Virtuosas ou perigosas? - Por José Tadeu Arantes

“Os homens tomaram a Bastilha, as mulheres tomaram o Rei”: assim o historiador francês Jules Michelet (1798-1874) resumiu o alcance da primeira grande manifestação política feminina ocorrida na Revolução Francesa, que mudou a dinâmica do processo revolucionário, imprimindo-lhe a marca de uma crescente radicalização.

O ato ocorreu no dia 5 de outubro de 1789, quando, encabeçadas pelas vendedoras de peixe de Paris, cerca de 7 mil mulheres, armadas de facões de cozinha, lanças rústicas (piques), machados e dois canhões, marcharam a Versalhes, sede da Corte Real e da Assembleia Nacional, para protestar contra a escassez e o preço do pão, arrastando atrás de si soldados da Guarda Nacional e outros homens.

No dia seguinte, exasperadas com a crise de abastecimento e a atitude de Luís XVI, que vetava sistematicamente todos os decretos revolucionários da Assembleia, as manifestantes pressionaram o Rei a abandonar o Palácio de Versalhes e o escoltaram à capital.

“Foi uma iniciativa política sofisticada, porque, com a concentração do poder em Versalhes, o rei ficava longe da pressão popular e mais exposto às influências da rainha e da corte, e se utilizava do direito de veto, que ainda possuía no início da Revolução, para impedir que as reformas fossem realizadas. Ao trazerem Luís XVI para Paris, as mulheres mudaram o centro de gravidade do processo revolucionário e propiciaram à população da capital um novo protagonismo”, disse à Agência FAPESP Tania Machado Morin, autora do livro: Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revolução Francesa, que será lançado no fim de janeiro.

Apresentado originalmente como dissertação de mestrado no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), com orientação da professora Laura de Mello e Souza, o livro, agora publicado com apoio da FAPESP, divide-se em duas partes: 

a primeira discorre sobre as práticas políticas femininas ocorridas no curso da Revolução e suas repercussões na sociedade; a segunda parte analisa em detalhes um conjunto de imagens, representando mulheres, produzidas durante o período revolucionário.

Morin, que fez a maior parte de sua pesquisa iconográfica no Gabinete das Estampas do Museu Carnavalet e na Biblioteca Nacional da França, em Paris, demonstra, por meio dos fatos e das imagens, como o protagonismo feminino evoluiu ao longo do processo revolucionário e dividiu-se em tendências muitas vezes conflitantes, e como a visão masculina, sempre hegemônica, mudou correspondentemente.

“Enquanto as ativistas foram aliadas úteis dos líderes revolucionários, eles conviveram com os clubes femininos e toleraram suas manifestações, na Assembleia e nas ruas. Mas, no momento em que deixaram de ser apenas personagens excêntricas e barulhentas para se tornarem uma ameaça política, os governantes julgaram necessário reprimi-las com o rigor da lei e a força das armas”, disse Morin.

“Além da extinção dos clubes políticos femininos em outubro de 1793, em maio de 1795 as mulheres foram proibidas de frequentar a Assembleia e de se reunir em qualquer lugar, inclusive nas ruas, em grupos de mais de cinco, sob pena de detenção imediata”, continuou.

As “mães republicanas” e as “fúrias do inferno”

Constituiu-se, assim, no imaginário da época, a dicotomia “virtuosas versus perigosas”. Como Morin explica em seu livro, “virtuosas” eram as mulheres idealizadas pelos líderes da Revolução: as “mães republicanas” que, por meio do parto, do aleitamento e da educação dos filhos, preparavam a futura geração de patriotas. “Perigosas” eram “as militantes, às vezes armadas, que denunciavam a incompetência e a corrupção dos governantes e exigiam a punição dos ‘traidores do povo’”.

As imagens traduziram de forma estereotipada esses conceitos. Às figuras das “virtuosas”, inspiradas nas nobres matronas da estatuária romana ou nas madonas da pintura renascentista cristã, oferecendo aos filhos o leite da moralidade, contrapuseram, de forma muito explícita, as figuras das “perigosas”, “verdadeiras ‘fúrias do inferno’, que tricotavam ao pé da guilhotina, deleitando-se com o espetáculo da morte”.

É sintomático que essa visão negativa acerca das mulheres militantes tenha sido endossada, em momentos diversos, por diferentes facções em luta no processo revolucionário. Não apenas pela contrapropaganda monarquista, como seria de esperar, mas também pelos girondinos (representantes principalmente da alta burguesia moderada), jacobinos (principalmente da pequena burguesia radical) e outros agrupamentos políticos. Apenas as facções revolucionárias mais radicais, como a dos chamados enragés (“enraivecidos”), sustentaram até o final a militância feminina.

