A história esquecida das mais antigas comunidades cristãs orientais – Por Philip Jenkins
A riqueza das informações sobre
os cristãos no mundo persa não chega até os livros tradicionais que contam a
história do cristianismo.
Encontrei recentemente uma fonte
intrigante e valiosa sobre a história cristã primitiva, relacionada
especificamente com o cristianismo no lado oriental do mundo. Além do interesse
intrínseco do conteúdo, houve outra coisa nessa descoberta que me chamou à
atenção: por que esse lado da história cristã é tão pouco conhecido no Ocidente?
Esta pergunta, por sua vez, me levou a pensar em questões ainda mais
abrangentes: como é que nós, ocidentais, estudamos a história e como é que
delimitamos o mundo que queremos estudar?
Desde tempos muito antigos, o
cristianismo se tornou uma força real nas terras a leste da Palestina, na Síria
e no Iraque e em muitos territórios governados pelo vasto Império Persa. Em
certo sentido, aquele império representou uma espécie de “espelho” do mundo
romano.
Entretanto, muitos capítulos preciosos da história cristã oriental são
praticamente desconhecidos para boa parte dos estudiosos, que se concentram
quase exclusivamente na Europa e no mundo mediterrâneo. Em consequência,
perdemos uma grande e riquíssima parte da nossa própria história.
Para ilustrar esta observação,
recorro a um caso estranho e bastante misterioso acontecido no final do século
III.
Naquela época, a figura de maior
destaque no sacerdócio zoroastriano da Pérsia era Kartir (ou Kerdir), líder
religioso revolucionário que rompeu o modelo imperial vigente, que era de
grande tolerância cultural.
Na década de 270, em Naqsh-e Rajab, perto de
Persépolis, no atual território do Irã, Kartir mandou fazer algumas inscrições
que alardeavam os seus serviços em favor daquela fé e do Império Persa.
Entre
as palavras que ele mandou gravar, encontramos uma ostentação da sua
intolerância e dos seus atos de perseguição contra várias religiões
minoritárias:
"A heresia de Arimã [o diabo] e dos demônios que fragmentou o império. E judeus e budistas e hindus e nazarenos e cristãos e batistas e maniqueístas foram feridos no império, e os ídolos foram destruídos, e as moradas dos demônios transformadas em tronos e assentos para os deuses".
"A heresia de Arimã [o diabo] e dos demônios que fragmentou o império. E judeus e budistas e hindus e nazarenos e cristãos e batistas e maniqueístas foram feridos no império, e os ídolos foram destruídos, e as moradas dos demônios transformadas em tronos e assentos para os deuses".
Mas quem são, afinal de contas,
aqueles grupos religiosos que “foram feridos” pela perseguição? Os tradutores
discordam na hora de identificar alguns dos grupos citados. Há um consenso
geral no tocante aos budistas, hindus, maniqueístas e judeus, mas persistem
muitas controvérsias quanto aos grupos cristãos mencionados na inscrição.
Todos os estudiosos que abordaram
esta questão concordam que Kartir citou os cristãos (“kristen”), mas o texto
traz mais duas palavras que se referem a grupos de seguidores de Jesus Cristo:
“nasra” e “makdag”.
A primeira delas é comumente entendida como “nazarenos”, um
termo que, no contexto ocidental, se aplica muitas vezes aos cristãos de origem
judaica, ou, talvez, à seita dos ebionitas.
No Oriente, porém, esse termo pode
sugerir os ortodoxos ou crentes tradicionais. Este é o nome, por exemplo, que
os atuais cristãos perseguidos no Iraque dão a si mesmos. Curiosamente, pelo
menos para os nossos olhos, o termo “nazarenos” vem antes do termo
"cristãos" na listagem de Kartir.
Quanto aos "makdag",
trata-se do termo mais difícil de decifrar. A palavra poderia muito bem se
referir a seitas batismais judaico-cristãs, como a dos elcasaítas, e é assim
que muitos estudiosos a interpretam. No entanto, ainda que com menor
probabilidade, o termo também pode apontar para outro grupo, o dos gnósticos
não-cristãos mandeus, que sobrevivem no sul do Iraque.
