Materialismo de mercado e espiritualidade – Por Adelino Francisco de Oliveira
Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro. (Lc 16,13)
Tudo que é sólido desmancha-se no
ar.
Karl Marx, A Ideologia Alemã.
A dinâmica do materialismo segue
um fluxo perverso, a destruir tradições, concepções de vida, ritualidades,
experiências espirituais e místicas, referências religiosas. Sob o auspício do
materialismo, tudo se desfaz, se dissolve, se liquefaz. A perspectiva
materialista conduz (reduz) tudo à esfera do consumo, do conforto, do imediato,
do que é meramente supérfluo, concebendo a vida e seus propósitos de maneira
estreita, limitada, superficial.
A ideologia materialista avança,
galgando os espaços mais inusitados, inclusive no campo religioso. O domínio, a
rendição ao materialismo acontece tanto no universo simbólico quanto na
dimensão concreta, no âmbito das decisões duras, reais.
No contexto das representações simbólicas, há todo um jogo de linguagem, impondo, de maneira sutil, a rendição à lógica do que é meramente material, mercadológico. Expressões de marketing sugestionando o sucesso, a competição, o estar na frente, elevando, inclusive, a própria ambição à categoria de valor, evidenciam o esgarçamento de uma identidade que se apresentava como perene, herdeira da mais legítima tradição espiritual. As palavras passam então a explicitar a adesão a uma outra visão de mundo, que não guarda relação alguma com a dimensão religiosa.
A linguagem denuncia e desvela a
compreensão, leitura de mundo que efetivamente se manifesta na dinâmica das
relações objetivas, reais, concretas. O valor absoluto esgota-se na busca pela
maior lucratividade. O que está em pauta é tão somente o retorno financeiro e
nada mais. Não há pessoas, não há tradição, não há legado espiritual, não há
projeto maior, não há identidade religiosa. A suma referência passa a ser o
mercado e suas promessas de retorno econômico.
Algumas igrejas assumem, de
maneira tácita, a ideologia materialista, abraçando a perspectiva da
retribuição e prosperidade como o fim último, a meta de todo o envolvimento
religioso. Perdendo sua dimensão de caminho transcendental, a experiência
religiosa acaba sendo reduzida, corrompida, compondo-se então como mera via
para o desenvolvimento material, para o acúmulo de bens, para o sucesso
individual. Sob a égide da retribuição e prosperidade, o horizonte da
transcendência se esvai, a própria religião perde seu caráter de religar o
humano com o sagrado. Tudo se reduz ao pseudo milagre da multiplicação dos
bens, do acesso, da adesão às benesses de uma vida de consumo.
Outras instituições, também
religiosas, acabam por aderirem ao ideário de mercado de maneira mais
dissimulada, buscando camuflar, por meio de discursos técnicos e ações
burocraticamente estratégicas, a traição aos mais profundos, genuínos e
autênticos princípios, a apontarem o absoluto da transcendência. Tais
instituições instrumentalizam a tradição religiosa, a qual seriam supostamente
herdeiras. Na essência atuam simplesmente em conformidade com as leis do
mercado.
Neste contexto, espiritualidade,
tradição, ritualidade, identidade religiosa se tornam pura abstração, na medida
em que não incidem na vida, nem como representação simbólica, nem como
referência prática. A espiritualidade revela um traço essencial do humano.
Negar tal dimensão significa também não viver a plenitude da própria
humanidade. O olhar para a transcendência cadencia uma dinâmica de relações
muito diversa aos apelos e definições próprias de um materialismo que é sempre
reducionista, a empobrecer todo horizonte existencial.
A negação da dimensão da
transcendência pode conduzir ao embotamento existencial. Neste ponto, a
abertura para a espiritualidade possibilita que o humano se lance em busca de
experiências mais profundas e autênticas, a apontarem para o sentido maior que
a vida pode alcançar. Carente torna-se a humanidade quando suas instituições
mais sagradas estão totalmente entregues aos ditames do materialismo de
mercado.
O lócus do desprendimento, o lugar primeiro da acolhida, da
transcendência, do amor, o espaço das vivências religiosas, mais íntimas,
desgarre-se de seu propósito em tornar o homem livre e feliz. Instituições
religiosas que não cuidam mais de suas ovelhas, ocupam-se muito possivelmente
dos dividendos do dia.
Adelino Francisco de Oliveira é
pós-doutorando pelo Departamento de Economia, Administração e Sociologia da
Esalq/USP.
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