A opção pelo véu - Por Mairakubik

“Aqui, as pessoas respeitam a mulher como ela é. Não tenho dúvida. Usar o véu é uma opção.” A opinião é de Isra al-Modallal, uma jornalista de 23 anos que acaba de se tornar porta-voz do Hamas, grupo que dirige o território palestino de Gaza.

Notícia no mundo inteiro nessa segunda-feira, ela começou o novo trabalho dizendo que seu foco será em direitos humanos. “A maioria das pessoas no mundo reconhece que os palestinos também são humanos então o mundo vai entender nossa mensagem como refugiados e pessoas que vivem sob um cerco”, afirmou. 

Divorciada e mãe de uma menina de 4 anos, Isra já foi chamada pela mídia israelense de “o novo rosto do terrorismo”. Para analistas internacionais, ela é uma tentativa do Hamas de ter uma face mais “amigável” para o Ocidente.

Questionada se o gênero seria um assunto central durante seu mandato, Isra respondeu que as mulheres palestinas já têm um papel ativo nas ruas, nas organizações e na mídia. “Eu não encontrei nenhuma dificuldade sendo uma mulher. Nós temos toda a liberdade que precisamos.”

A declaração, claro, é polêmica. Como bem sabemos, vivemos em um mundo hierárquico, em que a desigualdade entre homens e mulheres perpassa a maior parte das sociedades, inclusos aí os países árabes e o dito Ocidente, Estados Unidos e Europa. Nesse sentido, é difícil acreditar nela quando diz que não encontrou “nenhuma” dificuldade.

Mas, ao mesmo tempo, ter uma mulher, divorciada, que afirma usar o véu por opção, na posição de porta-voz do Hamas é um fato simbólico poderoso, que não pode passar batido. No mínimo, Isra vem para perturbar a percepção ocidental tão cristalizada de que as muçulmanas são pobres coitadas que sofrem com a opressão dos homens não “civilizados”.

“Mesmo que o véu seja proveniente de uma sociedade patriarcal e um símbolo de controle do corpo, as mulheres também utilizaram-no de uma maneira subversiva, própria e de forma a contestar o poder dos homens”, afirma a Dra. Azadeh Kian, socióloga e professora da Universidade Paris 7 – Diderot.

Kian* argumenta que, ao longo da história, as mulheres tiraram e colocaram o véu islâmico a depender de inúmeros fatores que não apenas a religiosidade. Um dos exemplos mais significativos dado por ela é o episódio conhecido como “A batalha do véu”, que ocorreu na Argélia em 1958. 

“Nesse ano”, conta, “os colonizadores franceses tentaram tirá-lo das mulheres argelinas, que só usavam um véu leve branco. Elas então transformaram-no em símbolo de resistência ao colonialismo francês e como técnica de camuflagem. Muitas que nunca haviam colocado o véu começaram a utilizá-lo. Elas argumentavam que não dizia respeito à De Gaulle ou à França dizerem como deveriam se libertar”.

Um movimento semelhante teria ocorrido após a invasão das tropas napoleônicas no Egito, quando o uso do véu cresceu rapidamente. Nesse período, as mulheres muçulmanas assistiram a seus direitos regredirem. Se antes elas podiam administrar sozinhas, mesmo após o casamento, suas próprias finanças e heranças, com a chegada europeia e a instalação de bancos, elas perderam sua existência legal. 

“Foi preciso esperar séculos para que elas pudessem manter a posse e gestão de seus próprios bens”, afirma Kian. “O mesmo ocorreu na África, onde, antes da ocupação, as mulheres participavam da política e perderam esse direito”.

Outra questão a ser lembrada é que o véu não é apenas islâmico. No Irã, país de origem de Kian, há práticas milenares de cobrir a cabeça que influenciaram, por exemplo, o judaísmo. Nessa época, o véu era proibido para as mulheres comuns, as que trabalhavam e as prostitutas. Só era permitido para aquelas oriundas de camadas superiores, tornando-se um símbolo de status social. Isso significava também uma proteção aos olhares alheios e curiosos, o que valia tanto para homens quanto para mulheres. 

“O primeiro registro é da Assíria há mais de 4 mil anos, que só permitia o porte à elite. O mesmo nos impérios persa, bizantino, e greco-romana. Portanto, os muçulmanos adotaram a tradição bizantina e persa”, lembra a professora.

É importante registrar que as mulheres utilizam-no também de maneiras distintas. Uma grande diferença são as cores. Outra, os tecidos. A depender dessa combinação, podemos fazer uma leitura da classe social a que essas pessoas pertencem. “É uma dialética sutil. Ao valorizarmos apenas o véu, perdemos de vista, por exemplo, a desigualdade social”, aponta Kian.

“Para algumas, usar o véu é convicção espiritual, escolha pessoal; outras o fazem pela força, pela imposição da família; outras por razão política, outras pela autonomia e como instrumento de emancipação, como por exemplo filhas de pais autoritários que não deixam elas saírem à noite. Isso funciona, elas obtém respeito e autonomia. Ou simplesmente o fazem pelo hábito. Não há homogeneidade, o véu não é nada fixo. É preciso compreender o véu islâmico pela complexidade”, diz Kian.

“Mas não podemos esquecer que se trata de algo patriarcal”, alerta. “A modernidade expõe o corpo da mulher: quanto mais o corpo é revelado, mas achamos que é moderno. A nudez é a outra versão do véu. A questão é sempre o corpo e quem controla ele. Estamos diante de duas faces da mesma peça. O primeiro é instrumento de controle da sexualidade; o segundo, de sua exploração”, ressalta.

Lembrar de todos esses fatores, aliás, é um dos principais argumentos das feministas muçulmanas, sim, elas existem, para criticar as ocidentais que apoiaram as invasões recentes do Iraque e do Afeganistão sob a justificativa de que isso “libertaria as mulheres”.

Afinal, de qual liberdade estamos falando?





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