O Estado, sendo laico, deve defender a dignidade de todos - Por José Miguel Garcia Medina
Ganhou repercussão decisão
proferida, há poucos dias, em que se discutiu o conceito de religião.
A questão ligava-se à
possibilidade de retirar do Youtube vídeos que conteriam afirmações de
intolerância ou discriminação contra “manifestações religiosas
afro-brasileiras”, consoante se afirmou. Temos tido, há tempos, embates relacionados,
de algum modo, à noção de liberdade religiosa, ou de atos praticados com alguma
justificativa religiosa.
Trata-se de problema de escala
global. Lembre-se, por exemplo, da condenação de uma jovem à morte, no Sudão,
por ter abandonado a fé islâmica. Por aqui, um vereador pediu a demissão de
funcionária da Câmara de Vereadores por afirmar que “Deus não existe".
Com freqüência, os debates
realizados a respeito são marcados por algum tipo de preconceito. E, não raro,
dispositivos constitucionais são esgrimidos para justificar, por exemplo, a
crítica a alguma prática religiosa.
Instado a se manifestar sobre
problemas de tal dimensão, ocupam-se os tribunais de tentar dar contornos ao
que pode e ao que não pode ser feito, em nome de ou contra alguma religião.
Afirma-se que o Brasil é um
Estado laico, o que significa que não acolhe, impõe, estimula ou segue dogmas
impostos por qualquer religião, mas também que não reprova uma ou outra
religião.[1] Isso não significa que o Estado é
alheio a valores que inspiraram e ainda inspiram boa parte das religiões.
Entendo que não se deve confundir
religiosidade e espiritualidade. Se não se admite ao Estado apreender
dogmas e rituais religiosos, é difícil negar que o ser humano não tenha uma
dimensão espiritual, e esta aspiração foi incisivamente expressada, no texto
constitucional.[2]
A dignidade da pessoa humana
funciona como eixo central dos direitos fundamentais e essa ideia, incorporada
no seio da Constituição, ostenta o que de mais espiritual tem o ser humano: o
de reconhecer-se a si mesmo e a seus semelhantes como tal, procurando
aprimorar-se como pessoa e, ao mesmo tempo, cuidando para fazer com que o mundo
à sua volta melhore.
A laicidade do Estado não permite
que se afirme inexistir um princípio que norteia a atuação estatal e que também
deve guiar as pessoas, no relacionamento que mantém entre si. Concordo com Enzo
Bianchi, que afirma que o Estado, sendo laico, deve defender a dignidade de
todos, a começar por aqueles a quem ela é constantemente negada, propiciando
que cada um busque dar plenitude de sentido à sua vida.[3]
Esse, segundo penso, é o sentido
que devemos extrair da norma constitucional, que, alicerçado nos direitos
fundamentais, é, inegavelmente, espiritual.
[1] Afirmou-se, no julgamento da ADPF
54, que “o Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente
neutro”. Isso significa que, “se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a
laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como
árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado
laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale
dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer
minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas
à esfera privada. A crença religiosa e espiritual — ou a ausência dela, o
ateísmo — serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do
indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de
ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações
morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que
seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se
tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo
inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até
então assumida”. Assim, “ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover
qualquer religião. Todavia, como se vê, as garantias do Estado secular e da
liberdade religiosa não param aí — são mais extensas. Além de impor postura de
distanciamento quanto à religião, impedem que o Estado endosse concepções
morais religiosas, vindo a coagir, ainda que indiretamente, os cidadãos a
observá-las. Não se cuida apenas de ser tolerante com os adeptos de diferentes
credos pacíficos e com aqueles que não professam fé alguma. Não se cuida apenas
de assegurar a todos a liberdade de frequentar esse ou aquele culto ou seita ou
ainda de rejeitar todos eles” (STF, ADPF 54, trecho do voto do rel. Min. Marco
Aurélio, j. 11 e 12.04.2012).
[2] Escrevi a respeito na obra Constituição
Federal comentada (3.ed., Ed. Revista dos Tribunais), comentário ao artigo
19 da Constituição.
[3] “La laicità dello stato è allora
quella opzione di fondo che consente di reinventare continuamente strumenti
condivisibili e linguaggi comprensibili da tutti, di garantire presidi di
libertà e di non sopraffazione, di difendere la dignità di ciascuno, a
cominciare da quelli cui viene negata, di consentirea ciascuno di ricercare,
anche assieme ad altri, la pienezza di senso per la propria vita” (Enzo
Bianchi, La spiritualità di chi no crede).
Fonte: http://www.conjur.com.br
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