Celebração em homenagem a Iemanjá reuniu cerca de 400 mil pessoas de todos os credos – Por Rafael Rodrigues

Quanto nome tem Iemanjá! Rainha do Mar, Senhora das Águas, Janaína... e mãe. De todos os orixás e, por tabela, de milhares de pessoas, que com obrigação de filho, se reuniram no Rio Vermelho, ventre da devoção à orixá. 

Todos os caminhos levavam à casa da mãe. Segundo a Polícia Militar, 400 mil pessoas foram ontem festejar o dia dela. Na beira do mar em busca de benção, ou na reverência de uma rosa depositada ao mar, filhos de toda fé iniciaram cedo o exercício de agradecimento.

O músico Carlinhos Brown desfilou pelas ruas do bairro com o cortejo Zárabe, de madrugada e ainda voltou à tarde. Logo no início da manhã,  quando o sol venceu as nuvens e pintou o céu com um belo alvorecer, já havia fila para a entrega dos presentes na Colônia Z-1, ao lado da Igreja de Sant’ana.

Por volta das 5h, quando fogos de artifício alertaram para o começo da celebração do 2 de Fevereiro, praia e rua estavam bem movimentadas, e o toque de atabaques se espalhava pela faixa de areia diminuta, encolhida pela maré cheia.

Nessa hora, a maioria das demonstrações de fé veio de adeptos de religiões de matrizes africanas. O comerciante Potyguara Fateicha, 49 anos, filho de santo do terreiro Alami, viajou cedo, vindo  de Conceição do Coité,  para oferecer um pote de alfazema e botões de rosa branca.

“Cheguei 4h30, saí de casa uma hora antes. Pra trazer a família, é bom vir cedo, que ainda não tem confusão”, afirmou. Uma hora e meia de fila, e ele deixou suas ofertas num dos balaios instalados em frente à casa de peso da colônia de pescadores.

Pelas 7h30, a fila já se alongava por mais de meio quilômetro. Oportunidade para dezenas de ambulantes que repetiam a promoção  “três por cinco”. O produto, àquela hora, ainda não eram as geladas periguetes, mas rosas, das cores prediletas de Iemanjá, brancas e azuis e também amarelas e vermelhas.

Maquiagem  

Famosa pela vaidade e sensualidade, houve quem desse a Iemanjá mais que flores e perfume. O representante comercial Valmir Leão, 66, saiu de Aracaju cedo com um barquinho em miniatura recheado: uma nécessaire completa, que incluía sabonete a maquiagem.

“Sempre quem vem é minha esposa, mas minha filha ficou doente, então vim representá-la. Pedi saúde pra toda a família e agradeci pelo ano que passou”, disse. 

Já a réplica de uma  tartaruga marinha,  feita em material biodegradável, foi a oferenda dos pescadores, o pedido para que a mãe também protegesse todos os seres que vivem no mar. O prefeito ACM Neto acompanhou a entrega e depositou três rosas brancas, “para agradecer pelo que tem ocorrido na cidade”,  no presente principal. 

Neste momento, segundo estimativas da Polícia Militar, foi registrada a maior concentração de pessoas na festas: pelo menos 170 mil se aglomeraram na enseada na hora da entrega do presente, seguida de procissão marítima para deixar a oferenda a 6 km da costa. Cerca de 1,5 mil policiais foram mobilizados para a festa.

Respeito  

Para além dos frequentadores de terreiros de candomblé, muitas pessoas abriram uma exceção na fé cristã para a Rainha do Mar. “Mãe é mãe, né?”, resumiu a comerciante Lucineida da Silva Soares, 52, dita católica “não praticante”. Pela primeira vez na festa, ela ainda aproveitou a brecha para tomar um banho de folha. “Pra Iemanjá, pedi só saúde. Agora tomei esse banho pra ver se as coisas melhoram”, afirmou. 

A dentista Carolina Drummond, 24, foi à festa pela primeira vez. Entregou rosas e justificou a devoção à entidade, apesar da fé cristã. “É uma energia boa. Já sobrevivi a um acidente com água, e sei que, quando Iemanjá quer, ela leva”, disse.

Na areia da praia, a tradição dos atabaques dos rituais religiosos ao ar livre chamava a atenção dos turistas. Alguns espantados, boquiabertos. Como o canadense Ryan Rowat, 24, que em seu segundo dia de Bahia, observava de perto a manifestação das entidades do Candomblé nas danças e no gestual. “Ainda não consegui entender muita coisa, mas me parece tudo muito intenso, forte”.

Outros eram só elogios à festa. “É deslumbrante. A festa popular baiana mais bonita. Para mim, vejo alegria. Mas para eles, sei que é uma festa de cabeça, de fé, e cada religião tem de ser respeitada”, ressaltou o turista italiano Carlos Carini, 69, que registrava com sua câmera cada detalhe da festa. 

