A manipulação das consciências pelo cinema - Por José Tadeu Arantes
“Uma imagem vale mais que mil palavras”:
essa
frase, que alguns atribuem a Confúcio, transformou-se em clichê. Repetida bem
mais de mil vezes, não perdeu, por isso, sua validade. Ela é especialmente
verdadeira quando se trata de cinema.
E, mais ainda, quando o cinema é
utilizado como arma de propaganda política e controle da opinião pública. Tal é
o tema do livro:
O poder da imagem
de Wagner Pinheiro Pereira. Pós-doutor pela Universidade de
São Paulo (USP), com Bolsa da FAPESP e professor adjunto de
História da América no Instituto de História e no Programa de Pós-Graduação em
História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/PPGHC-UFRJ),
Pereira investiga o assunto desde seu trabalho de iniciação científica, para o
qual também teve Bolsa da FAPESP.
O tema foi tratado nesse livro a
partir de um estudo de história comparada que enfocou dois regimes distintos: uma
ditadura de tipo totalitário, representada pelo governo nazista na Alemanha; e
uma democracia de tipo liberal, representada pelo governo de Franklin Delano
Roosevelt nos Estados Unidos da América. Ambos tiveram 12 anos de duração;
ambos se estenderam de 1933 a 1945; ambos utilizaram com mestria o cinema como
instrumento de cooptação e adestramento da opinião pública, dentro e fora dos
respectivos países.
“Embora o caso da Alemanha seja
mais conhecido como exemplo da instrumentalização política das manifestações
artístico-culturais, procurei mostrar que, em um país democrático, Roosevelt,
por ter tido quatro mandados consecutivos (foi o único presidente americano a
conseguir isso), também instrumentalizou os meios de comunicação, especialmente
o rádio e o cinema, para fins políticos, antes mesmo da Segunda Guerra
Mundial”, disse Pereira à Agência FAPESP.
Segundo o autor, o livro
desdobra-se em dois momentos principais: o primeiro é uma análise da relação
entre Estado, cinema, cineastas e sociedade. O segundo é uma análise voltada
aos principais temas tratados pelos cinemas alemão e norte-americano durante as
décadas de 1930 e 1940. Essa foi considerada a idade de ouro do cinema nos dois
países.
“Nessa primeira parte, minha
grande preocupação foi pensar no papel das indústrias cinematográficas,
lembrando que os Estados Unidos, com suas oitos companhias cinematográficas
maiores, dividas emmajors e minors, já dominavam a produção
cinematográfica mundial; e a Alemanha, principalmente com os estúdios da UFA [Universum
Film Aktien Gesellschaft], alçou-se à condição de maior produtor
cinematográfico da Europa e segundo em escala planetária”, afirmou Pereira.
O pesquisador recordou que a
relevância do cinema alemão foi internacionalmente reconhecida ainda antes da
ascensão de Hitler, em 1933. Filmes do ciclo expressionista, como: O
gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1919), Nosferatu (Friedrich
Murnau, 1922) e Metrópolis (Fritz Lang, 1927), são até hoje
considerados “clássicos”. Igualmente lembrado é o O anjo azul (Josef
von Sternberg, 1930), que lançou Marlene Dietrich no cenário internacional.
Instrumentalização da vida
cultural
Ao assumir o poder, Hitler
instituiu, como uma de suas primeiras medidas, o Ministério Nacional para
Esclarecimento Público e Propaganda, que, chefiado por Joseph Goebbels, iria
instrumentalizar toda a vida cultural alemã, com prioridade absoluta para o
cinema.
“Tanto Hitler quanto Goebbels
eram cinéfilos inveterados. Goebbels afirmou, em seus diários, que ambos viam
pelo menos dois filmes por noite, fossem alemães ou estrangeiros, especialmente
norte-americanos, e que ele chegou a assistir 20 vezes a Branca de Neve e
os sete anões (David Hand, 1937), produzido por Walt Disney nos Estados
Unidos”, informou Pereira.
Conhecedores do poder das
imagens, esses dois protagonistas do regime nazista trataram de canalizar a
força do cinema para fins de propaganda. Suas orientações nesse sentido,
extensamente citadas no livro de Pereira, são de uma astúcia e de uma
explicitação desconcertantes.
“Toda propaganda deve ser
simples, emotiva e popular e estabelecer o seu nível espiritual de acordo com a
capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende
se dirigir”, escreveu Hitler em seu livro: Mein Kampf (Minha luta).
“A capacidade de compreensão do
povo é muito limitada, mas, em compensação, a capacidade de esquecer é grande.
