A separação entre os Reinos de Deus e o de César - Por Márcia Junges
A Modernidade foi o momento forte
de afirmação da secularização, observa Fernando Catroga.
As “religiões civis”
plasmam-se em práticas simbólicas que visam, na expressão de Rousseau,
“santificar o contrato social”.
“A secularização e a laicidade podem coexistir
com as ‘religiões civis’, desde que estas não se afirmem em conflitualidade com
as religiões propriamente ditas, procurando substituí-las ou extingui-las. Tal
ocorreu nas conjunturas em que vingou o mais radical laicismo, ou lá onde, como
nos casos do nazismo e do comunismo, o Estado paganizou-se, ou fez do ateísmo
uma religião ao contrário”, reflete o filósofo português Fernando Catroga na
entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. E acrescenta:
“Na verdade,
foi preciso esperar pela política do ‘ralliement’, inaugurada por Leão XIII nos
finais do século XIX, mas sobretudo, pelo Concílio Vaticano II, para que Roma
reconhecesse que a laicidade, desde que bem entendida, não atenta contra o
preceito evangélico que convida à não confusão entre o reino de Deus e o reino
de César”.
Fernando José de Almeida Catroga é
licenciado em Filosofia e Doutor em História Moderna e Contemporânea pela
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com a tese A Militância Laica e
a Descristianização da Morte em Portugal (1867-1911), defendida em 1988. É
professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
Portugal, no Instituto de História e Teoria das Ideias. De seus livros, citamos:
- A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal (1865-1911). (2 vols., Coimbra, 1988);
- "La réligiosité civique du republicanisme durant la période de propagande". La Révolution Française vue par les Portugais (Paris, F.C. Gulbenkian, 1990)
- Entre Deuses e Césares. Secularização, Laicidade e Religião Civil (Coimbra: Almedina, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o nexo
existente entre secularização e laicidade?
Fernando Catroga - Confesso
que uma das razões que me levou a aprofundar essa temática nasceu da tomada de
consciência de que, onde ela foi fortemente tocada pela influência francesa, como ocorreu em Portugal, Espanha, Itália e em alguns dos países da América
Latina, com particular destaque para o México, perdura uma grande confusão no
uso dos conceitos de secularização e de laicização. Daí a ênfase que tenho dado
à sua perspetivação histórica e à busca do seu entendimento na longa duração,
porque os seus campos semânticos conotam e denotam realidades históricas
diferentes. Saliente-se que, se a palavra “século” e seus derivados têm uma
origem latina e referem-se a escalas temporais (geração, lapso de tempo,
duração da vida, período máximo de cem anos), “laico” radica em “laos”, um dos
vocábulos usados pelos gregos antigos para designar “povo”.
É um fato que ambos foram
integrados na linguagem cristã, recuperação que, no primeiro caso, teve por
mediador a tradução, feita por S. Jerônimo, de “século” como “mundo”, numa
espécie de sinonímia com “Kosmos”, e que, no segundo, decorreu da utilização de
“laos”, nas traduções gregas do Antigo Testamento, para significar a ideia de
“povo de Deus”. E, com a institucionalização gradual da Igreja, as duas
expressões entraram na linguagem eclesiástica: a última, para denominar a
comunidade dos fieis; e a primeira, para distinguir os clérigos dos crentes. E
será necessário chegar à segunda metade do século XVIII para que se assista ao
alargamento de derivados de “saeculum” a esferas “exteriores” à Igreja,
primeiramente aplicada à expropriação dos bens eclesiásticos e, depois, à
questão do ensino e à luta pela neutralização religiosa do Estado. No entanto,
só no final do século XIX, estes fenômenos passaram a ser objeto de reflexão,
num crescendo que, na centúria seguinte e, em particular, após a II Guerra Mundial,
dará azo ao aparecimento de filosofias, sociologias e teologias da
secularização, até se chegar ao debate atual acerca da “dessecularização” e,
portanto, da pertinência, ou não, dos prognósticos que acompanharam muitas
dessas reflexões.
IHU On-Line - Pelo que acaba de
expor, pode concluir-se que defende a existência de uma relação estreita entre
a emergência e consolidação do processo secularizador e o surgimento, na
Europa, da visão moderna do mundo e da vida?
Fernando Catroga - Sim.
