Religião, Ciência e Saber, Por José Comblin
Estamos saindo de uma época de
conflito entre a religião, ou mais propriamente a religião cristã, e a ciência,
ou mais propriamente a ciência ocidental.
Houve conflito e conflito muito forte
porque tanto a religião como a ciência queriam ser um saber, o saber. Cada uma
achava que estava em posse do saber total, global, básico, universal e
definitivo. Mas hoje em dia devemos reconhecer que nem a religião, nem a
ciência, são um saber.
Ao saber está associado o poder.
Durante séculos a religião e a ciência lutaram pelo poder. A Igreja lutava para
defender o poder total que tinha durante a cristandade. Continuava afirmando
que possuía o saber básico ao qual estavam subordinados todos os saberes, e,
por isso achava que tinha o direito de dirigir a sociedade e vida humana total.
Na atualidade ainda há
setores do cristianismo que lutam para defender esse poder total. São os movimentos fundamentalistas tão fortes
em Roma, e os movimentos fundamentalistas protestantes dos Estados Unidos.
Querem uma sociedade cristã porque acham que têm a ciência total e básica.
Porém, isto é um resto do passado. Não condiciona muito a sociedade humana
contemporânea, mas constitui um perigo para as instituições religiosas, o
perigo de se transformarem em seitas como diz Hans Küng.
Na cristandade nasceu o conceito
de “magistério” que se tornou um dos conceitos fundamentais da eclesiologia. A
hierarquia reivindica o poder absoluto na cristandade por ser o magistério,
depositária das doutrinas sagradas.
O magistério gerou a Inquisição. A doutrina
foi o maior instrumento de poder na cristandade. O Papa não tinha um exército
importante, mas podia mobilizar todos os exércitos da cristandade e ser o
grande chefe militar como sucedia nas Cruzadas.Tudo isso em nome da doutrina
que lhe dava autoridade.
No entanto, o cristianismo não é
um saber. Nada ensina sobre Deus a não
ser que nada se pode saber de Deus. Deus manifesta-se como dizia um escrito de
um cartuxo inglês do século XIV “na nuvem do não-saber”.
De Deus sabemos que
está aqui, mas não sabemos o que é. A tradição judeo-cristã ensina que nada
podemos saber dele. A própria palavra “Deus” já é um engano, porque já é uma
qualidade definida. Na história das religiões há uma infinidade de deuses. Dar
o nome de “Deus” já é colocar numa classificação. Já é determinar,ou seja,
limitar. O Deus dos profetas e de Jesus está além de qualquer palavra. Está
além de qualquer atributo ou qualidade.
Dizer algo dele já é limita-lo, ou seja, reduzi-lo à categoria de criatura.
Jesus diz: “O Pai” mas diz o nome Esse Pai permanece escondido.
Esse Pai manifestou-se, mas não
para dizer o que ele é. Foi para manifestar a sua vontade, o caminho que os
seres humanos devem seguir para se libertarem do mal que os aflige.
Manifestou-se pela palavra dos profetas e pela vida de Jesus. Jesus diz o que o
Pai quer. Ensina uma prática, mas não ensina uma doutrina sobre Deus, não
ensina nenhuma teologia. A sua mensagem está nas suas ações e as suas palavras
ilustram as suas ações. Essas ações contêm uma mensagem válida para sempre e
para todos.
A revelação diz o que é para fazer, não diz o que Deus é, mas o que
ele faz em nós. Não revela nenhuma essência nova ou desconhecida. Mostra como é
que se deve agir.
Por outro lado, a história da
humanidade está cheia de religiões diferentes e a própria tradição cristã transmite um sistema religioso, ou,
pelo menos, uma coleção de dados religiosos : mitos, ritos, preceitos. O que
pensar disso ?
A vida está cheio de mistérios:
porque o nascimento? porque a morte? a doença?
os acidentes? as necessidades não satisfeitas? a presença do ser humana
na terra?, como animal mais desenvolvido? a coexistência de seres humanos
diferentes querendo ocupar o mesmo espaço? e assim por diante.
As respostas a essas perguntas
não se acham nesta terra. Nada responde às perguntas. Mais tarde as ciências
vão estudar como funciona o nosso mundo. Podem explicar donde vem esta doença,
esse acidente, mas não explica porque existe a doença, ou porque existem
acidentes. As próprias causas próximas somente apareceram depois de muitos
séculos de experimentação e observação do funcionamento dos seres que
conhecemos.
A conclusão mais óbvia é que
todos os mistérios se explicam pela intervenção de outros entes situados fora
deste mundo. Imagina-se outro mundo superior a este e povoado de entes
favoráveis ou desfavoráveis que intervêm neste mundo e estão na origem de tudo
o que nos preocupa. Esses entes são dotados de mais poder do que os mais poderosos
da terra.
