A embriaguez na conquista da América - Por Karina Toledo
Mais do que mera diversão ou
escapismo, o consumo de álcool, tabaco e alucinógenos entre os incas e os
astecas tinha caráter ritualístico, religioso e até curativo.
Já para os
colonizadores europeus, embora também acreditassem no poder medicinal de certas
substâncias psicoativas, a prática representava a adoração ao demônio e,
portanto, deveria ser combatida.
Essa ambiguidade do discurso
espanhol sobre o consumo de drogas entre os índios, no período da colonização,
é tema do livro A embriaguez na conquista da América. Medicina, idolatria e
vício no México e Peru, séculos XVI e XVII, lançado recentemente pela editora
Alameda.
Publicada com apoio da
FAPESP, a obra é fruto do trabalho de mestrado de Alexandre Camera
Varella, realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) sob a orientação do professor Henrique
Soares Carneiro.
Com base em uma compilação de
fontes da época, que inclui obras de religiosos, tratados médicos e de história
natural, além de um cronista indígena cristão, Varella analisa as
representações hispano-americanas sobre o consumo das bebidas fermentadas
nativas, como é o caso da chicha (feita de milho), no Peru, e do pulque (feito
de agave), no México.
Também são incorporados o tabaco,
uma versão mais rústica e forte, usada pelos índios para induzir um estado de
transe e as bebidas derivadas do cacau e denominadas chocolate, muitas vezes
preparadas com flores aromáticas ou plantas alucinógenas.
“Qualquer substância capaz de
alterar o estado de consciência ou, como diziam na época, ‘tirar do juízo’, era
considerada causadora de embriaguez. E a embriaguez indígena estava sempre
relacionada aos rituais, seja de adivinhação ou de celebração dos deuses. Para os
espanhóis isso representava idolatria. Houve, portanto, bastante resistência
aos costumes indígenas, principalmente por parte dos clérigos”, contou Varella.
Curiosamente, acrescentou o
historiador, tanto colonizados como colonizadores acreditavam no poder
medicinal do tabaco. O espanhóis chamavam a planta de erva santa. Os indígenas
a consideravam uma entidade divina.
"Os colonizadores diziam que
o tabaco ajudava a eliminar substâncias ruins, quando soltava o catarro, e que
aliviava a digestão e as dores de cabeça. Também as bebidas alcoólicas e o
chocolate eram vistos como medicinais. Existiam várias receitas. Podiam colocar
uma determinada flor de qualidade ‘quente’ para combater calafrios, ou algo
considerado ‘frio’ para baixar a febre”, disse o historiador, que atualmente é
professor da Universidade Federal de Integração Latino-Americana, em Foz do
Iguaçu.
Durante os rituais de celebração
dos deuses, contou Varella, os indígenas tinham o costume de beber até perder a
consciência. Em certas ocasiões, quatro dias consecutivos de festas eram
realizados e o consumo de álcool era permitido até mesmo por jovens e crianças.
“Nesses momentos, era tolerada
uma certa algazarra, ocorriam brigas e havia maior liberdade sexual. A ideia do
vício trazida pelos religiosos, portanto, não apenas estava relacionada à
idolatria como também à luxúria e à violência que poderia haver nesses momentos
de bebedeira. Não se pensava na questão da dependência física ou psicológica da
bebida”, contou Varella.
Fora do contexto ritualístico,
porém, as sociedades indígenas eram extremamente conservadoras, disse o
historiador. Não era permitido beber dentro de casa ou na rua. Na época de
Moctezuma, imperador asteca do início do século 16, um nobre indígena flagrado
bêbado poderia ser punido com a morte.
“Até mesmo o uso da folha de coca
era bem restrito entre os andinos na era pré-hispânica. Mas, com a chegada dos
espanhóis e a desestruturação dos governos indígenas, houve uma popularização
do uso, tanto da bebida, quanto da coca e de outras plantas como o peiote [cacto
com propriedades alucinógenas]. Isso criou uma preocupação grande entre os
colonizadores e clérigos, que queriam preservar a mão de obra indígena,
relacionando a mortandade não às doenças trazidas por eles, mas sim à demasiada
embriaguez”, afirmou Varella.
Nesse contexto, diversas leis
foram criadas, tanto em âmbito eclesiástico quanto civil, para tentar
reprimir o consumo de álcool e de outras drogas entre os índios. Principalmente
por razões morais, também legislavam para evitar o mau costume entre os
mestiços, os negros e os espanhóis pobres que habitavam o Novo Mundo.
“As práticas sociais, porém,
foram muito mais amplas do que as tentativas de repressão, que muitas vezes
ficaram apenas no nível do discurso e das leis. Podemos dizer que foi a
embriaguez que conquistou a América”, disse Varella.
livro:
A embriaguez na conquista da
América. Medicina, idolatria e vício no México e Peru, séculos XVI e XVII
Autor: Alexandre Camera Varella
Lançamento: 2013
Páginas: 460
Mais informações:
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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