Porém, a resposta exige o esclarecimento do conceito de “secularização” que
usamos. Definimo-lo como um processo quase espontâneo, de longa duração, sem
autor, e que se refere ao caminho percorrido pela cultura ocidental, desde a
interpretação sacro-metafísica da realidade, até àquela em que o mundo
histórico, social, finito passou a desenhar, dominantemente (mas não
exclusivamente), o horizonte da responsabilidade e da explicação do destino
humano. E temos igualmente como certo, na linha de Danièle Hervieu-Léger, que a
sua consolidação foi inseparável do impacto das transformações provocadas pela
Modernidade, nos seus diferentes níveis (econômico, político, intelectual,
simbólico), sobre a religião, ou, de um modo mais exato, sobre a configuração
tradicional dos elos entre a religião e a sociedade. De onde o ligarmos à
emergência do antropocentrismo e da racionalidade que estaria subjacente à
evolução imanente da natureza, assim como à maior autonomização da razão
teórica e da praxis humana, cada vez mais entendida como a única artífice do
contrato social e a grande aceleradora do devir histórico, no seu irreversível
caminho para a emancipação individual e coletiva. O que, sem negar a esperança
escatológica, alargou o horizonte de expectativas, linha que, descendo do céu à
terra, foi sendo rasgada pela concomitante substantivação e infinitização da
humanidade, da história e do progresso, como bem sublinhou R. Koselleck.
IHU On-Line - Mas os seus textos
também destacam condicionantes anteriores ao período moderno, com relevo para a
herança judaico-cristã. Não acha isso contraditório?
Fernando Catroga - Na
verdade, parece paradoxal filiar um fenômeno como o da secularização num
condicionante religioso. Entendamo-nos, porém. Não se nega o peso que o advento
de uma civilização racionalista, científico-técnica, burocrática, urbana e
massificada teve no desencadear de um processo que conduziu, para utilizarmos a
terminologia de Max Weber , ao “desencantamento” ou à “desmagificação” do
mundo. No entanto, estes fatores não têm a autossuficiência bastante para
anular este outro, talvez mais matricial: a novidade do impacto da religião
judaico-cristã, quando comparada com as religiões greco-romanas, bem como com
outras religiões do Livro.
É verdade que isto soa a
contradição, pelo menos desde que se concretizou a aliança da Igreja com o
Império (século IV), e, a partir do século V, sob a influência do agostinismo
teológico e político, o poder temporal foi quase subsumido pelo espiritual.
Seja como for, é igualmente indiscutível que, não obstante as miscigenações e
conluios que existiram entre ambas as esferas, elas não se fundiram. Recorde-se
que a ideia de criação ex nihilo, distinta das cosmogonias míticas e
filosóficas clássicas, introduziu uma diferenciação essencial entre Deus e o
mundo, cesura que virá a potenciar a paulatina dessacralização da natureza, bem
como da história e da política. Em simultâneo, a aliança com um “povo eleito” e
a encarnação em Cristo humanizaram a revelação divina, o que dotou o homem,
feito à imagem e semelhança de Deus, de liberdade responsável, porque sujeita
ao julgamento do sentido da vida, no final dos tempos. Por outro lado, os
vários protestantismos, particularmente os que enfatizaram a crença na
predestinação e na graça divinas, reforçaram os pressupostos da mediação
subjetiva da vivência religiosa, numa coexistência não contraditória com o
comprometimento dos crentes na busca do sucesso nos negócios terrenos, sinal de
escolha divina.
Autonomização do homem
Pode defender-se, então, que os
próprios textos sagrados sugerem e potenciam a não confusão o mundo com o
divino, a começar pela ideia de criação, pela consequente historicização da
revelação do sagrado, pela desdivinização do universo (passo que possibilitou a
emergência da ciência moderna), pelo convite à autonomização do homem (filho de
um Deus cada vez mais definido como Logos), pela dessacralização da política, possibilitada pela secularização das ideias de contrato social e de bem comum, e pela reapropriação moderna do preceito cristão “Dai a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus”.
Daqui se conclui que, se a
secularização teve na Modernidade o seu momento forte de afirmação, nas suas
temporalidades próprias, ela também foi um processo de cunho totalizador e de
longa duração. Todavia, a maior autonomização que provocou entre o mundo
secular e o divino não pode ser vista como uma manifestação anti-religiosa ou
mesmo arreligiosa, atitudes que só surgirão mais tarde e que ainda hoje são
minoritárias. Além disso, não ajuda muito o seu entendimento se continuarmos a
não destrinçar, como, com frequência, acontece quando se segue a terminologia
francesa, a secularização da laicidade.
