Vaticano vira paraíso fiscal com mais de 300 mi de euros suspeitos de irregularidade – Por Fiona Ehlers e Fidelius Schmid
Mais de mil clientes que não têm
nenhum motivo para ter contas no Banco do Vaticano têm lá depositado mais de
300 milhões de euros, dinheiro que os funcionários da instituição suspeitam ser
ilícito. Agora eles estão pedindo para que os fundos sejam retirados.
No final de maio, dois alemães
estavam no interior fortemente vigiado do Banco do Vaticano e olharam para fora
para a Praça de São Pedro.
Ernst von Freyberg, 54 anos, tinha acabado de ser
nomeado presidente do banco e ele acabava de ser entrevistado pelo padre Bernd
Hagenkord, o diretor do programa alemão da Rádio Vaticano.
Os dois servos da
Igreja Católica fizeram um balanço do que havia sido feito até então e
concluíram que o chefe do banco havia sobrevivido a seu batismo de fogo.
"Estou convencido de que
somos uma instituição financeira limpa e bem gerenciada", disse Freyberg
no microfone. Ele também contou sobre as missas da manhã com o Papa na Casa de
Santa Marta e encontrou palavras elogiosas para os diretores do banco.
"Quando eu cheguei aqui, achei que teria que fazer antes de mais nada o
que se conhece como uma limpeza", Freyberg admitiu, "mas ainda não
descobri nada de errado".
O aristocrático presidente do
banco, que em seu tempo livre organiza peregrinações a Lourdes para pessoas com
deficiência física, aparentemente teve que mudar sua opinião de forma rápida e
fundamental.
De fato, praticamente no mesmo momento em que a entrevista foi ao
ar, mais de 20 especialistas da consultoria norte-americana Promontory
Financial Group entravam na fortaleza medieval Niccolò V para passar um pente
fino em cerca de 30 mil contas que clientes do mundo inteiro mantêm no banco
papal. Os auditores externos são especializados na detecção e rastreamento de
irregularidades como corrupção e lavagem de dinheiro.
Uma história de escândalos
Os especialistas de fora também
foram contratados para determinar quem está realmente por trás dos depósitos no
Banco do Vaticano e o que está acontecendo nas contas individuais. De acordo
com os estatutos do banco, a instituição financeira do Estado-Igreja é
encarregada de abrigar fundos pertencentes a membros do clero e ordens
religiosas.
À medida que os auditores do Banco do Vaticano investigaram mais a
fundo a natureza das contas, no entanto, ficou cada vez mais claro que um
grande número de pessoas, que na verdade não deveriam nem ter permissão para ter
contas no Banco do Vaticano, apreciam e muita suas discretas práticas de
negócio.
O Estado da Igreja procurou a
ajuda de uma firma de consultoria como parte de uma mudança de estratégia na
qual está deixando o sigilo em direção a mais integridade e transparência.
Na
verdade, o Vaticano tem sido incomodado por assuntos relativos a seu banco
desde que a Comissão de Obras de Caridade foi fundada em 1887. Isso serviu para
proteger os ativos da igreja do apetite de desapropriação do Estado italiano.
Ao longo das décadas, esta instituição financeira, que mais tarde foi
rebatizada como Instituto para Obras Religiosas (IOR), parece ter se envolvido
numa série de negócios escusos: houve acusações de lavagem de dinheiro para a
máfia siciliana, manipulação da bolsa de valores e transações ilegais no valor
de bilhões que passaram pelo banco.
O Banco do Vaticano também
desempenhou um papel fundamental no colapso do Banco Ambrosiano de Milão em
1982, a maior quebra de um banco na história italiana. Pouco tempo depois, o
presidente do banco foi encontrado pendurado numa ponte de Londres. Porém,
assassinado. Na década de 1990, industrialistas italianos usaram o banco da
igreja para lavar imensas propinas para políticos.
As reportagens escandalosas sobre
a instituição financeira atingiu o seu pico mais recente em maio de 2012, quando
funcionários da igreja, de repente derrubou o então chefe do banco Ettore Gotti
Tedeschi no meio de uma investigação de lavagem de dinheiro por funcionários da
justiça italiana e do escândalo Vatileaks.
Agora que a investigação contra
Gotti Tedeschi foi fechada sem qualquer acusação, há suspeitas crescentes de
que ele teve de sair por outras razões. Em sua luta para implementar padrões
internacionais na instituição, o presidente do banco evidentemente se
desentendeu com outros funcionários poderosos do Vaticano.
