"A Vida de Pi" - de Pondicherry ao Pacífico – Por Nina Caplan
Uma viagem pelos bastidores da
rodagem do mais recente filme do realizador Ang Lee.
Mudar para um novo sítio pode ser
muito trabalhoso, mas algumas mudanças são mais dolorosas do que outras. Poucas
demoram 27 semanas e envolvem uma gigantesca viagem solitária através do
oceano, apenas com um tigre esfomeado como companhia.
Quando Pi, diminutivo de Piscine
(piscina, em francês, a história é comprida mas valeu um Booker Prize ao autor
Yann Martel) partiu, ele era um rapaz esperto, apenas um pouco estranho, que
vivia em Pondicherry, na India, com um irmão mais velho desesperadamente normal
e os pais que decidiram que, durante os complicados anos 70, o Canadá seria um
local mais calmo para criar os filhos.
Quando Pi Patel chega ao seu
destino, e na adaptação ao cinema de Ang Lee sabemos que chega porque é ele
que nos conta a história, perdeu tudo, excepto os mais ferozes instintos de
sobrevivência, a sua humanidade e a sua fé.
Apesar de ser muito apreciado, o
livro de Martel não é candidato óbvio a uma adaptação ao cinema. Quase nenhuma
fase da acção se passa em terra firme, ou requer mais do que um ator, e o tipo
de diálogo que podemos ter com um tigre selvagem é necessariamente limitado.
Lee pensou em realizar este filme
no momento em que o livro foi publicado, em 2001, mas abandonou a ideia. No
entanto, diz ele, a tecnologia avançou de forma a torna-lo exequível, apesar de
continuar a ser um desafio.
Filmou em 3D: os animais do
zoológico da família Patel cumprimentam-nos, ou, no caso do tigre, rosnam para
nós. Uma enorme quantidade de CGI (imagem gerada por computador) criou o imenso
oceano, os impressionantes céus e a vida selvagem realista.
No caso de Pondicherry, bem como
no de Montreal, onde o Pi adulto (Irrfan Khan) conta a sua fantástica história
a um intrigado escritor (Rafe Spall) que, até certo ponto podemos ver como o
próprio Martel, as filmagens foram feita no local.
Pondicherry, uma bela cidade
costeira do século XVIII, foi capital da India Colonial francesa e projectada
como tal, com as suas bonitas praças com toponímia francesa e os seus graciosos
edifícios, mas numa escala muito mais reduzida do que a que se pode encontrar
em França: algumas ruas são tão pequenas que a gigantesca equipa de filmagens
de "A Vida de Pi", mais de 600 pessoas, só pode deslocar-se durante
a noite, caso contrário teria entupido toda a cidade.
As incomuns crenças religiosas de
Pi, considera-se Hindu, Cristão e Muçulmano, tudo ao mesmo tempo, estão
reflectidas na sua pacífica e ecuménica cidade natal.
As cenas de oração foram filmadas
na mesquita de Khutbah, construída no século XVII, enquanto a cerimónia
nocturna no tanque, filmada no templo de Villianur, contrasta com o feroz
racionalismo do pai de Pi, que aconselha o filho a não acreditar em nada para
lá do que os seus olhos vêem, perante a beleza do curso de água iluminado onde
centenas de fiéis acendem velas para celebrar todos aqueles mitos que o Sr.
Patel diz desprezar.
Estas cerimónias deslumbrantes,
com música, canções e dança, eram particularmente populares na época em que Pi
cresceu, mas ainda têm lugar um pouco por toda a India, se tivermos a sorte de
chegar à cidade certa, na altura certa.
Na história, Pi descobre o
cristianismo na estância montanhosa de Munnar. Ao olhar para as encostas verdes, coloridas pela floresta e pelas plantações de chá, neste lugar deslumbrante,
150 kms a norte de Pondicherry, é fácil compreender como se tornou tão agarrado
à ideia da existência de um ente-supremo.
Na verdade, a Igreja do Santo Rosário
utilizada para a cena, fica em Pondicherry, a 3 kms da mesquita, mas a equipa
chegou a deslocar-se a Munnar para as cenas exteriores e é realmente, tal como
afirma a produtora Tabrez Noorani, um local maravilhoso.