IHU On-Line - O que é que quer
dizer quando afirma que, se toda a laicidade é uma secularização, nem toda a
secularização é uma laicidade?
Fernando Catroga - Como
sublinhei anteriormente, o conceito de laicidade tem uma história diferente do
de secularização, devido à sua origem semântica e respectiva fixação na
linguagem eclesiástica, mas também no que respeita à sua transferência para os
domínios não religiosos, deslocamento tardio, muito conflituoso e fortemente
conectado com as aspirações de emancipação política e social. Foi na França, no
contexto dos combates pela implementação da escola obrigatória, gratuita e
pública, que já vinham do Iluminismo e da Revolução Francesa, mas que se
intensificaram depois das revoluções de 1848 e da instauração da III República
(década de 1870), que surgiram novos derivados de “leigo”, para definir melhor
a intenção ideológica da secularização no campo da formação das almas e do
consequente relacionamento das Igrejas com o Estado, tendo em vista garantir-se
a liberdade de consciência, postulada como a primeira das liberdades e,
portanto, os direitos fundamentais, incluindo, necessariamente, a liberdade à
religião e à não religião.
IHU On-Line - Pode concretizar
melhor a fixação desse vocabulário?
Fernando Catroga - O termo
“laicité” surgiu no contexto da Comuna de Paris (1871) e foi logo
dicionarizado. E o mesmo aconteceu, pouco depois, com “laicisation” e
“laicisme”, vocábulos que, radicando em “laos”, ainda soavam a algo de estranho
aos ouvidos da opinião pública, por causa da sua novidade. Do francês,
emigraram para as línguas novilatinas (e, mais tarde, para o turco), assim como
para o inglês, com o aparecimento, nos inícios da década de 1880, de termos
como “laicization”. Todavia, hoje, quando se quer traduzir, para esta última
língua, aquelas expressões, é comum recorrer-se a derivados de “século”, e não
de “laico”, prova de que a terminologia esgrimida na guerra religiosa à
francesa acabou por não ter sucesso nos países de cultura anglo-saxônica.
IHU On-Line - Como explica essa
diferenciação?
Fernando Catroga -
Recorde-se que a “desclericalização” e, de certo modo, a “despatrimonialização”
das Igrejas, provocada, entre os séculos XVI e XVII, pelas interpretações
reformadas do cristianismo, deram origem a uma espécie de “secularização
interna” da vida religiosa. Por outro lado, o quase desaparecimento da oposição
entre autoridades religiosas de obediência a poderes externos e o Estado,
conjugado com a mediação mais direta do crente na interpretação do Livro,
propiciou uma experiência da sacralidade mais subjetivada, centração não
incompatível com a autogoverno comunitário do culto e que, articulada, em
algumas delas, com a crença na predestinação, abriu portas à modernização. E,
no caso concreto dos Estados Unidos da América, as próprias Igrejas, de forte
influência calvinista, apoiaram a celebração de um contrato social fundante de
uma nova nação e a construção de um Estado secularizado, porque religiosamente
separado das religiões, opção que não foi estranha a influência de Locke e a
memória das intolerâncias havidas nas guerras religiosas que, no século XVII, tinham
posto a Europa a ferro e fogo, impondo o princípio “un roi, une loi, une foi” e
obrigando muitos perseguidos a emigrarem, nomeadamente para a América.
Laicização “interna” e “externa”
Ao contrário, a Igreja Católica e
tridentina detinha, ainda no século XVIII, um estatuto privilegiado, através da
aliança entre o Trono e o Altar e do controle de extensíssimos bens materiais e
do quase monopólio da educação e do ensino. Por isso, na área da sua
influência, o processo modernizador, indissociável, com a Revolução Francesa,
de programas de revolução cultural, política e social, intensificou o clima de
hostilidade, colocando Roma numa posição defensiva face às forças que
reivindicavam as ideias de liberdade, igualdade e progresso. A questão
religiosa tornou-se mesmo, desde os finais do século XVIII e, em alguns países
católicos, até à II Guerra Mundial, no ponto nodal onde se condensaram todas as
outras contradições. Se tivermos presente este condicionante estrutural,
perceber-se-á melhor por que é que, nesse longo período, as forças que se
autodeclaravam portadoras do facho da modernização das sociedades católicas
alimentaram o antijesuitismo, o anticongreganismo e o anti-ultramontanismo, ao mesmo
tempo que pugnavam por transformações políticas que possibilitassem a
laicização “externa” das instituições jurídico-políticas e a “laicização
interna” das consciências.
