O esboço de políticas violentas de alteridade - Por Roberto Vinicius P.S. Gama
Mais um atentado terrorista neste
acelerado, complexo, globalizado, multicultural e obcecado breve século 21.
O
alvo não foi uma instalação militar, um arranha-céu econômico, um edifício
oficial político. Desta vez, um órgão de imprensa destacado pela atuação
satírica, misturando arte visual e crítica política.
Novamente, como de praxe,
o foco é virado para o grupo criminoso: quem são, como planejaram o ato, quais
são suas motivações, pretendem novos alvos?
O principal é investigar e
perseguir o inimigo, mostrar reação severa a ele, superar seu recado político
com uma narrativa de frustração e desumanização desse outro. Nesse circo
mambembe com uma disputa de “verdades” equilibristas, é importante levantar a
lona. Do ato às leituras e apropriações do fato, muito se perde na tradução.
O conteúdo que segue leva em
conta as ruínas, escombros e cascalhos do desastre, busca contribuir um pouco
na recuperação de visões e leitura menos condicionadas pela reação imediata aos
ataques criminosos, contudo sem esquecer de mais uma leva de esqueletos
empilhados na história recente da (ainda em voga, de modo difuso e mais
discreto) disputa entre “guerras santas” e “guerra ao terror”. Para isso,
tomará como guia algumas temáticas articuladas que provocarão exercícios reflexivos.
Contexto [ou “A revista faz parte
da sociedade”]
Imprensa livre não equivale a
imprensa desarticulada de contexto sócio-político, livre de censura e outras
restrições não significa livre de localização espaço-temporal.
Uma revista que
se destaca na produção de cartuns e charges políticas, inclusive em referência
aos mundos árabe e islâmico, em uma potência ocidental que integrou a coalizão
anti-”Eixo do Mal” na “Guerra ao Terror” (pós-11 de setembro de 2001), e que no
século vigente esteve envolvida em polêmicas e críticas quanto à forma e
caráter de seu secularismo (tipo de Estado laico), ao tratamento público da
religião (e de algumas religiões em particular) e à política referente a
imigrantes (em especial aqueles provenientes do mundo árabe e do mundo
islâmico), não é um periódico qualquer no contexto da política internacional
contemporânea. É uma publicação que apresenta e representa.
Representação [ou “A vítima
imaterial”]
O ataque ao semanário Charlie
Hebdo, na superfície, é no fundo um ataque à cultura política francesa da
atualidade e sua relação com um imaginário coletivo anti-islamita e
pró-alteridade deletéria, fruto da criação de discursos anti-terror.
Nesse
sentido, o periódico constituía um ícone de uma ideologia adversária à visão de
mundo de grupos extremistas terroristas, mesmo que a publicação não tenha o
terrorismo como objeto único ou principal de suas críticas satíricas.
As
vítimas são pessoas físicas (policiais, jornalistas, cronistas, chargistas,
cartunistas), o alvo é imaterial. Aparte a inocência das vítimas, e quanto
ao alvo?
Atuação [ou “Atos políticos em
tempos de guerra”]
A revista e os valores
embutidos/incrustados em sua produção crítica não são inocentes.
Em tempos de
guerra (latente ou pungente) ao terror, a satirização e a ridicularização do
“inimigo” pode razoavelmente ser entendida como ato político com
parentesco (mais ou menos próximo) à propaganda de guerra. E a relação
“especial” com o Estado francês, que fornecia segurança específica à sede da
publicação e em uma ocasião [conforme mencionado na cobertura televisiva
brasileira do atentado] chegou a pronunciar que o conteúdo da revista não
representava a política do país, discurso que acaba por comunicar o contrário,
devido à situação extraordinária (não usual) de uma autoridade política
nacional enfatizar algo que já é uma premissa, notadamente que publicações
particulares refletem opiniões e visões particulares (de seus editores e
autores) e não de um governo ou país, apenas adiciona pólvora ao barril
contextual.
Imagem & Ação [ou “A pena é
mais forte que a bala”]
Um ato de fala via imagem é
geralmente transmitido de forma mais direta e impactante; “uma imagem vale mais
que mil palavras”. Nisto, e na habilidade de condensar uma mensagem em uma só
composição visual, residem o poder comunicativo dos cartuns e
charges. Ao exacerbar, de forma satírica, a alteridade entre “nós” e “outros”
(o muçulmano, por exemplo, sendo considerado um “outro” ameaçador), o desenho
reforça a arbitrária antítese entre determinada noção de “ocidental”
(civilizado, democrático, de cultura judaico-cristã etc.) e outra de “árabe”
(bárbaro, autoritário, de cultura muçulmana, etc.).
