Para conhecer outro Israel: o que luta pela paz – Por Sérgio Storch
O Brasil teve o privilégio de
abrigar, na semana passada, o FSMPL (Fórum Social Mundial pela Palestina Livre),
na cidade-berço dessa invenção que está na raiz do pensamento de uma nova
cultura política.
Lá se vão quase 13 anos desde que criamos este campo de novas
possibilidades: “um outro mundo é possível”, conforme o dístico criado em sua
fundação. Para alcançar o sentido da importância deste Fórum pela Palestina é
importante lembrar a origem do FSM, nascido em 2001 por iniciativa de um grupo
de brasileiros, bem conhecidos na nossa sociedade civil, desde a resistência à
ditadura militar.
A este Fórum pela Palestina
reagiram, apreensivos com possíveis impactos de protestos e manifestações,
setores hegemônicos da comunidade judaica brasileira, manifestando pela mídia
críticas aos governos federal, estadual e municipal de Porto Alegre, por
apoiarem esse evento que, numa visão cartesiana, aparenta desafinação em
relação ao discurso de equidistância dos polos do conflito: Israel e Palestina.
É, pois, oportuno registrar a
existência de uma outra visão judaica. É bem antiga, remontando aos valores já
expressos no Pentateuco, que trouxe em sua legislação o reconhecimento do
outro, dos seus direitos, e da responsabilidade de cada indivíduo com todos os
demais, de seu povo ou estrangeiros. “V’ahavta l’reacha kamocha” (amai ao
próximo como a ti mesmo) está nos ensinamentos da Torá, conforme o Rabi Akiva,
ícone da ética judaica. Não há nada a temer.
Rancor contra Israel haverá,
podendo por vezes resvalar para chamamentos à destruição do país e para o
antissemitismo rasteiro, como derivação de ignorância que existe de forma recíproca
também da parte dos que apoiam incondicionalmente Israel.
Todos conhecemos muito pouco de
nossas matrizes e histórias, tanto das nossas quanto as dos outros povos. Aos
que criticam o FSMPL e os governos que o acolhem, é bom estudarem um pouco. E aqui
vão algumas informações úteis para os que estarão no FSMPL, para os que o
acompanham com simpatia, e também para os que a ele se opõem precipitadamente.
As comunidades judaicas em todo o
mundo enfrentam fissuras na pretensa unidade que lideranças institucionais
procuram aparentar, tentando cobrir o sol com a peneira. Em Israel, o debate
livre pela imprensa é a maior evidência.
Há um abismo, separando ao menos
metade da sociedade israelense (que, segundo as pesquisas, apoiam a solução de
Dois Estados) dos seguidores da coalizão de direita que está no governo há três
anos. É bom lembrar que, em mandato anterior (1996-1999), o primeiro-ministro
Benjamin Netanyahu já havia atentado contra os acordos celebrados em Oslo
(1993), com o palestino Yasser Arafat, por seus adversários israelenses, Itzhak
Rabin e Shimon Peres (atual presidente do país, de oposição).
As seguidas
procrastinações de Netanyahu, e as provocações feitas por ele, ao ampliar os
assentamentos de colonos judeus em territórios palestinos ocupados, fizeram
vencer, à época, o prazo de cinco anos fixado em Oslo para um acordo de paz
permanente.
Surgiu, em consequência, uma insatisfação crescente entre as massas
palestinas, que explodiu, já de forma incontrolável, na segunda Intifada, no
ano 2000. O primeiro-ministro é um personagem de convicções inabaláveis e
perseverante, que não hesita em abusar da memória de tragédias históricas
sofridas pelos judeus para justificar uma estratégia míope, baseada tão somente
na força militar.
A extensão do abismo que existe
em Israel, e não é novo, pode ser apreciada por este trecho de uma carta de
Leah Rabin (viúva de Itzhak Rabin, assassinado por um extremista judeu em
1995), na época do primeiro mandato do atual chefe de governo: “Netanyahu é um
mentiroso corrupto que está destruindo tudo que nossa sociedade tem de bom”.
(…) Netanyahu e seu governo não representam uma unidade dos judeus israelenses,
nem tampouco dos judeus na maior comunidade da Diáspora, a norte-americana”.
Ao contrário da propaganda desse
governo manipulador do medo e da insegurança, que martela a ideia de que não
existem parceiros para a paz, há inúmeros exemplos de parcerias. O escritor e
jornalista israelense Amos Oz colabora com o filósofo palestino Sari Nusseibeh,
reitor da universidade Al Quds.
O músico Daniel Baremboim teve como parceiro o maior intelectual
palestino, Edward Said, para a formação da sua orquestra de jovens israelenses
e árabes, hoje mantida pelo governo da Andaluzia, na Espanha. A cantora
israelense Noa canta com sua amiga palestina Mira Awad. Há ex-soldados
israelenses e ex-militantes palestinos da luta armada que se encontram no
Combatants for Peace.
Nada mais falso do que a
mistificação de que não há parceiros para a paz. Há 130 ONGs em que atuam ombro
a ombro israelenses e palestinos na defesa dos direitos violentados pelas
políticas dos governos israelenses, desde a detenção de prisioneiros sem culpa
formada por tempo indeterminado, até a desobediência civil de mulheres
israelenses que regularmente contrabandeiam mulheres palestinas para tomarem
banho de mar em Tel Aviv ou Haifa.
