Por que estudar História? - Laura de Mello e Souza
Laura de Mello e Souza é
professora titular de História Moderna da Universidade de São Paulo. É autora
de O Diabo e A Terra de Santa Cruz (1986) e O Sol e a Sombra (2006), entre
outros livros. Organizou e foi coautora do primeiro volume de A História da
Vida Privada no Brasil.
Para responder esta pergunta, a
primeira frase que me ocorre é a resposta clássica dada pelo grande Marc Bloch
a seu neto, quando o menino lhe perguntou para que servia a História e ele
disse que, pelo menos, servia para divertir.
Após 35 anos de vida profissional
efetiva, como pesquisadora durante seis anos e, desde então, 29 anos, também
como docente na Universidade de São Paulo, considero que a diversão é
essencial, entendida no sentido de prazer pessoal: a melhor coisa do mundo é
fazer algo que gostamos de fato, e eu sempre adorei História, sempre foi minha
matéria preferida na escola, junto com as línguas em geral, sobretudo italiano
e português, e sempre mais a literatura que a gramática.
Mas a História é, tenho certeza
disso, uma forma de conhecimento essencial para o entendimento de tudo quanto
diz respeito ao que somos, aos homens. Os humanistas do renascimento diziam que
tudo o que era humano lhes interessava. A História é a essência de um
conhecimento secularizado, toda reflexão sobre o destino humano passa, de uma
forma ou de outra, pela História.
Sociologia, Antropologia,
Psicologia, Política, todas essas disciplinas têm de se reportar à História
incessantemente, e com tal intensidade que o historiador francês Paul Veyne
afirmou, com boa dose de provocação, que como tudo era História, a História não
existia (em Como escrever a História).
Quando os homens da primeira
Época Moderna começaram a enfrentar para valer a questão de uma história
secular, que pudesse reconstruir o passado humano independente da história da
criação, dos livros sagrados, sobretudo da Bíblia, eles desenvolveram a
erudição e a preocupação com os detalhes, os fatos, os vestígios humanos, as
escavações arqueológicas, por exemplo e criaram as bases dos procedimentos que
até hoje norteiam os historiadores.
Mesmo que hoje os historiadores
sejam descrentes quanto à possibilidade de reconstruir o passado tal como ele
foi, qualquer historiador responsável procura compreender o passado do modo
mais cuidadoso e acurado possível, prestando atenção aos filtros que se
interpõem entre ele, historiador, e o passado.
Qualquer historiador digno do
nome busca, como aprendi com meu mestre Fernando Novais, compreender, mesmo se
por meio de aproximações. Compreender importa muito mais do que arquitetar
explicações engenhosas ou espetaculares, e que podem ser datadas, pois cada
geração almeja se afirmar com relação às anteriores ancorando-se numa
pseudo-originalidade.
Sem querer provocar meus companheiros das outras humanidades, eu diria que a Antropologia nasce a partir da História, e porque os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII começaram a perceber que os povos tinham costumes diferentes uns dos outros, e que esses costumes deviam ser entendidos nas suas peculiaridades sem serem julgados aprioristicamente.
É justamente a partir desse
conhecimento específico que os observadores podem estabelecer relações gerais comparativas
e tecer considerações, enveredar por reflexões mais abstratas. Portanto, a
História permite lidar com as duas pontas do fio que possibilita a compreensão
do que é humano: o particular e o geral.
A História é fundamental para o pleno exercício da cidadania. Se conhecermos nosso passado, remoto e recente, teremos melhores condições de refletir sobre nosso destino coletivo e de tomar decisões.
Quando dizemos que tal povo não
tem memória, dizemos isso frequentemente de nós mesmos, brasileiros, estamos, a
meu ver, querendo dizer que não nos lembramos da nossa história, do que
aconteceu, por que aconteceu, e daí escolhermos nossos representantes de modo
um tanto irrefletido, na história recente do país, o caso de meu estado e de
minha cidade são patéticos, de nos sentirmos livres para demolirmos monumentos
significativos, fazermos uma avenida suspensa que atravessa um dos trechos mais
eloquentes, em termos históricos, da cidade do Rio de Janeiro, o coração da
administração colonial a partir de 1763, o palácio dos vice-reis. Quando olho
para a cidade onde nasci, onde vivo e que amo profundamente
Fico perplexa com a destruição
sistemática do passado histórico dela, que foi fundada em 1554 e é dos mais
antigos centros urbanos da América: refiro-me a São Paulo. Se administradores e
elites econômicas tivessem maior consciência histórica talvez São Paulo pudesse
ter um centro antigo como o de cidades mais recentes que ela, Boston, Quebec,
até Washington, para falar das cidades grandes, que são mais difíceis de
preservar.
Não acho que se toda a humanidade fosse alimentada desde o berço com doses maciças de conhecimento histórico o mundo poderia estar muito melhor do que está. Mas a falta do conhecimento histórico é, a meu ver, uma limitação grave e, no limite, desumanizadora.
Acho interessante o fato de
muitas pesquisas indicarem que, excluindo os historiadores, obviamente, o
segmento profissional mais interessado em História é o dos médicos. Justamente
os médicos, que lidam com pessoas doentes, frágeis e amedrontadas diante da
falibilidade de seu corpo e da inexorabilidade do destino humano. E que têm que
reconstituir a história da vida daquelas pessoas, com base na anamnese, para
poder ajudá-las a enfrentar seus percalços.
Carlo Ginzburg escreveu um ensaio
verdadeiramente genial, sobre as afinidades do conhecimento médico e do
conhecimento histórico, ambos assentados num paradigma indiciário (refiro-me, o
ensaio “Sinais, raízes de um paradigma indiciário”, que faz parte do livro
Mitos, emblemas, sinais). Portanto, volto ao início, à diversão, e acrescento:
o conhecimento histórico humaniza no sentido mais amplo, porque ajuda a
enxergar os outros homens, a enfrentar a própria condição humana.
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