No entanto, as militantes, cuja principal organização política foi a Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias, não tinham uma agenda propriamente feminista.

“Elas tinham, sim, uma agenda ‘terrorista’. Isto é, apoiavam o ‘terror revolucionário’ como forma de governo: queriam a destituição dos aristocratas de todos os cargos públicos e das chefias do exército; a adoção do ‘máximo’, ou seja, do tabelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade; a estrita vigilância em relação aos contrarrevolucionários e açambarcadores de mercadorias, com a prisão, julgamento e eventual execução dos traidores; e outras medidas radicais”, afirmou Morin.

Sua posição não se diferenciava daquela dos sans-culottes (“sem culotes”), a numerosa massa popular urbana, especialmente ativa em Paris, formada por trabalhadores assalariados, artesãos e pequenos comerciantes, assim chamada porque os homens desse amplo segmento social não usavam culotes (calções de seda abotoados abaixo dos joelhos sobre meias compridas), como os aristocratas e a burguesia endinheirada, mas calças rústicas que desciam até os pés.

Pauline Léon e Claire Lacombe, as fundadoras da Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias, eram mulheres educadas, que escreviam bem e discursavam com eloquência. Pauline, nascida em Paris, trabalhou originalmente como fabricante e comerciante de chocolates, ofício que herdou dos pais. Claire, nascida em Pamiers de pais comerciantes, atuou como artista de teatro em Marselha, Lyon e Toulon, antes de mudar para Paris e dedicar-se inteiramente à Revolução.

As demais militantes eram, em geral, comerciantes de rua ou artesãs, muitas delas iletradas. As fontes citadas por Tania Morin divergem quanto ao número exato de frequentadoras da Sociedade, mas ele pode ser estimado em torno de cem. No entanto as líderes diziam ter o apoio de milhares.

“Durante a revolução, houve várias crises de falta de alimentos. E as mulheres,  responsáveis pela alimentação da família, que enfrentavam, entre outras, a fila do pão, foram às ruas reivindicar o controle governamental do abastecimento e dos preços. E a punição dos açambarcadores dos gêneros de primeira necessidade. Muitas foram empurradas para a militância por essa razão”, disse Morin.

Contra a ‘tirania’ dos homens

Bem diferente foi o caso de Olympe de Gouges, que pode ser considerada uma feminista avant la lettre. Filha nominal de um açougueiro de Languedoc, mas, segundo dizia, descendente ilegítima de um marquês, Olympe era politicamente próxima dos girondinos.

Idealista e generosa, insurgia-se contra as injustiças e defendia os oprimidos, mas se horrorizou com os massacres perpetrados, em nome da Revolução, nas prisões de Paris, em setembro de 1792.

Nessa ocasião, aterrorizadas com o avanço de tropas estrangeiras rumo à capital francesa e com os boatos de que os aristocratas presos planejavam um revide, massas enfurecidas invadiram os presídios e trucidaram os prisioneiros, muitos deles delinquentes comuns, sem qualquer conexão com o complô aristocrático. 

“O sangue dos inocentes, especialmente quando derramado com crueldade e abundância, mancha indelevelmente as revoluções”, disse Olympe, segundo citação no livro de Morin.

Autodidata, Olympe notabilizou-se como dramaturga e panfletária. “Ela denunciou a ‘tirania que o homens exercem sobre as mulheres’ e defendeu uma reforma do casamento, que deveria durar apenas enquanto subsistissem as inclinações mútuas”, destacou Morin.

“Ao mesmo tempo, condenou a escravidão nas colônias, reclamou oficinas de trabalho para operários desempregados, asilos para os órfãos e ajuda social para os miseráveis. E propôs o casamento do padres, em nome dos bons costumes”, disse Morin.

“Depois que a Assembleia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em agosto de 1789, não contemplando nela nenhuma das reivindicações especificamente femininas, Olympe publicou, no mês seguinte, sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, reivindicando a igualdade cívica entre os sexos”, disse.

Em outra faixa do espectro social e político, a Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias foi fundada em maio de 1793, no auge da radicalização do processo revolucionário, após a invasão do território francês por tropas austríacas e prussianas; a proclamação da República e a execução do rei, acusado de traição depois de serem descobertos documentos que explicitavam suas negociações secretas com as potências inimigas; e o levante camponês instigado pela clero contrarrevolucionário e pelos aristocratas que buscavam retomar o poder.

A sobrevivência da Revolução estava por um triz. E Robespierre, Saint-Just, Marat, Danton, Desmoulins e outros representantes políticos da pequena burguesia radical, reunidos no agrupamento heterogêneo dos montagnards (“montanheses”), assim chamados por se sentarem nas arquibancadas mais altas da Convenção Nacional, buscavam uma aliança com as massas populares como forma de salvá-la.