É uma verdadeira estância de
montanha à indiana: um destino de férias utilizado pelos nobres que procuravam
fugir do calor das terras baixas, com cascatas, lagos para passear de barco,
locais para andar a cavalo e, claro, plantações de chá por todo o lado.
Não existe um jardim zoológico em
Pondicherry (embora os fãs do livro costumem procurá-lo), por isso, Lee teve a
ideia de que o pai Patel teria transformado um jardim botânico para realizar o
seu sonho. Isto permitiu que o jardim botânico da cidade fosse usado como
cenário, e que a equipa plantasse espécies adicionais que Ang pensava serem
vitais para a história.
Faltava, no entanto, uma peça
muito importante: os animais. "A India é muito rigorosa no que diz
respeito ao que se pode e não pode fazer com animais selvagens", diz Lee, "por isso, os animais de carne e osso foram filmados em Taiwan, nos
zoológicos de Taipei e Leofoo".
A ausência dos animais pode ter
sido um inconveniente para a equipa de filmagem, mas ajudou a proteger a
tranquilidade do jardim. De acordo com Noorani, é um dos lugares mais
agradáveis nesta simpática cidade: calmo, bem projectado e repleto de
funcionários conhecedores.
Também existe um vibrante mercado
de flores (onde as mulheres entrelaçam botões de jasmim a uma velocidade
estonteante) no Bazar de Pondicherry, por onde Pi persegue o seu primeiro amor.
Apropriadamente para um filme onde a água tem um papel tão importante, o
romance desenvolve-se no pitoresco cenário da marginal de Pondicherry, no
passeio e, em particular, no velho pontão.
Lee, claro, é natural de Taiwan,
mas é como se fosse um cidadão do mundo: os pais são chineses, mas ele agora
vive em Los Angeles.
Um dos aspectos desta história que mais o atraiu foi o
facto de o protagonista andar literalmente à deriva: quando se dá o naufrágio
do navio que o transportava com a família e os animais selvagens para o Canadá,
Pi tem apenas um salva-vidas e um tigre para o ajudar a sobreviver. "Não
teria feito este filme se não me identificasse com Pi", diz Lee. "A
sua jornada é bastante simbólica".
Após duas semanas em Pondicherry,
"porque Pondicherry é um lugar muito especial e há coisas que sucedem na
história que nunca poderiam ser filmadas noutro sítio", diz Lee, a equipa
passou dois dias nas plantações de chá de Munnar, algo que correu "muito
calmamente", diz-me Lee. Mas como, com uma equipa do tamanho de uma
cidade? "Oh, sim! A equipa foi maravilhosa, muito acolhedora, todos
falavam inglês. Divertimo-nos imenso".
A fase principal da rodagem durou
dez meses num aeroporto abandonado, em Taiwan, onde foi recriada a odisseia de
Pi em pleno oceano, num tanque construído de propósito e rodeado por um ecrã azul,
onde decorreram também as filmagens com os animais.
Com a ajuda do governo de Taiwan,
transformaram os hangares em estúdios e um aeroporto longe do mar no Oceano
Pacífico, e um rapaz de 16 anos que não sabia nadar em alguém chamado
"Piscina" que sobrevive durante meses no meio do oceano.
"Até então não sabia
nadar", diz Suraj, que foi escolhido entre milhares de candidatos para
desempenhar o papel de Pi. "Venho de Nova Deli, uma cidade sem contacto
com o mar. Mas para o filme tive de passar três a quatro horas diárias na água
e aprender a suster a respiração até dois minutos de cada vez."
O treino foi um desafio, ele
também teve de ganhar músculo, e depois perder peso para encarnar o náufrago
meio morto de fome. Mas Suraj, agora com 19 anos e no primeiro ano da
universidade, adorou a experiência, em particular adorou Taiwan. "A
comida era fantástica! Tanta variedade!" Pode partilhar um gosto pelo
conhecimento metafísico, estuda filosofia, mas a semelhança pára aí.