O caderno reivindicativo desta
corrente, modelado em França, é conhecido: se começou com a luta pela
laicização da escola, logo se estendeu ao registo civil obrigatório, à
laicização da assistência hospitalar, à laicização dos cemitérios, à laicização
do espaço público, ao reconhecimento do casamento como um contrato e, portanto,
do divórcio, e, logicamente, ao regresso da separação das Igrejas do Estado
instituída em 1905. Em simultâneo, a escola laica devia ensinar as religiões
somente como fatos sociais e inculcar uma moral social e cívica em alternativa
à católica, que fomentasse valores como o amor à pátria, o altruísmo e o
solidarismo.
IHU On-Line - Essa pretensão
totalizadora, formulada num clima anticlerical, não teve como consequência
transformar a laicidade num laicismo?
Fernando Catroga - Em parte,
essa ilação é verdadeira. Mas, a responsabilidade não deve ser somente assacada
a um dos contendores, pois, como costumo afirmar, o anticlericalismo foi o
irmão siamês do clericalismo, e basta ter presente o conteúdo do Syllabus e da
Quanta Cura (1864), bem como as decisões do Concílio Vaticano I
(1860-70), para se ver como é que, na época, Roma anatematizou os valores
e os ideais nucleares da Modernidade. Porém, só por si, a “hostilidade” não
significava antirreligiosidade. A laicidade, sendo um neo-iluminismo, nasceu
para garantir o respeito pela liberdade de pensamento e, por conseguinte, a
liberdade religiosa, o que passava pela democratização cultural e política da
sociedade. E a remissão que “laos” fazia para “povo” foi uma das razões da sua
escolha. Todavia, o proselitismo fez dela uma mundividência alternativa. Daí
que, contra a fé transcendente, alguns falassem em “fé laica”.
IHU On-Line - E esta função do
Estado, religiosamente neutro, mas educativamente ativo, era compatível com o
modelo político liberal, aparentemente o mais adequado aos ideais de
separabilidade?
Fernando Catroga - Como,
naquela conjuntura, a Igreja nunca iria estender às outras Igrejas o que queria
para si, nem abdicaria das posições privilegiadas que, historicamente, gozava,
percebe-se por que é que, mesmo quando, do ponto de vista social e econômico,
os apóstolos da laicidade, incluindo os que tinham uma visão liberal da
economia, apelavam para o intervencionismo do Estado no que concerne à criação
de “infra-estruturas culturais” (nos campos do ensino e da assistência, por
exemplo) que funcionassem como instâncias instituintes do pluralismo religioso
e da separação entre a sociedade política e as Igrejas. O ritualismo religioso
teria de abandonar o espaço público e refluir para a esfera da sociedade civil
e autogovernar-se, de acordo com o princípio da liberdade de associação. E
daqui resulta esta outra constatação: a laicidade brotou com uma evidente
intenção militante no seio de movimentos que tenderam a ligar o núcleo duro da
cultura republicana com as ideias de inspiração socialista ou, o que foi mais
frequente nas últimas décadas do século XIX, enquadráveis naquilo que, hoje,
pode ser designado por “liberalismo positivo”, em contraste com o “liberalismo
negativo” que se desenvolveu lá onde, como nos EUA, a secularização não
implicou um proselitismo tão assumido como o do laicismo.
Reino de Deus e Reino de César
Quando o choque entre as
aspirações de autonomia, emancipação e progresso e a Igreja foi grande e
prolongado, a estrutura eclesiástica e, em particular, o papado e o clero
regular, foram qualificados como forças obscurantistas e retrógradas, cujo
poder urgia abater ou secundarizar. E só o Estado o conseguiria, pelo que, não
obstante a laicidade estar sustentada na herança iluminista e nas problemáticas
da tolerância civil e dos direitos fundamentais, a neutralidade que ela
proclamava nem sempre foi respeitada, em boa medida devido a um ativismo que
foi diretamente proporcional ao combate que a Igreja moveu aos princípios da
liberdade religiosa e da separabilidade, e que se tornou ainda mais intenso
quando os grupos mais radicais, ao velho anticlericalismo e
antiultramontanismo, juntaram a crítica à essência das religiões e o
prognóstico historicista sobre a inevitável “morte de Deus” e extinção da
necessidade do religioso. Na verdade, foi preciso esperar pela política do
“ralliement”, inaugurada por Leão XIII nos finais do século XIX, mas sobretudo,
pelo Concílio Vaticano II, para que Roma reconhecesse que a laicidade, desde
que bem entendida, não atenta contra o preceito evangélico que convida à não
confusão entre o reino de Deus e o reino de César.