Assim sendo, a propaganda deve restringir-se a poucos pontos. E esses deverão
ser valorizados pela ação de fórmulas estereotipadas, até que o último dos ouvintes
esteja em condições de assimilar a ideia”, escreveu.
Colocando no mesmo prato
totalitarismo e misoginia, o líder nazista declarou: “A psique das massas é de
natureza a não se deixar influenciar por meias medidas, por atos de fraqueza.
Assim como as mulheres, cuja receptividade mental é determinada menos por
motivos de ordem abstrata do que por uma indefinível necessidade sentimental de
uma força que as complete, e que, por isso, preferem curvar-se aos fortes a
dominar os fracos, assim também as massas gostam mais dos que mandam do que dos
que pedem, e sentem-se mais satisfeitas com uma doutrina que não tolera nenhuma
outra do que com a tolerante largueza do liberalismo”.
Goebbels transformou essa
orientação geral em diretrizes ainda mais explícitas e operacionais: “O
propagandista tem de construir sua própria verdade”, afirmou.
“O que for útil ao progresso do
partido é verdade. Se coincidir com a verdade real, tanto melhor; se não
coincidir, será preciso fazer adaptações. A grande e absoluta verdade é que o
Partido e o Führer estão certos. Eles sempre estão certos (...) Tudo
interessa no jogo da propaganda: mentiras, calúnias. Para mentir, que seja
grande a mentira, pois, assim sendo, nem passará pela cabeça das pessoas ser
possível arquitetar tão profunda falsificação da verdade”, disse.
De 1933 a 1942, Goebbels comandou
o processo de “nazificação” da sociedade alemã. Nesse grande empreendimento, um
elemento decisivo foi a estatização das companhias cinematográficas.
Entre as muitas informações
curiosas veiculadas pelo livro: O poder das imagens, uma é que aquela que
se tornaria, mais tarde, a grande diva do cinema norte-americano, a belíssima
sueca Ingrid Bergman (filha de mãe alemã de ascendência judaica), estrela de
dois “clássicos” antifascistas,Casablanca (Michael Curtiz, 1942) e Por
quem os sinos dobram (Sam Wood, 1943), alavancou sua carreira na Alemanha
nazista, quando a indústria cinematográfica local recrutava jovens atrizes
estrangeiras, que, por sua fisionomia, pudessem se fazer passar por alemãs de
“puro sangue ariano”.
O cinema como mercadoria
Do outro lado do Atlântico, mais
precisamente na costa do Pacífico, a indústria cinematográfica norte-americana
já havia alcançado sua plena maturidade. “Essa indústria estruturou-se com base
em um tripé”, disse Pereira.
Em primeiro lugar, havia um
sistema de estúdios. O cinema deixou de ser pensado como arte e passou a ser
considerado mercadoria, tendo seu sucesso ou fracasso medido pela bilheteria. A
produção em série pôs em prática um modelo muito semelhante ao adotado por Ford
na indústria automobilística.
A narrativa devia ser simples,
estruturada em começo, meio e fim, e adotou-se a montagem paralela, técnica
narrativa instaurada por David Griffith em o Nascimento de uma nação, de
1914, que alterna planos de duas sequências diferentes.
Outra base do tripé foi o sistema
de estrelato, baseado na percepção de que os espectadores estabelecem um
processo psicológico de empatia com as histórias dos filmes, passando a se
identificar com determinados atores e atrizes, que, principalmente no governo
Roosevelt, a partir dos papéis glamorosos que representavam, se tornaram
símbolos do american way of life, o modo de vida americano.
O terceiro eixo foi o código de
autocensura, pois, já que o filme não era mais visto como obra de arte, e sim
como produto comercial, ele não podia correr nenhum risco de sofrer censura por
parte das instituições governamentais, religiosas ou de qualquer outro setor da
comunidade.
Para isso, de acordo com Pereira,
o Código Hays, um conjunto de regras estabelecidas por William Harrison Hays,
primeiro presidente da Associação dos Produtores e Distribuidores
Cinematográficos dos Estados Unidos, que assumiu o cargo na década de 1920 com
a missão de moralizar os costumes em Hollywood, normatizou o que podia e o que
não podia ser dito nos filmes, consagrou o happy end, o final feliz,
geralmente coroado com um beijo pudico, e proibiu tudo o que pudesse suscitar
oposição: relação extraconjugal, prostituição, homossexualidade, crítica a
setores religiosos etc.