Supomos que o termo
"cristãos" se refira ao cristianismo ortodoxo, aquele que estaria em
comunhão com Antioquia ou com Alexandria, mas isto não é necessariamente
verdadeiro.
Alguns estudiosos sugerem que, neste contexto, a palavra se aplica
aos marcionitas, cristãos que rejeitaram o Antigo Testamento e seu conceito de
Deus. Se for este o caso, então os cristãos ortodoxos seriam identificados por
outro termo, ou seja, “nazarenos”.
Uma pessoa poderia, portanto, ou
ser "cristã" ou acreditar no Antigo Testamento. Seria mais ou menos
como acontece em algumas partes da Ásia moderna, onde os forasteiros
desinformados estabelecem uma distinção nítida entre "cristãos" e
"católicos".
Vamos supor que Kartir estivesse
listando as minorias religiosas "ocidentais" do império, como judeus,
maniqueístas e três "variedades" de cristãos. Esses cristãos poderiam
ser, respectivamente, a população ortodoxa, os marcionitas e as seitas
batismais judaico-cristãs.
Dito de outra forma, no final do século III, dentro
do tempo de vida do futuro Constantino, o Grande, esta seria a taxonomia
familiar dos cristãos no mundo oriental, naquele vasto território situado a
partir da Síria rumo ao leste. Havia “cristãos”, “nazarenos” e “batistas”, com
nenhuma sugestão de que qualquer desses grupos fosse dominante em relação aos
demais.
É possível que a ordem da listagem queira dizer que Kartir via os maniqueístas como parte do continuum cristão maior. Mani, de fato, começou a sua “carreira” na seita batismal elcasaíta.
É possível que a ordem da listagem queira dizer que Kartir via os maniqueístas como parte do continuum cristão maior. Mani, de fato, começou a sua “carreira” na seita batismal elcasaíta.
Aos olhos ocidentais, porém, esta
listagem é estranha e surpreendente, por ser bem diferente daquilo que se
poderia esperar de uma fonte padrão, como a História da Igreja escrita por
Eusébio, por exemplo. É evidente que aqueles cristãos orientais tinham a sua
própria gama distintiva de controvérsias e divisões, que é fundamentalmente
diferente das preocupações que afetavam os cristãos do Egito ou da Itália.
O grande número de grupos
listados também é surpreendente. Kartir não faz nenhuma menção quantitativa, e,
com muita probabilidade, não tinha ideia do número real de adeptos de qualquer
dessas tradições.
A ordem em que ele lista as seitas pode ser ou não um indício
da sua quantidade de seguidores ou da sua capacidade de influência, mas é
interessante que ele comece com os judeus, grupo que, como sabemos, abundava na
Babilônia regida pelos persas.
Embora as seitas cristãs não ocupem o início da
lista, são citadas nada menos que três delas, o que sugere que os cristãos
tinham visibilidade suficiente para despertar o alarme real da religião de
estado da Pérsia.
É claro que a afirmação de Kartir
de que ele tinha "ferido" ou destruído esses grupos era simplesmente
falsa. Muitos cristãos foram deixados à mercê de perseguições dos persas em
séculos posteriores.
Ao contar essa história, é
evidente que eu não estou relatando nenhuma descoberta acadêmica, pois o caso
da listagem de Kartir é absolutamente familiar para o corpo de especialistas
altamente qualificados em assuntos persas e iranianos.
No entanto, acredito que
eu nunca tenha visto menção alguma a esta listagem na literatura ocidental
sobre a história do cristianismo primitivo ou sobre os movimentos que consideramos
heréticos. Pode ser apenas ignorância minha, e, neste caso, estou preparado
para ser corrigido.
Mesmo assim, tenho a impressão de
que este é mais um exemplo daquela rica história cristã oriental que nós não
estudamos simplesmente porque não aconteceu nos mapas que limitam a nossa
perspectiva geográfica ocidental. Nós negligenciamos, assim, por nossa conta e
risco, o fato de que havia naqueles tempos, assim como há também hoje, todo um
peculiar universo cristão no outro lado do mundo.
Fonte: http://www.aleteia.org
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