Em síntese, julgo que, nesta
matéria, será frutuoso correlacionar as distinções conceituais com as
especificidades das experiências históricas que elas denotam, tanto mais que
nem toda a secularização implicou uma laicidade e muito menos um laicismo,
embora toda a laicidade pretendesse acelerar a secularização.
IHU On-Line - Então, nesta ordem
de ideias, vê a laicidade como uma especificidade deste último processo?
Fernando Catroga - Geminando
o horizonte de expectativas com os ideais emancipatórios, os adeptos da
laicidade apresentaram-na como uma tendência universal e irreversível da
história da humanidade. Todavia, hoje, temos de ser cautelosos face a este
otimismo. Em primeiro lugar, muito do que carateriza a secularização e
laicidade está indissociavelmente ligado quer à área geocultural que Émile
Poulat, há algum tempo, definiu como “cristianitude”, quer aos seus
preconceitos eurocêntricos e ocidentalocêntricos. E o próprio caso francês, sem dúvida, o de maior durabilidade, logo seguido, desde Ataturk até quase aos
nossos dias, pelo turco, aparece hoje como uma exceção, não só no contexto da
secularização, mas também no confronto com os países onde, sob sua influência,
eclodiram confrontos entre o laicismo e o clericalismo, como aconteceu em
Portugal, Espanha, Turquia, Itália, México e um pouco por todos os países que
viveram momentos revolucionários influenciados pela experiência francesa.
IHU On-Line - Quais as
peculiaridades do laicismo de Portugal à luz do caso francês?
Fernando Catroga - Sob o eco
do que ia acontecendo na França, o laicismo português formou-se, como
movimento, nas últimas décadas do século XIX e inícios de Novecentos, igualmente
alimentado por grupos de livre-pensamento, por associações maçônicas, por
organizações republicanas, socialistas, anarquistas, e por alguns setores
monárquico-liberais mais progressistas. No entanto, e ao contrário da França da
III República em crescente industrialização, urbanização e massificação, essa
militância teve sempre um cariz vanguardista num país debilmente secularizado,
o que não é de espantar, sobretudo numa sociedade dominantemente rural, com o
analfabetismo a situar-se à volta dos 80%, e onde a inclusão comunitarista e
paroquial dos indivíduos na família alargada, pastoreada pelo clero em aliança,
regra geral, com os notáveis locais, era muito forte. Por tudo isto, nos meios
mais citadinos e nas elites mais intelectualizadas, a campanha contra a Igreja
fez radicar a convicção de que a liberalização e a democratização política,
social e cultural do país só seriam realizáveis com a separação das Igrejas
tanto do Estado como da Escola.
Laicidade republicana
Este projeto recuperou a memória
do antijesuitismo do Marquês de Pombal, do anticongreganismo da Revolução
Liberal (a partir de 1834, as ordens religiosas masculinas foram expulsas e os
seus bens vendidos em hasta pública), bem como do anti-ultramontanismo e do
anticlericalismo em geral, e fez sua a agenda do laicismo livre-pensador à
francesa. Por outro lado, a agudização da questão política, ligada, nos
princípios do século XX, ao crescimento de alguma industrialização,
nomeadamente em Lisboa, concentrou na questão religiosa todos os demais
problemas em litígio: o político (Monarquia, tida por traidora do seu passado
liberal, ou República), o social, o educativo (liberdade religiosa, Escola
obrigatória, gratuita e laica). E isto explica que, entre as correntes
ideológicas que propunham a laicização do Estado e da sociedade, tenha sido a
tendência mais radical do republicanismo a conquistar a hegemonia, domínio que
veio a culminar na Revolução de 5 de Outubro de 1910. E a prioridade que esta
deu ao cumprimento do programa laicizidador representa um sintoma da
importância desta guerra religiosa, logo traduzida no fato de o novo poder
republicano, governando ainda em ditadura revolucionária, ter decretado, em
sete meses, leis análogas àquelas que a III República francesa demorou cerca de
trinta anos a promulgar.