“Quando Roosevelt chegou ao
poder, em 1933, o país ainda enfrentava os terríveis problemas da Grande
Depressão, decorrente da Crise de 1929. E ele pôde contar, já no primeiro
momento, com a força do cinema para levar seu projeto de recuperação do New
Deal adiante. Cineastas como Walt Disney, Frank Capra, John Ford e outros
produziram filmes otimistas, reerguendo o mito, muito caro aos
norte-americanos, do self-made man, aquele homem empreendedor que, a
partir do trabalho árduo e da dedicação, consegue alcançar sucesso na sociedade
democrática”, afirmou o professor da UFRJ.
Foram possibilitados ingressos
mais baratos, duas sessões e outros atrativos para chamar o público às salas de
cinema. “Um dado muito importante é que, mesmo no período da Grande Depressão,
o cinema foi a única indústria norte-americana que não sofreu nenhum perigo de
falência ou decréscimo de rendimento. Pelo contrário, as pessoas continuavam
afluindo em massa às sessões, prendendo-se, durante duas horas, às fantasias cinematográficas,
para fugir um pouco da dura realidade da vida cotidiana”, ressaltou.
Apesar do arraigado antiestatismo
da sociedade norte-americana, a ingerência estatal na indústria cinematográfica
intensificou-se com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
“Roosevelt criou dois órgãos
estatais para monitorar o cinema: o Escritório de Informação de Guerra (que
fiscalizava as produções voltadas para a Europa) e o Escritório do Coordenador
para Assuntos Interamericanos, nas mãos do empresário e político Nelson
Rockfeller (que cuidava do intercâmbio e da diplomacia cultural com a América
Latina, condensados na chamada ‘Política da Boa Vizinhança’)”, disse Pereira.
Intercâmbio EUA-Alemanha
Até a entrada dos
norte-americanos na guerra, houve um intenso intercâmbio cinematográfico entre
os Estados Unidos e a Alemanha. O modelo de estrelato norte-americano foi
copiado pelos alemães. Em seu primeiro discurso à comunidade cinematográfica,
Goebbels apontou, entre os protótipos a serem seguidos, o filme Love (Edmund
Goulding, 1927), estrelado por Greta Garbo (que voltaria a interpretar a
personagem Ana Karenina na versão sonora dirigida por Clarence Brown em 1935).
Em 1939, Goebbels ficou fascinado
com E o vento levou (Victor Fleming, 1939). Ao mesmo tempo, os
norte-americanos se deixaram seduzir pelo monumental documentário: Olympia,
sobre as Olimpíadas de Berlim de 1936. Essa tradução imagética da ideologia
nazista, filmada em 1936 e estreada em 1938, projetou internacionalmente o nome
de sua diretora, Leni Riefenstahl.
Na segunda parte do livro,
Pereira investigou como o cinema, tanto alemão quanto norte-americano,
mitologizou temas como o “líder”, a “nação”, o “homem novo”, o “inimigo”, o
“papel da mulher” e a “guerra”, dentre outros.
Na construção da imagem do líder,
o paradigma foi criado por Leni Riefenstahl em seu filme: O triunfo da
vontade, de 1935. Versando sobre um acontecimento político real, o 6º Congresso
do Partido Nazista, realizado em Nuremberg, Riefenstahl transformou o que
deveria ser mero documentário em uma gigantesca ópera wagneriana, com quase 500
mil figurantes, entre militantes do partido e a massa de apoiadores.
Tendo como pano de fundo essa
multidão anônima, geometricamente coreografada, destaca-se, em primeiro plano,
a figura de Hitler, apresentado como um novo Siegfried, o herói da mitologia
nórdica, ou um novo Cristo, salvador da pátria alemã. Para divinizar o
personagem, realçando seu caráter sobrenatural, a diretora revolucionou a
técnica cinematográfica, com novos ângulos de filmagem, enquadramentos e
recursos de edição.
“É importante destacar aqui uma
diferença”, sublinhou Pereira. “Em um primeiro momento, os norte-americanos
tentaram copiar o modelo alemão na construção da imagem de Roosevelt. Mas logo
verificaram que, devido às próprias características do sistema democrático,
essa exaltação religiosa da figura do líder tinha problemas de aceitação. A
partir daí, a propaganda deslocou-se do homem para a obra, passando a destacar
as realizações do New Deal, o novo acordo materializado no programa de
governo de Roosevelt, em lugar da personalidade do presidente.”