Falemos da maior comunidade da
Diáspora judaica, a norte-americana, cuja população (5 milhões) não é muito
menor que a judaica israelense (6 milhões). A tradição liberal dessa comunidade,
que teve líderes marchando ao lado de Martin Luther King nos anos 1960 e
combatendo à guerra do Vietnã nos anos 1970, expressa-se hoje em organizações
como o Jewish Voice for Peace (do qual rabinos participaram das flotilhas que
chamaram a atenção do mundo para o bloqueio israelense a Gaza), o Tikkun
(liderado pelo rabino Michael Lerner, que é ativista pela paz desde a
resistência à guerra do Vietnã), e o JStreet, um lobby judaico no Congresso que
se opõe ao mal-denominado “lobby sionista”, a AIPAC (The American Israel Public
Affairs Committee).
Vale destacar que este último,
embora financeiramente forte, é tão pouco representativo da maioria da
comunidade judaica que sua campanha ostensiva por Mitt Romney nas últimas
eleições (doação 100 milhões de dólares só da parte do seu presidente, Sheldon
Adelson, magnata dos cassinos de Las Vegas) foi respondida pela maioria de 70%
do voto judaico em favor de Barack Obama.
Esse lobby vem corroendo por
dentro a democracia israelense, com o investimento em mídia impressa que hoje
domina 90% dos leitores do país. E é abertamente aliado a outra força das mais
retrógradas da sociedade norte-americana, o chamado “sionismo cristão”, dos
fundamentalistas evangélicos, no qual atuam figuras do Tea Party que, como o
ex-candidato Glenn Beck, vão a Israel para incitar à distância os seus
seguidores nos Estados Unidos na imprensa israelense.
A nata da extrema direita
norte-americana tem a AIPAC como instrumento. Não pode ser denominada “lobby
sionista” ou “lobby judaico”, pois nessa complexa sociedade há revistas
progressistas de um século ou mais (The Natiom, Torward, etc.), povoadas por
judeus destacados.
O anti-lobby JStreet (abreviação
de Jewish Street, ou seja, a “rua judaica”) está no seu quarto ano de
existência, e tem realizações constantes ao trazer para contato com
congressistas e secretários de Obama pessoas eminentes de Israel, que incluem
até mesmo generais e oficiais de alto escalão dos serviços de inteligência.
Comparecem para demonstrar à opinião pública e aos políticos dos EUA a
importância de pressionar o governo israelense no sentido de mudar de direção.
A arrogância dos próceres da
diplomacia israelense, hoje chefiada por um ministro que lidera a extrema
direita no país, e visto por muitos embaixadores como destruidor de
competências que Israel chegou a ter com figuras lendárias como Abba Eban, vai
a ponto de pressionarem governos do Ocidente a não reconhecerem aos palestinos
sequer o direito de fazerem parte de instituições como a Unesco.
Atribuem ao
terrorismo palestino uma natureza cultural dos muçulmanos, enquanto fecham aos
palestinos os caminhos do combate não violento pelos seus direitos.
Vale ressaltar a linguagem eivada
de ironia e intervencionismo, como a expressa nesta frase de um adido
israelense ao Uruguai, por ocasião da celebração de acordo do Mercosul com a
Autoridade Palestina: “o acordo do bloco do Cone Sul com a Palestina não é a
melhor forma de estimular o processo de paz no Oriente Médio”. Qual seria a
alternativa? Aprofundar o apartheid na zona C da Cisjordânia, com a construção
de mais colônias de ocupação, enquanto não se dá licenças de construção para os
moradores palestinos?
A realização bem-sucedida do
Fórum Social Mundial pela Palestina Livre abre, no Brasil, uma oportunidade
rara. Permite que brasileiros — de origem judaica, árabe ou qualquer outra —
proponham um novo olhar: uma mirada de ação afirmativa que, em vez de recusar
os direitos de um ou de outro lado, afirme e defenda esses direitos.
A primeira ação, que pode ter
efeitos contínuos e duradouros, pode ser a proposta de um tratamento Fair Trade
(Comércio Justo) para o azeite de oliva palestino. Chegaria às mesas de
brasileiros dispostos a lutar pela paz.
Permitiria, além de consumir um produto
de qualidade e repleto de simbologia, estimular contatos com os que o produzem
— desde o cultivo das oliveiras à industrialização artesanal. Lembraria que a
oliveira, símbolo da paz, é plantada por gente comum que zela pela subsistência
de suas famílias, e arrancada às vezes por vândalos, ou destruída por
bulldozers que fazem a preparação do terreno para construção do muro de
separação.
Importar e distribuir o azeite
palestino será trazer ao conhecimento do consumidor-cidadão a existência de
filmes como Budrus, que mostram a realidade na escala do humano de palestinos
que resistem de forma não-violenta, apoiados por israelenses com esse outro
olhar.
Há inúmeras formas de intervirmos
— nós, brasileiros — com uma pauta de ações afirmativas, no programa “Lado a
Lado”: a construção da paz no Oriente Médio – um papel para as Diásporas”,
lançado pelo Itamaraty e que certamente contará, mais cedo ou mais tarde, com
apoio das lideranças judaicas mais esclarecidas.
Temos uma grande vantagem: é
muito mais fácil arregimentarmos num movimento nesse sentido setores crescentes
de uma comunidade pequena – e em certos aspectos provinciana – de 100 mil
pessoas — do que seria possível na maior comunidade judaica, 50 vezes maior.
A oportunidade está à nossa
frente. Em termos judaicos, poder-se-ia dizer que o Fórum Social Mundial está
às vésperas de celebrar o seu Bar Mitzvá, o ritual que marca a passagem dos
jovens para a responsabilidade moral pelos seus atos, aos 13 anos. Que possamos
amadurecer ações afirmativas para celebrá-las no 13º FSM, na Tunísia, em abril
de 2013.
* Sérgio Storch é consultor em
Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social.
Escreve, em Outras Palavras, a coluna Outro Israel.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br
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