Nesse curto lapso de tempo, e num
país rural e com grande analfabetismo, esmagadoramente católico, foram impostos
a separação das Igrejas do Estado, a abolição dos feriados religiosos, o
registo civil obrigatório, o divórcio, a expulsão das ordens religiosas, o
ensino laico. No fundo, tratou-se do lançamento de uma profunda revolução
cultural, rotura que teria de suscitar grandes reações. De certo modo, o
cientificismo positivista em que filosoficamente o vanguardismo assinalado se
inspirou, não lhe permitiu ver que uma sociedade esmagadoramente
católico-clerical e camponesa dificilmente se identificaria com uma política
cultural que queria destruir usos e costumes profundamente arraigados nas
populações. E, na prática, tal desfasamento levou a que, nesta conjuntura, a
laicidade republicana se tivesse afirmado como um laicismo que, em certos
momentos, desmentiu o respeito pelas liberdades que apregoava.
Recatolização das elites
Este radicalismo, que, porém,
nunca atingiu a intensidade que ganhará no México e na Espanha na década de
1930, foi-se atenuando com os anos, mas as dificuldades políticas e socias da
I República, acentuadas pelos impactos da I Guerra, deram força ao acasalamento
das alternativas autoritárias e corporativas com movimentos nacionalistas,
recatolicizadores e reclericalizadores das sociedades em que a instauração da
ordem liberal e capitalistas arrastou consigo a questão religiosa. A queda da I
República em 28 de Maio de 1926 e, desde os inícios da década de 1930, a
institucionalização do Estado Novo materializaram, política e autoritariamente,
esse refluxo, que teve o seu ponto de chegada na Concordata de 1940. Não se
pense, contudo, que se regressou ao modelo confessional que existia antes de
1910. Salazar tentou recatolicizar as elites, bem como a educação e a religião
civil que tinha sido popularizada desde as últimas décadas do século XIX, mas
foi cioso da autonomia da esfera política, o que não deixou de contribuir para
a manutenção da separabilidade, embora num clima colaborante com a Igreja
Católica.
Estado religiosamente neutro
Posteriormente, o distanciamento
crítico do pensamento laico em relação aos excessos do laicismo, bem como o de
muitos setores da Igreja face à tradição clericalista da vivência da religião,
bem visível após o Concílio Vaticano II, fez com que a existência de amplos
consensos em relação aos direitos fundamentais e ao cariz a-confessional do
poder político conduzissem, mesmo no momento mais radical da Revolução
Democrática de 1974, à secundarização da questão religiosa e à manutenção da
Concordata, ainda que completada por uma nova lei da liberdade religiosa. O
documento de 1940 somente foi revisto para permitir a legalização do divórcio
e, mais recentemente, para garantir uma maior equidade entre as várias Igrejas
e cultos oficialmente reconhecidos.
Por tudo isto, o Estado
democrático português, como o seu antecessor da I República, é religiosamente
neutro, mas, no contexto concordatário herdado da ditadura, realidade que é bem
diferente daquela que a III República francesa (e a I República portuguesa) construíram.
E são as especificidades atuais que me levam a inseri-lo na tipologia comum
àqueles países que, depois de terem vivido conjunturas de incidência laicista,
e, como reação, de terem sido alvo de políticas recatolicizadoras avivadas por
poderes ditatoriais, evoluíram para uma solução de “quase-laicidade”.
IHU On-Line - E o caso italiano?
Fernando Catroga - Antes de
responder, queremos lembrar que, nos países do Sul da Europa, onde a conquista
da Modernidade teve a oposição de boa parte da Igreja, os próprios Estados
católicos, absolutistas, monárquico-constitucionais, ousaram pôr em causa os
interesses da Igreja, fosse atacando o monopólio que esta exercia sobre o
sistema de educação e ensino (antijesuitismo), fosse nacionalizando, para os
privatizar, os bens eclesiásticos (anticongreganismo), fosse para consolidar o
princípio da soberania nacional (anti-ultramontanismo). Nos seus registos e
tempos próprios, essa orientação encontra-se, desde o século XVIII, em França,
em Espanha, em Portugal, na Península Italiana. No entanto, nesta última,
depara-se com uma diferença fundamental: como, em boa parte dela, o poder
temporal pertencia ao próprio papado, a luta pela criação de um Estado-nação
italiano veio acrescentar um vetor que não existe em outros países. É que, no
país de Garibaldi, a guerra religiosa também foi, após 1848, uma guerra de
libertação nacional.