Diante desses entes podemos agir
de diversas maneiras. Em primeiro lugar esses entes provocam medo. Mircea
Eliade dizia das religiões em geral que elas não acreditam nos seus deuses, mas
têm medo deles. O medo é uma das grandes forças religiosas. Acontece tanta
coisa ruim deste mundo: muitas entidades superiores devem estar irritadas. Como
acalma-las ? Nasceu a imensa teoria dos sacrifícios.
Não insisto porque tudo
isso é muito conhecido. O que nos interessa é que boa parte dessas religiões
entrou na Bíblia. Ela também tem uma mitologia, ritos, preceitos tudo para
agradar a Deus. Donde vem isso? Da influência das religiões vizinhas. Entra na
Bíblia uma herança de muitos milênios. Porém houve a voz dos profetas que
selecionou, aceitou elementos favoráveis e eliminou ou procurou eliminar os
desfavoráveis
Toda essa religião do Antigo
Testamento foi considerada revelação de
Deus: é isso que é difícil de se aceitar. Jesus criticou todo o sistema
religioso judaico e não fundou nenhuma religião nova, nem doutrina, nem ritos,
nem preceitos religiosos. Ensina um caminho, uma maneira de viver.
Mais tarde a
tradição cristã introduziu de novo um sistema religioso. Em parte foi uma
reintrodução de elementos judaicos. Em
parte foi influência dos sistemas religiosos dos povos pagãos. Em parte foi
influência das circunstâncias políticas. Foram criados os sacramentos, toda uma
organização religiosa, uma série de preceitos morais que Jesus deixou na
indefinição .
Todo esse sistema foi
atribuído a Jesus e constituiu uma doutrina supostamente revelada. Teólogos
foram encarregados de mostrar que tudo isso vinha de Jesus. Jesus teria deixado
todos os elementos dos quais a Igreja tirou uma doutrina, uma teologia. Daí o
surgimento de um saber religioso cristão.
Porém este saber não procede de
uma revelação. Não tem valor definitivo ou universal. Não procede de Jesus.
Como todas as religiões, tem um grande valor poético, artístico, psicológico e
sociológico. Mas pode e deve mudar quando já não cumpre essas funções. Não faz
sentido impor a um povo um sistema religioso que se tornou incompreensível
porque supostamente foi uma revelação divina.
Hoje em dia todo o sistema
tridentino já é inaceitável. Porque é incompreensível Somente se mantém por
causa da chantagem do Opus Dei e outros movimentos fundamentalistas,
integristas que intimidam a hierarquia. Faz tempo que a hierarquia treme de
medo diante da chantagem desses movimentos. Em lugar de buscar no mundo atual
as expressões religiosas adequadas, querem impor algo que os católicos adultos
não aceitam.
Transformam em dogmas de fé
elementos religiosos que tiveram o seu papel na história da Igreja e foram
criados para responder a necessidades temporárias. Fazem de tudo isso uma
revelação divina e há teólogos que buscam os fundamentos dogmáticos desses elementos. Dessa maneira fazem do
cristianismo um saber inaceitável na atual condição da humanidade. Daí a revolta não contra
Jesus, mas contra todo o sistema de saber que um magistério mal aconselhado
ensina como se fosse revelação divina.
Por outro lado está a ciência.
Hoje em dia sabemos também que a ciência não é um saber. É uma crítica
incessante a todas as teorias que se apresentam como saber científico. A
ciência sabe agora que nunca vai saber o que é o mundo.
A multiplicação das
experiências e das tecnologias de exploração científica faz com que qualquer
proposição científica já está ultrapassada no momento em que sai publicada. Já
outros foram mais longe, mostrando todos os defeitos da explicação anterior. Todas as teorias são provisórias e
condenadas a ser substituídas em breve por outra que também não vai durar
muito.
Houve em tempo nos séculos XVII e
XVIII em que a burguesia nascente achava que tinha encontrado na ciência uma
explicação total do universo capaz de substituir o saber da Igreja e por conseguinte de cortar
as bases do poder da Igreja. A burguesia tiraria a justificação da sua ascensão social, política e econômica
na ciência.
A ciência seria uma explicação
racional, definitiva, universal, objetiva do mundo e deixaria sem
fundamento um saber religioso sem base científica.Esta concepção gerou uma
Igreja paralela que foi a Maçonaria, a
religião dos burgueses ( dos homens, porque as mulheres não estavam metidas na
vida pública).
