Feministas em pé de guerra - Por Sofia Moutinho


Mulheres muçulmanas se organizam em protesto contra as integrantes do grupo Femen e as acusam de imperialismo ao tomar sua voz na luta contra o sexismo. Pesquisadoras divergem ao analisar a polêmica.
O movimento feminista Femen, conhecido pelos protestos com mulheres de seios à mostra, desagradou outro grupo de feministas, este formado por islâmicas. Muçulmanas contrárias ao sexismo, em sua maioria vivendo em países ocidentais, criaram uma página no Facebook de combate à ‘cruzada’ feminista do Femen e à ideia de que o Islã oprime as mulheres.

Tudo começou depois de um protesto típico do Femen cujo alvo era o islamismo. As ativistas feministas convocaram suas integrantes ao redor do mundo a sair às ruas de seios de fora com o torso pintado com dizeres contra a religião no chamado Topless Jirah Day. 
O ato foi uma resposta à ameaça de apedrejamento até a morte que uma das adeptas do movimento, a tunisiana Amina Tyler, recebeu do líder muçulmano Adel Almi depois de mostrar seus seios na página Femen,Tunísia do Facebook com os dizeres em árabe: “Meu corpo me pertence e não é motivo de honra de ninguém”.
No protesto, que teve adeptos inclusive no Brasil, as integrantes do Femen usaram toalhas na cabeça e barbas postiças fazendo referências aos homens árabes e seguraram cartazes que diziam “Mulheres árabes contra o islamismo, não temam a liberdade”, “Liberdade nua”, “Dane-se sua moral!”.
Ofendidas, 13 muçulmanas da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, criaram a página Muçulmanas contra o Femen no Facebook, que já conquistou mais de seis mil seguidores. A comunidade virtual é descrita como um espaço para “expor o Femen como as imperialistas islamofóbicas que são”.
Além dos posts no Facebook, as manifestantes organizaram uma ação pedindo que mulheres islâmicas postassem fotos suas com cartazes contra o Femen no Twitter.
“Entendemos que deve ser difícil para muitas de vocês, feministas brancas colonialistas, acreditar que as mulheres muçulmanas têm sua própria autonomia e podem lutar e falar por si mesmas”

Em um manifesto assinado pelo grupo e traduzido para o português pela revista virtual Pittacos, as mulheres acusam o Femen de ter tomado partido em uma luta que não é das ocidentais e não deveria ser feita usando a nudez. As muçulmanas também argumentam que as integrantes do Femen são preconceituosas em relação ao Islã.
“Entendemos que deve ser difícil para muitas de vocês, feministas brancas colonialistas, acreditar que as mulheres muçulmanas, assim como a demais não brancas, têm sua própria autonomia e podem lutar e falar por si mesmas”, diz o documento em tom irônico. 
“Somos orgulhosas de ser muçulmanas e cansadas de sua verborragia racista e colonialista, sempre disfarçada de ‘Liberação Feminina’”.
Na página do movimento no Facebook, a moderadora explica que o espaço não é para xingamentos nem para acusar as feministas ocidentais de serem prostitutas por exibirem o corpo, mas reforça que “o Femen está criticando o Islã e não ajudando mulheres que possam realmente estar oprimidas”.
Sobre a situação que desencadeou a confusão, a ameaça sofrida pela jovem da Tunísia, uma das líderes do movimento feminista muçulmano, Sofia Ahmed, diz no Facebook:
“A chamada pelo apedrejamento foi feita por uma figura isolada na Tunísia e não representa as opiniões de todos os muçulmanos pelo mundo. Damos suporte a protestos contra o sexismo, mas acreditamos que para serem eficientes eles precisam ser culturalmente específicos. Vemos o Islã como forma de empoderamento e liberdade, não precisamos do Femen para falar por nós.”
A líder ucraniana do Femen, Inna Shevchenko, respondeu também na rede social que não acredita no protesto das muçulmanas. “Elas dizem que são contra nós, mas continuamos afirmando que estamos aqui por elas. Elas escrevem que não precisam de libertação, mas em seus olhos está escrito ‘Ajude-me’.” 

Feminismo e religião


A antropóloga Maria Lygia Quartim, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda que o Islã tem componentes machistas e comenta a tentativa do grupo de mulheres muçulmanas de mesclar religião e feminismo. 

“É claro que o islamismo, como praticamente todas as religiões, é machista”, diz. “Não podemos esquecer que no Brasil também enfrentamos o atraso e o puritanismo das Igrejas católica e evangélica. Um dos maiores problemas para a consolidação da democracia é justamente a tentativa de sobrepor preconceitos religiosos aos princípios republicanos. Basta citar a desastrosa atuação do pastor Feliciano, que invoca satanás e exige a senha dos cartões de seus seguidores.”
Quartim, por outro lado, questiona a estratégia do Femen de usar o seio como ferramenta de protesto e compreende que as mulheres muçulmanas não se identifiquem com a nudez.
“Trata-se de um grupo de jovens cuja principal forma de atuação política é a provocação”, comenta. “Sem sombra de dúvidas, há uma enorme receptividade midiática e esse parece ser o objetivo. Mas, imagine que um grupo de jovens do sexo masculino resolvesse exibir a parte do corpo mais saliente, dizendo que a moral se dane? Provavelmente, seriam processados por atentado ao pudor. Se é para exibir o corpo, fico mais com o nudismo que não faz diferença de gênero.”
Já Samira Osman, especialista em história da Ásia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende que o islamismo em si não diminui a mulher. Para ela, o problema está na interpretação que é dada ao Alcorão por governos autoritários.
“Há várias passagens do Alcorão que tratam da defesa dos direitos das mulheres numa sociedade pagã e patriarcal na qual o infanticídio feminino era prática comum e passou a ser proibido com o advento do Islã”, lembra. 
“Claro que a expansão por diferentes culturas fez com que costumes tribais e étnicos fossem incorporados às práticas do Islã, levando a uma confusão entre o que o islamismo prega originalmente e como é praticado.”
Osman concorda com a reivindicação das muçulmanas e aponta que o Ocidente, e muitas feministas, têm uma visão distorcida do Islã como fonte de fanatismo e violência.
 “Tudo o que a gente conhece de islamismo, e particularmente sobre as mulheres islâmicas, é produto de uma ótica ocidental”, diz Osman. 
“Para as mulheres islâmicas há sempre um viés em retratá-las como infelizes e oprimidas, de forma generalizante, desconsiderando como o Islã é múltiplo e poliforme. As feministas adoram apontar a opressão feminina no Islã com um discurso redentor de que o Ocidente irá libertá-las. Como se o Ocidente não sofresse dos mesmos problemas em relação à mulher".



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