Algumas leis decretadas pelo novo
poder italiano nas décadas de 1860 e, sobretudo, a Lei das Garantias, de 1871 e
outras, retiraram personalidade jurídica às comunidades religiosas e
transferiram para o Estado muitos dos bens que não estavam adstritos ao culto,
à educação e à assistência. Tais disposições, tomadas por uma monarquia
constitucional católica, mas anatematizada pelo Papa, lançaram as bases da
laicidade italiana, embora esta não tenha ido tão longe como as experiências
francesa e portuguesa (sobretudo entre 1910 e 1926). Para isso, muito
contribuiu a fraqueza de um Estado que desde o Risorgimento se edificava sobre
um mosaico de dialetos e de autonomias, assim como o arrastamento da questão
romana (o Papa considerava-se prisioneiro dos Saboias) e a força da própria
Igreja, o que permite avançar com esta conclusão: o Estado foi sendo laicizado,
sem que a sociedade estivesse secularizada.
Apoio a Mussolini
Por sua vez, o impacto da I
Guerra também propiciou, como em Portugal e na França, uma maior aproximação do
catolicismo com os ideais patrióticos, passo que surgiu, porém, sob o efeito da
humilhação imposta, em Versalhes, pelos vencedores e da ascensão de Mussolini
e do seu movimento ao poder. E, com os Acordos de Latrão (1929), o Duce
não só resolveu a questão do Estado do Vaticano, como taticamente soube ir ao
encontro da recatolicização da parte da Itália mais laicizada, concordando com
o regresso dos crucifixos e do ensino da religião católica à escola primária
pública, com a conferição de personalidade jurídica aos organismos
eclesiásticos e às congregações religiosas, com o reconhecimento do valor civil
do casamento pela Igreja, com a elevação de festas do calendário religioso a
feriados nacionais, com a aceitação da validade dos diplomas em teologia,
etc.
Como contrapartida, a Santa Sé
comprometeu-se a que a Ação Católica não se transformasse em partido, o mesmo
irá acontecer em Portugal e não teve poder para se opor ao prolongamento de
práticas regalistas, como a do controlo, pelo Estado, da nomeação dos bispos e
dos curas. Ora, tal aliança teve, no essencial, este resultado: se os Acordos
possibilitaram que a Igreja readquirisse antigos privilégios, o certo é que
eles também abriram as portas a um maior alargamento da base de apoio a
Mussolini. E, ao contrário do que, em Portugal, acontecerá com o Estado Novo de
Salazar, o fascismo italiano acabará por colocar o catolicismo e a sua Igreja a
funcionar como uma espécie de complemente espiritual coadjuvante de uma
“religião civil” imbuída de inspirações pagãs e centrada no culto do Duce, onde
até o ditador português vislumbrou ecos da tradição cesarista.
Compromisso histórico
Com o fim da II Guerra Mundial,
com a República e com a nova Constituição demoliberal de 1948, seria expectável
que o legado de Latrão fosse substancialmente alterado, mas isso não
aconteceu. A nova ordem, construída sob a égide da Guerra Fria e sob o espetro
da ameaça comunista, devido à forte implantação do PCI, contou com o
empenhamento de Pio XII na criação de um partido democrata-cristão, força
que hegemonizará a vida política italiana até à sua implosão nos finais do
século passado. Assim, não obstante a Constituição salvaguardar os princípios
da igualdade e da liberdade, o essencial do estipulado nos Acordos manteve-se
em vigor durante décadas.
De certo modo, e comparando com a
situação na primeira década do século XX, a sociedade italiana do pós-II Guerra
secularizou-se rapidamente, mas o mesmo não ocorreu ao nível da laicização do
Estado. Só em 1984 foi assinada uma nova versão dos Acordos, fruto de um
compromisso histórico celebrado entre a Democracia Cristã e a esquerda laica, e
só cinco anos depois uma decisão do Tribunal Constitucional determinou,
explicitamente, que a laicidade é um dos princípios supremos do sistema
constitucional. Em função do que ficou dito, ter-se-á de aceitar que a
experiência italiana, nas suas grandes especificidades, tem hoje mais analogias
com as de “quase-laicidade”, do que com o modelo francês.
IHU On-Line - Já várias vezes
utilizou a expressão “religião civil”. Qual é sua relação com a secularização e
a laicidade?
