Estado laico, religião e política – Por Joathas Soares Bello
O Estado laico não se define pela
exclusão da religião da vida pública, mas pela aconfessionalidade, que o impede
de tomar partido por uma religião específica; não se trata de relegar a
dimensão religiosa da vida ao âmbito do privado, mas de o Estado estar aberto à
contribuição de todas as religiões para a vida social.
O laicismo é a confissão de “fé”
de um Estado agnóstico: tolera-se a religião nos templos e nos lares, nas
decisões privadas, mas não na vida pública. É claro que o católico, por
exemplo, não pode pretender que haja uma lei obrigando os cidadãos a ir à missa
dominical ou a crer na Imaculada Conceição. Isso seria uma imposição indevida
da moral e do dogma religioso na vida dos cidadãos.
Mas quando um cristão, ou
qualquer religioso, se pronuncia, por exemplo, contra o aborto, à luz de argumentos
de ordem biológica, jurídica, ética ou metafísica, o fato de que estes
argumentos também possam se depreender de mandamentos e concepções
antropológicas reveladas não implica na inviabilização dos mesmos no debate
sobre a moralidade do aborto.
Aqui está o x da questão, que os
laicistas não entendem: perspectivas religiosas podem e devem participar do
debate democrático, sempre que sejam coincidentes com perspectivas racionais,
isto é, ao alcance de todos, ao menos em princípio. E, por perspectivas racionais,
não se deve entender apenas aquelas mais modernas, oriundas de uma concepção
positivista do conhecimento e do direito, ou, ainda, de uma concepção
relativista da ética e da política.
A ideia mesma do Estado laico
brota de raízes cristãs: a distinção entre os âmbitos político e religioso
surge precisamente do “dai a César o que é de César”.
A própria democracia
moderna não deixa de ser um desdobramento da ordem de Cristo para que se
ensinasse o Evangelho a todas as pessoas: se a fé deve ser universalizada, com
igual razão os demais bens espirituais e materiais devem ser repartidos entre
todos.
Assim, compreende-se a democracia não só como o método que elege, de
acordo com a vontade popular, os modos de efetivação do bem comum, mas como o
regime que assume que os bens da sociedade devem chegar ao maior número
possível de pessoas, e todos os esforços possíveis devem ser feitos nesse
sentido; a “democracia”, assim entendida, pode ser considerada o fim da vida
política.
Acontece que o método democrático
da escolha pela maioria tem se convertido em bem absoluto, no verdadeiro
objetivo da política. Como método, porém, a democracia está submetida ao
sentido que tem como fim, que consiste precisamente na defesa e difusão dos
direitos humanos.
Ora, sem essa perspectiva, o que se pode assistir é, de fato,
à negação desses mesmos direitos pelo próprio método democrático: todos estarão
de acordo em que o nazismo, eleito democraticamente, foi um horror no que diz
respeito à democracia como garantidora dos direitos humanos.
As religiões, enquanto
testemunhas de valores humanos e não simplesmente religiosos ou ligados
especificamente à fé, universais, podem servir para ajudar a democracia a ser o
que deve ser: um regime comprometido com o autêntico bem comum da pessoa humana.
Que o método democrático e o positivismo jurídico e o relativismo moral que o
distorcem reconheçam seus limites, e o Estado laico, aberto, assim, à
contribuição axiológica das religiões, possa ser verdadeiramente democrático.
Joathas Soares Bello, doutor em
Filosofia pela Universidade de Navarra, é professor da Faculdade de São Bento
do Rio de Janeiro, do Instituto Filosófico e Teológico São José do Seminário
Arquidiocesano de Niterói e da Faetec-RJ.
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