Nesse momento crítico, as militantes da Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias desempenharam importante papel na luta dos montanheses contra os girondinos, cujos deputados, até então hegemônicos na Convenção, favoreciam os interesses burgueses em detrimento dos sans-culottes.

“De fato, as Republicanas concorreram para preparar a insurreição contra os girondinos, fazendo propaganda, discursando, promovendo agitações na Convenção, nos clubes políticos, nas seções”, escreveu Morin.

No dia 2 de junho de 1793, pressionada por uma insurreição popular em Paris, a Convenção ordenou a prisão de 29 deputados girondinos. Derrotados, os girondinos utilizaram a retórica mais furiosa para denegrir as militantes. Elas foram chamadas de “bacantes de Marat” e “megeras” e acusadas de quererem “fazer rolar as cabeças e se embebedar de sangue”.

Já em setembro-outubro do mesmo ano, porém, acompanhando a radicalização dos enragés, que acusavam a Convenção de imobilismo e defendiam a democracia direta, com a autonomia das assembleias populares das “seções” (correspondentes grosso modo aos bairros parisienses da época) em relação às autoridades constituídas, as militantes passaram a ser criticadas também pelos montanheses, que, apesar de acatarem várias reivindicações dos sans-culottes, como o tabelamento dos preços e a execução dos contrarrevolucionários, procuravam preservar a estrutura representativa.

Peixeiras versus militantes politizadas

Um grave conflito entre as vendedoras de peixes e as militantes, que mobilizou um grande grupo de mulheres e acabou em agressões físicas, foi a gota d’água que possibilitou ao Comitê de Segurança Geral extinguir, não apenas a Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias, mas todos os outros clubes femininos do país.

Em seu livro, Tania Morin analisa detalhadamente o relatório apresentado por Jean-Baptiste André Amar, então relator do Comitê de Segurança Geral, para justificar a proibição das agremiações femininas, motivada por contradições políticas imediatas, mas que também trazia à tona concepções ideológicas de fundo. Tal relatório é o único documento oficial da época revolucionária que enuncia os princípios da exclusão feminina da vida política nacional.

Pauline Léon foi detida com o marido, o enragé Théophile Leclerc, em abril de 1794, sendo libertada pouco tempo depois. Já Claire Lacombe permaneceu encarcerada um ano e meio. 

“Na opinião de suas amigas, a prisão quebrou seu espírito. Apesar da insistência das antigas companheiras, ela abandonou definitivamente a política e deixou Paris, voltando à vida de atriz e à obscuridade”, escreveu Morin. Crítica veemente do regime de terror liderado por Robespierre, Olympe de Gouges foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793.
“Depois da dissolução dos clubes femininos, as mulheres continuaram participando ativamente da política por meio dos clubes mistos”, falou a pesquisadora.

“Isso se prolongou até 1795, quando, após a deposição e a execução de Robespierre e a retomada do poder pela alta burguesia conservadora, houve duas revoltas muito importantes em Paris, as revoltas de Germinal e Prairial. Foram os últimos levantes populares na Revolução Francesa. Neles, as mulheres desempenharam um papel decisivo, incitando os homens a invadir a sala da Convenção, onde se reunia o governo, para reivindicar a aplicação da Constituição revolucionária de 1793 e reclamar da falta de pão, pois estavam todos morrendo de fome. Por essa atuação como incitadoras, as mulheres ficaram apelidadas como as ‘bota-fogos’”.

Os levantes foram ferozmente reprimidos, com numerosas prisões e execuções. A fase do movimento popular urbano da Revolução chegava ao ocaso. A última tentativa de levar o processo revolucionário adiante, a “Conjuração dos Iguais”, liderada por Gracchus Babeuf, foi desmantelada em maio de 1796, com a prisão dos líderes. Babeuf foi guilhotinado um anos depois.

“As mulheres foram silenciadas e confinadas ao lar. As francesas só acederam aos direitos cívicos após a Segunda Guerra Mundial. Por isso, algumas historiadoras acham que nada restou da participação feminina revolucionária. E que entre as precursoras do feminismo e as feministas modernas não há nenhum elo”, afirmou Morin.

A historiadora, no entanto, discorda dessa posição. “A Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias foi o protótipo dos clubes políticos de mulheres que surgiram na revolução de 1848. Aqueles seis primeiros anos da Revolução ficaram na história das lutas pela cidadania e serviram de inspiração para as gerações futuras”, afirmou.

Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revolução Francesa 
Autora: Tania Machado Morin
Lançamento: janeiro de 2014
Editora: Alameda 
Páginas: 370
Mais informações: www.alamedaeditorial.com.br




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