O maior êxito do cinema
hollywoodiano foi na construção do mito do “homem novo”, personificação dos
valores democráticos e encarnação do sonho americano. Ela será o protagonista
de vários filmes, como: O galante Mr. Deeds (Frank Capra, 1936) ou A
mulher faz o homem (Frank Capra, 1939), o primeiro estrelado por Gary
Cooper e o segundo por James Stewart.
“Trata-se do surgimento daquele
personagem que, na historiografia dos Estados Unidos, recebeu o nome de ‘Adão
americano’, um ser puro, um ser bom, repleto de valores democráticos, que vai
entregar sua vida a uma causa nobre. Os inimigos internos são os ‘capitalistas
desonestos’. Há uma crítica às imperfeições das instituições. Mas, ao mesmo
tempo, assegura-se que a democracia liberal é o melhor regime possível. E que,
uma vez entregues aos ‘homens novos’, suas instituições serão salvas”, analisou
o pesquisador.
Com a evolução da Segunda Guerra
Mundial, a instrumentalização cinematográfica das consciências tornou-se mais
intensa nos dois países, apoiando-se na construção das imagens dos “inimigos” e
nas representações da guerra.
Na Alemanha, surgem filmes como o
pseudodocumentário O judeu eterno (Fritz Hippler, 1940), uma
nauseante apologia do racismo antissemita. Com imagens reais, filmadas no Gueto
de Varsóvia, na Polônia ocupada por tropas alemãs, mas uma montagem e uma
narrativa que distorcem grosseiramente o significado das imagens, o filme
compara os judeus a ratos e instila nos espectadores o ódio antissemita,
amestrando a opinião pública para a política de extermínio em massa, que seria
inaugurada exatamente naquele ano, no campo de Auschwitz-Birkenau.
Nos Estados Unidos, o governo
cria um manual para a indústria cinematográfica, mostrando como deveriam ser
apresentados, nos filmes, os inimigos, os aliados, o esforço de guerra etc. Os
grandes inimigos são o “alemão nazista”, o “italiano fascista” e o “japonês
sanguinário”.
“No caso do alemão, há uma
diferenciação. Nem todo alemão é ruim, apenas os nazistas, podendo os demais
serem recuperados. Já os japoneses são apresentados de forma homogênea, como
seres fanáticos e sanguinários”, sublinhou Pereira.
“O filme: Um Punhado de
Bravos (Raoul Walsh, 1945) termina com a mensagem de que todos os
japoneses deveriam ser eliminados da face da Terra. Pouco depois, foram despejadas
as duas bombas atômicas sobre o Japão, em Hiroshima e Nagasaki.”
O retrato heroico da guerra foi
outro tema recorrente na cinematografia alemã e americana da década de 1940. Os
romances, que exaltavam o papel da mulher e a mobilização do “fronte interno”,
e os filmes de reconstituição histórica, como o clássico ...E o Vento
Levou (Victor Flemming, 1939), que estimulavam o “espírito militar”,
foram os gêneros mais populares sobre o tema. Ao mesmo tempo, os cinejornais (Die
Deutsche Wochenschau e The March of Time) e os documentários
apresentavam a guerra como um espetáculo bélico.
Os filmes nazistas afirmavam que
as democracias ocidentais eram nações demoníacas, que pretendiam destruir a
Alemanha. Por isso, os alemães viam-se obrigados a atacar primeiro. Já
Hollywood mostrava os Estados Unidos enfrentando uma árdua luta do “bem contra
o mal”, em que os heróicos e simpáticos soldados norte-americanos travavam uma
longa batalha contra os inescrupulosos e malvados nazistas, na frente
ocidental, e os sanguinários e suicidas japoneses, na frente oriental.
Para o historiador, “a relevância
desse estudo se justificou não só pela tentativa de compreensão mais
aprofundada da utilização do cinema como arma de propaganda de ditaduras
totalitárias e de governos democráticos, mas também pela atualidade do tema, ou
seja, o uso de imagens para fins políticos”.
“As imagens adquiriram um papel
de destaque na sociedade contemporânea, em que tudo se tornou direta ou
indiretamente mediado por elas. Após a guerra de imagens empreendida entre os
governos de George W. Bush e Saddam Hussein, parece que as táticas de
propaganda desenvolvidas pelos governos de Hitler e Roosevelt ainda não foram
ultrapassadas”, destacou Pereira.
O Poder das Imagens
Autor: Wagner Pinheiro Pereira
Lançamento: 2012
Páginas: 699
Autor: Wagner Pinheiro Pereira
Lançamento: 2012
Páginas: 699
Mais informações: www.alamedaeditorial.com.br/o-poder-das-imagens/
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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