Durante 300 anos a luta entre a
Igreja e a Maçonaria foi a expressão social mais visível do conflito entre os
dois saberes. A Igreja defende com a maior má fé do mundo a sua mitologia
transformada em dogma, porque é a base do seu poder na sociedade. A Maçonaria
encontra na ciência a arma decisiva capaz de destruir o poder da Igreja e de
justificar a ascensão da burguesia.
O projeto de uma ciência como
representação objetiva, universal e permanente do mundo era um sonho. O próprio
desenvolvimento da ciência mostrou no
século XX que a ciência passa de um paradigma para outro. Todo paradigma é
provisório e o progresso da ciência consiste justamente em prosseguir a
experimentação até desmontar esse
paradigma e construir outro. A ciência é uma procura permanente para entender a
complexidade do mundo que se revela cada vez mais longe do pensamento.
O
progresso da ciência consiste em dividir cada vez mais os fenômenos de tal modo
que se multiplicam as conexões com a certeza de que a realidade é mais complexa
ainda.Isto desfaz o projeto de uma representação da realidade unificada ao
redor de alguns princípios científicos imutáveis.
Como nasceram esses dois projetos
de saber objetivo e definitivo, um baseado na ciência de Deus e outro fundado
no método científico ? Na raiz desses projetos esteve a filosofia grega com o
seu sonho de um conhecimento objetivo, absoluto dotado de uma total certeza. A
certeza que se supõe possível no saber da essência, do “esse” do universo,
poderia gerar a certeza de tudo o que se pode deduzir dessa evidência primária.
Os gregos inventaram esse ideal do conhecimento do ser que seria um
conhecimento universal e indiscutível.
O problema fundamental era conhecer o “ser”, o conceito mais
universal do qual derivariam todos os outros conhecimentos. Esse sonho passou
dos gregos para o mundo ocidental e gerou a
história da filosofia. Infelizmente nunca dois filósofos estiveram de
acordo sobre esse saber primordial. A filosofia do século XX dedicou-se a desmontar
o sonho grego e o próprio conceito de “ser”.
O verbo “ser” não existia na
língua de Jesus e ninguém procurava saber o que são as coisas. Todos os verbos
se referiam ao agir. A entrada da filosofia grega começou na escola da
Alexandria desde o século II com Clemente e Orígenes. Esse movimento encontrou
uma forte oposição por parte dos monges durante séculos.
No século XII e
sobretudo no século XIII a filosofia grega entrou e foi admitida na Igreja.
Nasceu a ideia de que o cristianismo é uma doutrina de valor absoluto porque
reflete o próprio pensamento de Deus, o que vai conferir um poder absoluto ao
magistério que se inspira nela. O resto da história, já o conhecemos.
Na Igreja
desde o século XIX o movimento bíblico pouco a pouco conseguiu mostrar a
artificialidade do sistema teológico defendido pela hierarquia. Hoje em dia fora da própria
hierarquia ninguém mais acredita nessa teologia dita escolástica, ou seja,
inspirada na filosofia grega. O pensamento cristão consiste em descobrir a
aplicação do caminho evangélico no mundo atual. Isto não entra em contradição
com a ciência.
A ciência começou com a magia e
todas as receitas populares para melhorar a alimentação e a saúde. O projeto é como melhorar a vida
sabendo usar os recursos que estão no mundo. Saber o ser do mundo não ajuda em
nada. A ciência não tem motivo de oposição ao caminho do evangelho. Mas é claro
que ela não se conforma com a visão do mundo de Aristóteles. E porque os
teólogos deviam defender a posição de Aristóteles como se fosse revelação
divina?
Os filósofos gregos tiveram o
sonho de um saber universal, absoluto, válido sempre e para todos. Eles teriam
sido os privilegiados que teriam descoberto a ciência universal. “O milagre
grego”. Mas existem muitas civilizações, muitas culturas e todas têm a sua
concepção de vida.
A universalidade não existe. O que é possível é um diálogo
entre as culturas para se chegar a certas posições comuns aceitáveis por todos.
Seria algo assim como a Declaração dos
direitos humanos, ainda que essa Declaração
proceda do mundo ocidental. Seria algo resultando de um diálogo mais
completo. Não temos uma moral universal e a própria moral da Igreja deriva em
grande parte das culturas dos povos que foram introduzidos na Igreja.
A moral
de Jesus era muito simples, ainda que quase de aplicação impossível. Ela é tão
simples que pode ser aceita em todas as culturas e pode ser a base de um
consenso universal. Mas o sistema católico nunca poderá ser essa base.
Texto-conferencia, Congresso da
Soter, 6 a 9 de julho de 2009, Belo Horizonte, publicado em Sociedade e
Religião, Ed. Paulinas.
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