Isso, em todo caso, é sugerido
por um memorando que Gotti Tedeschi entregou a sua secretária dois meses antes
de ser demitido. Altos funcionários do banco tinham dito que ele iria
"entrar para a história como o homem que destruiu o IOR", ele escreveu.
Absoluta discrição e proteção
contra processos criminais por autoridades seculares são há muito tempo as
marcas registradas do Banco do Vaticano. Só em 2010 que a Igreja-Estado cedeu a
uma pressão considerável da União Europeia e passou a proibir a lavagem de
dinheiro e financiamento do terrorismo em seu território.
O Vaticano é um paraíso fiscal?
Gotti Tedeschi compilou um dossiê
no qual descreveu o problema que os auditores do Promontório descobriram:
clientes que, de acordo com os estatutos do banco, não têm permissão para ter
contas no Banco do Vaticano, que "podem ser uma das razões para as
dificuldades que estamos enfrentando", escreveu o ex-presidente do banco.
Agora está claro que à sombra da
Basílica de São Pedro, mais de mil pessoas realizam atividades bancárias que
não podem ser atribuídos à Santa Sé, ou a uma organização de igreja ou uma
fundação de caridade. Elas se beneficiam do fato de que não há impostos no
Vaticano e de o Vaticano ser extremamente lacônico em suas comunicações com o Ministério
Público.
Durante décadas, foram feitas transferências perto do Palácio
Apostólico que praticamente não diferem dos negócios nas Ilhas Cayman. Em
essência, o Banco do Vaticano se tornou um paraíso às margens do rio Tibre.
Pessoas de dentro do Vaticano
disseram à Spiegel que mais de 300 milhões de euros (US$ 407 milhões) ainda
estavam nessas contas no verão passado. "A grande maioria disso" é
aparentemente de ganhos ilícitos, dizem as fontes.
Como parte de seus esforços de limpeza,
o novo chefe do banco, Freyberg, enviou uma carta aos proprietários dessas
contas. A mensagem triste é que o IOR tem a intenção de acabar com o a relação
de negócios. Os clientes terão que transferir seu dinheiro para outro lugar.
Um choque cultural
Ao que tudo indica, no entanto,
estes não eram os únicos clientes problemáticos do banco. Transações
surpreendentes também acontecem nas contas de dignitários da igreja. As
irregularidades de Monsenhor Nunzio Scarano, até recentemente um auditor da
Administração para o Patrimônio da Sé Apostólica, são tão óbvias que o clérigo
foi levado em custódia pela polícia.
De acordo com investigações de
funcionários da justiça italiana, Scarano tentou enviar 20 milhões de euros a
partir da Suíça com a ajuda de um agente de inteligência. "Don 500",
como ele é conhecido no Vaticano devido à sua preferência por grandes notas de
dinheiro, teve inúmeras contas no Banco do Vaticano.
O clérigo, que nega qualquer
irregularidade, usou essas contas para transferir mais de 5 milhões de euros
dentro de poucos anos. Em várias ocasiões, ele transferiu o dinheiro de um
paraíso fiscal para o Banco do Vaticano, e depois rapidamente o enviou para
outro paraíso financeiro.
O relatório de investigação dos auditores financeiros
lista meticulosamente todas as transações e critica duramente os gerentes do
banco. Os funcionários do banco aparentemente não percebiam quando tinham que
informar suas suspeitas de transações ilegais. Os auditores disseram que os
executivos do banco tinham de mudar o tom.
Freyberg reagiu e obrigou o
diretor-geral do banco e seu vice a renunciar: "está claro que precisamos
de uma nova gerência para acelerar o processo de reforma", disse ele.
Até o final do ano, Freyberg, que
na semana passada publicou o primeiro relatório anual da história do Banco do
Vaticano, espera ter concluído seu trabalho de limpeza. Então, o papa Francisco
também terá que decidir sobre o futuro do banco.
"Alguns dizem que é
melhor ter um banco, outros dizem que deve ser um fundo de ajuda, outros
recomendam que ele seja fechado", disse o pontífice ao descrever suas
opções em julho. "Mas, se é um banco, ou um fundo, ou o que quer que seja,
deve ser baseado na transparência e honestidade", concluiu.
Transparência e honestidade, isso
parece estar bem alinhado com a abordagem de Freyberg. Mas para o banco e seus
clientes, trata-se de um choque cultural.
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