Tal discurso é próximo ao
oficial, traduzindo em imagens alguns ditos e termos utilizados em
pronunciamentos oficiais em referência ao inimigo terrorista, ex. o atual
presidente francês, após o atentado, caracterizou os responsáveis disparando
palavras como “barbárie” e “obscurantismo”.
Assim adentra-se a narrativa do
“choque de civilização”, ou melhor [pra pior], do choque entre “civilizado” e
“não-civilizado”, discurso que batalha contra a narrativa fundamentalista
“islâmica” (de grupos terroristas) que enfatiza o choque entre “fiéis” e
“infiéis”.
Nesse contexto, da sátira à jihad, revigora-se a farsa das
Cruzadas. No embate imagético, quem vê caricatura não vê coração, e corre
o risco da armadilha da dimensão.
Redução [ou ‘Falácia de escopo’]
Uma questão importante, passível
de ser limítrofe (para alguns) da sátira e do humor, é quanto à dimensão ou
proporção da caricatura, isto é, da abrangência da representação.
Uma crítica
de humor a partir da figura de uma autoridade política, um chefe ou líder
religioso atual, um santo ou profeta auxiliar (secundário) não tem a mesma
dimensão do que lidar com figura fundadora de uma gigante religião monoteísta, ex. Abraão (um dos patriarcas) no judaísmo, Jesus Cristo no cristianismo, e
Maomé no islamismo. É uma questão de reducionismo, não nos termos do
caminho do macro para o micro, mas no sentido filosófico-científico de movimento
rumo à compilação de unidades e sistemas em categorias (redução de constelação
de elementos a uma “categoria guarda-chuva”).
Utilizar figuras fundadoras para
exprimir uma sátira político-religiosa amplia as proporções de comunidades e
pessoas potencialmente ofendidas.
Efeito colateral [ou ‘Desenho
pela culatra’]
No caso do combate ao “terrorismo
islâmico”, apresentar anacronicamente Maomé como um líder do terrorismo
contemporâneo é um ato simbolicamente semelhante a uma bomba que dispersa
fragmentos ao redor: projéteis irregulares atingem tudo quanto é lado.
A
política estatal de combate ao terrorismo e discurso antiterror é (direta ou
indiretamente) reforçada; a própria sociedade (francesa, stricto sensu, e
ocidental, lato sensu) recebe a carapuça de intolerante e xenófoba; a
outra sociedade (árabe-muçulmana) leva o insulto da sátira de uma figura
político-religiosa fundamental; os “inimigos diretos” (terroristas) são
criticados ao mesmo tempo em que têm sua justificativa reforçada, pois o
entendimento de uma sátira generalizada ao Islã via seu principal profeta, é
tênue a linha da sátira imagética contra terroristas islâmicos e contra
islâmicos em geral, especialmente com o recurso a uma figura comum a ambos
(vale lembrar que o termo “maometano” é utilizado como sinônimo de “islâmico”), mostra uma visão negativa da cultura muçulmana por parte da cultura ocidental
e pode servir de convite ao ódio antiocidental (“infiéis”) e promover adesão à
visão extremista de grupos islâmicos que pregam uma “guerra santa” em nível
mundial.
Essa argumentação não quer
justificar o atentado, os homicídios, a violência e a covardia. O acontecimento
é lamentável, as mortes são motivo de tristeza e indignação, assim como as
perdas de outro atentado ocorrido no mesmo dia, em ataque a uma academia de
polícia na capital do Iêmen, com número maior de vítimas (mortos e feridos) e
volume bem menos expressivo de repercussão midiática (comparado com o ataque ao
“mundo civilizado”).
Além disso, o atentado na capital da França poderá ter
repercussões na defesa de valores como a liberdade de expressão. No entanto,
representa um aviso de “choque do sagrado”: a sacralidade da livre expressão de
uma pessoa, grupo particular ou sociedade geral é mais sagrada que a
imagem do principal profeta de uma comunidade político-religiosa?
Em Cartas Persas,
Montesquieu lembra um dito: se triângulos concebessem deuses, lhes dariam três
lados...
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Roberto Vinicius P.S. Gama é
mestrando e bacharel em Relações Internacionais
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