falar” com a polícia.

Além disso, aprendi muita coisa ao conhecer mais de perto nossos intelectuais liberais durante as manifestações oposicionistas dos últimos anos. Desde então não me impressiono mais com nada. A maneira como eles criticam sem razão todos os fiéis, usando palavras de baixo calão, prejudica sobretudo sua própria imagem – e nenhuma Madonna vai socorrê-los.

Por último, a Igreja Ortodoxa Russa tem, sim, seus problemas. Sua liderança vive em condições luxuosas e incompatíveis à sua função. Também tornou-se parte da burocracia do Estado, atacando, por vezes, a liberdade de consciência e os direitos dos seguidores de outros cultos.

Mais do que isso, a própria natureza da fé entre os russos que se fazem passar por fiéis ortodoxos causa, não raro, uma impressão estranha. Muitos deles sequer frequentam a igreja nem leram a Bíblia ou sabem os nomes dos doze apóstolos. Mas e daí que eles não sabem? O que mais se pode esperar de um povo depois de décadas de uma trágica experiência comunista e “ateísmo científico” nas universidades?

Oras, isso não é de todo ruim e significa que, depois de décadas de ateísmo forçado, as pessoas estão buscando livremente sua fé. Esse é um processo natural. Isso significa que as pessoas têm a possibilidade de ver o mundo a seu redor com seus próprios olhos e não através de um livro sobre o ateísmo, a religião ortodoxa ou conceitos básicos de qualquer outra cultura.

Ao longo desses anos de contato com o eleitorado russo, pude perceber que a religião ortodoxa não é um inimigo nem obstáculo à europeização e democratização da Rússia. A Igreja em si não impede nada. Professar ou não uma religião é um assunto privado de cada cidadão e deve permanecer assim.

Devemos seguir rumo à reconciliação e parar de blasfemar uns aos outros. Esse apelo é também direcionado aos fiéis ortodoxos que praticamente exigiram pena de morte para as Pussy Riot, tomados por uma euforia semelhante à dos opositores da igreja.

Minhas preocupações estão, contudo, mais associadas àqueles que me dão esperança, ou seja, os intelectuais. Colegas, parem com essa histeria antirreligiosa. Não façam inimigos com suas próprias mãos. Esse é nosso país, nossa sociedade, nosso povo. Vamos respeitar uns aos outros. Deixem a religião em paz.

Vladímir Mílov é líder do movimento Eleições Democráticas.

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