A cena se repetia, aliás, por toda a praia. Uma mulher vestida a caráter arremessava uma rosa ao mar, e dezena de cliques a seguiam. Outra dançava, mais outras tantas lentes apontavam em sua direção. O local que talvez mais chamava atenção era a roda formada pelo Centro Espírita Reino de Umbanda. O pai Minininho, líder espiritual do templo religioso, incorporado de Oxóssi, saudava e abençoava quem se dirigia a ele.
Missa  

O que ninguém imagina é que, naquela estrutura provisória montada para a celebração de deuses da umbanda, no início da manhã, a Bíblia havia sido lida. Às 5h30, o bispo Dom Marcos Paulo ministrou uma missa, num altar improvisado entre as imagens de Jesus, Maria e Iemanjá. O bispo é da Igreja Católica Independente, que não possui ligação institucional com o Vaticano.

“Religião nunca salvou ninguém, mas a atitude. Jesus nunca condenou nenhuma religião. Quando ele nasceu elas (religiões) já existiam, e ele estava no meio de todas”, defendeu.

Houve divergências quanto à atitude do pároco. “Hóstia na festa de Iemanjá? E desde quando ela gosta de pão?”, ironizou o professor Leonardo Ribeiro, 26. O motorista Josemar Santana, 30, gostou: “Hoje em dia a gente tem que acreditar em tudo, né? Eu acredito em Deus. E Deus não é briga, é amor, não é isso?”.

Ainda por volta das 11h, o aroma da alfazema não disfarçava o forte odor de urina. Bandas de sopro e de tambores arrastavam muita gente, que brindava com latinhas de cerveja, comeu ou iria comer feijoada, formas festivas de também celebrar Iemanjá.

Praia do Rio Vermelho é transformada em terreiro

Joseílda Camargo, 68 anos,  dançou de olhos fechados, se agachou e continuou o movimento compassado, seguindo o som dos tambores sagrados. Na areia da praia do Rio Vermelho, os rituais do candomblé que tradicionalmente acontecem dentro de quatro paredes, em celebrações privadas, são feitas ali, pra quem quiser ver. 

Não era difícil encontrar mães de santo, ou filhas deles, com entidades incorporadas, como na celebração do Terreiro Axé Griahn de Obá, de Alagoinhas. Os movimentos de Joseílda ocorreram no momento em que o barco com as oferendas do tempo entrava no mar. Num ato de devoção, todas as mulheres do terreiro retiraram as joias e entregaram para Iemanjá. 

Após se recompor, a filha de santo pediu resguardo, não quis falar. Segundo Jair Nascimento, membro do terreiro, todo o grupo começou a celebração na tarde de sábado, ainda em Alagoinhas, e só voltaria para casa às 18h, após um ato final na Lagoa do Abaeté.

Já a mãe de santo Maria José Jesus dos Santos, 55, do terreiro de Oyá, de Conceição do Jacuípe, percorreu toda a faixa de areia vestida de Iemanjá e era seguida pelos membros do terreiro, em uma pequena procissão. “É uma penitência, uma missão, fazer esta homenagem”. 

A mãe Dalva Lopes Apóstolo, 69, do Terreiro Zumbá, em Alagoinhas, rezava e dançava em torno das oferendas, antes que fossem lançadas ao mar . “A única coisa que peço é que essas águas lavem toda a maldade do mundo”.

Pó de pemba, alfazema, pétalas de rosas brancas, aplausos e saudações, como  “Iemanjá é mãe!”. Com esses elementos, ontem, o principal presente da orixá, uma réplica de tartaruga marinha,  deixou o galpão montado entre a Igreja de Sant’ana e a Colônia de Pesca do Rio Vermelho em direção ao mar. 

A peça, feita pelo artista plástico Rui Santana, foi levada a 6km da costa às 16h10. Antes foi escoltada pela PM, que abriu o caminho na multidão que saudava e fotografava o presente. Foram mobilizados pela organização 15 homens para carregar a estrutura com sacrifício. No andor, 29 pratos preparados em rituais secretos pela ialorixá mãe Alsse.

A líder do Terreiro Odê Mirim, que abençoou o presente dos pescadores, explicou que os animais marinhos também são filhos de Iemanjá, como Xangô, orixá que rege 2014. Para ela, a escolha da tartaruga cabeçuda (espécie em extinção) deve agradar à Janaína. 

“Iemanjá cuida dos animais e a tartaruga, feita em material biodegradável, é para refletirmos sobre a preservação”, explicou o artista plástico Rui Santana. A tartaruga foi feita em fibra, papel machê e gesso.  Pela  madrugada, Oxum também foi lembrada com entrega de presentes no Dique do Tororó. 

Dia de paz


Até as 20h de ontem, segundo balanço da 7ª Delegacia (Rio Vermelho), foram registradas 50 ocorrências, a maioria de pequenos furtos. O balanço oficial, comparando com os números do ano passado, será divulgado hoje. Segundo estimativas da Polícia Militar, aproximadamente 400 mil pessoas circularam pelo Rio Vermelho durante todo o dia.



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