Fernando Catroga - Não será
necessário citar Durkheim para reconhecer que as sociedades geram ideias
coletivas para reforçarem o seu consenso, e basta convocar as lições da
história para se mostrar que as estruturas políticas da velha Grécia e da velha
Roma estavam sacralizadas. E o cristianismo, embora defendesse a distinção
entre Deus e César, acabou por se aliar ao Império e por subordinar o poder
temporal ao espiritual. E nem a autonomização da ética da política, com
Maquiavel, nem as várias secularizações do contrato social, dispensaram esse
consórcio, como foi o caso de Rousseau , pensador que, no contexto do debate
acerca da tolerância, propôs o fomento de uma “fé civil”, mas avisando que ela
não podia ser confundida com a religião dos padres, ou com as religiões
políticas greco-romanas, e que, como condição necessária para a interiorização
do compromisso dos cidadãos para com as virtudes cívicas, teria de exigir que
estes acreditassem na existência de Deus, na imortalidade da alma e no Juízo
Final. E, como prática ritual, devia investir na educação moral e cívica, assim
como em festas cívicas no espaço público. Só assim seria possível cimentar o
consenso social e nacional.
Como se sabe, estas sugestões
terão imediatamente duas aplicações bem distintas: a emergência de uma
“religião civil” nos EUA, e a aplicação jacobina dos ensinamentos de Rousseau
pelo seu discípulo nesta matéria: Robespierre . Depois, receberão ainda outras
formas e fundamentos, pluralidade que, porém, não põe em causa esta constatação
geral: de uma maneira mais explícita ou mais mitigada, todos os Estados-nação,
incluindo os legitimados na soberania popular, ou os que impuseram a
separabilidade, geraram “religiões civis”.
IHU On-Line - Qual a diferença
entre essas “religiões” e as religiões propriamente ditas?
Fernando Catroga - Concordo
com aqueles que têm caraterizado as primeiras como um sistema de crenças,
mitos, ritos e símbolos que interpretam e definem o sentido da existência
humana no seio de uma comunidade de destino, independentemente de postularem,
ou não, fundamentos transcendentes e expectativas escatológicas. Por outro
lado, elas também se estruturam de acordo coma uma lógica que é mimética e
sincrética em relação às Igrejas, ao mesmo tempo que denotam, com mais
evidência, a sua origem construída e histórica, característica que, somada à
fraqueza das esperanças salvíficas que prometem, quando muito, a imortalidade
garantida pela fama, faz delas uma “religião” mais fria e menos durável do
que as segundas.
Explicando melhor: as “religiões
civis” plasmam-se em práticas simbólicas que visam, na expressão de Rousseau,
“santificar o contrato social”, ou mais concretamente, uma entidade coletiva
secular, Pátria, Nação, Classe, etc., ainda que não convoquem qualquer
deidade ou escatologia transcendente e se limitem a glorificar mitos de origem
ou de destino manifesto, e a consagrar, à volta de bandeiras, desfiles,
oratórias e paradas, hagiografias cívicas e grandes acontecimentos escolhidos
para legitimar vocações nacionais e dar sentido e consenso às comunidades
politicamente organizadas.
Religião ao contrário
Ela atua, geralmente, de um modo
autônomo, coexistente e pacífico para com as Igrejas estabelecidas, podendo ser
compatível, nesse caso, com regimes de separabilidade, como acontece com a
teística religião civil americana e com a neutra religião civil há muito
socializada pelo republicanismo francês. Mas, nos Estados-nação confessionais,
as religiões dominantes, comumente, também desempenham funções objetivas de
religião civil, sobretudo quando estão intimamente ligadas à conquista da
identidade e independência nacionais, como acontece, entre outros casos, por
razões bem diversas, em Inglaterra, na Irlanda, na Polônia, na Grécia, ou nos
países com Estados confessionais e de forte tradição regalista. E estas
experiências só não colidirão com o respeito da liberdade religiosa se a ordem
constitucional que as legitima respeitar o cumprimento dos direitos
fundamentais do homem e do cidadão.
Em suma, a secularização e a
laicidade podem coexistir com as “religiões civis”, desde que estas não se
afirmem em conflitualidade com as religiões propriamente ditas, procurando
substituí-las ou extingui-las. Tal ocorreu nas conjunturas em que vingou o mais
radical laicismo, ou lá onde, como nos casos do nazismo e do comunismo, o
Estado paganizou-se, ou fez do ateísmo uma religião ao contrário.
Assim, concluímos: se o apelo ao
fomento, através do rito e dos símbolos, dos sentimentos de pertença, é um
reconhecimento tácito da insuficiência do racionalismo para solidificar e
re-ligar o contrato social, nenhum comunitarismo, incluindo o propagado pelas
“religiões civis”, poderá anular a assunção das liberdades fundamentais e do
espírito crítico necessários a que a compartilha de ideias e ideais coletivos
seja vista como um meio ao serviço da realização da pessoa humana, e não como
um holístico fim em si mesmo.
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