Pi só
começa a comer peixe no mar, como alternativa a morrer à fome. Suraj, por seu
turno, fala alegremente das delícias da cozinha de Taiwan feitas com sangue de
porco: "Não, definitivamente não sou vegetariano!"
Apesar do tanque, onde as ondas
podiam ser criadas para assumirem as formas e tamanhos desejados, e o
ecossistema artificial daquela cidade construída para o efeito, filmar com água
foi, segundo afirma Lee, difícil: "Por vezes, passámos noites inteiras a
tentar fazer com uma cena resultasse. Ficava frustrado e totalmente arrasado.
No entanto, tudo valeu a pena no dia em que entreguei o filme à Fox."
No final, teriam desmantelado a
cidade e o tanque, mas de acordo com Ito Chang, que geriu as filmagens no
local, o governo de Taiwan pediu que os deixassem. Também tinham, diz ele,
construído um pequeno zoo, porque embora grande parte das filmagens com animais
selvagens tivesse sido feita em jardins zoológicos de verdade, algumas coisas
não podiam ser feitas em espaços desenhados para animais e não para cineastas.
"Tem tudo a ver com segurança", diz ele. "Um parque de safari
sem grades é uma coisa, mas para alguns planos era preciso entrar na
jaula".
Até o mais inofensivo dos animais
pode ser perigoso, uma das lições do livro de Martel é que os animais
selvagens, por mais amistosos que sejam, não são nossos amigos. Os tratadores
ajudaram bastante, diz Chang, mas alguns arranhões e mordidelas foram
inevitáveis.
Lee tem um curriculum
extraordinário e variado, de análises detalhadas do choque entre gerações
("O Banquete de Casamento", "Comer Beber Homem Mulher") a
problemas com o controlo emocional na comunidade científica ("Hulk").
Os seus primeiros filmes são de
Taiwan, mas não na sua totalidade (o herói homossexual de "O Banquete de
Casamento" vive nos EUA, com um americano; são os pais, na sua terra
natal, que constituem o problema).
Os seus filmes mais recentes têm
uma grossa camada de verniz de Hollywood sem se tornarem completamente
americanos.
"O Tigre e o Dragão",
que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, era um filme realmente muito
estrangeiro; "Brokeback Mountain", que deu finalmente a Lee o Oscar
para melhor realizador, era uma história de amor entre cowboys.
Torna-se claro que este
realizador com múltiplas influências não tem medo de território desconhecido.
"Que sei eu sobre homossexuais que trabalham em ranchos do Wyoming?", pergunta Lee, de forma retórica.
Será que sabe um pouco mais sobre
sobreviventes de naufrágios originários da India e cheios de preocupações
metafísicas, pergunto eu, ou será que isso realmente interessa para alguma
coisa?
O material era muito interessante,
diz ele: "India, religião, o oceano, animais, filosofia. A India tem uma
cultura muito antiga, em particular se estivermos a falar de religião."
"Eu venho da China, a terra
natal de Buda, e os budistas acreditam na prática espiritual e não num criador
em particular." Por oposição a Pi, que se apaixona não apenas por Deus,
mas por três religiões diferentes, mostrando uma capacidade pouco comum para,
em termos espirituais, viver em diversos locais ao mesmo tempo.
Quando Pi está no meio do mar,
"não pode contar com uma ordem social, ou com uma religião organizada.
Existe apenas o desconhecido, e isso requer um salto de fé". Claramente,
isto é algo em que Lee acredita, dados os desafios únicos que este filme
apresentou.
"Tenho sempre algo em comum
com os meus protagonistas", admite Lee. "Pode ser óbvio, ou estar
escondido, mas tem de estar lá para que eu me sinta agarrado pela história:
porque me retratam, ou porque eu me relaciono com elas. Por vezes são mais do
que uma, podem existir duas ou três personagens que contêm uma parte de mim
que deseja comunicar. No início de cada filme”, afirma o viajado cineasta com
alguma tristeza, "tenho sempre esperança de ir longe, que estou numa
aventura que me transportará para muito longe de mim próprio. Mas há sempre
alguma coisa naquela personagem que acaba por me fazer regressar a mim."
Fonte: http://filmspot.pt
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