Em defesa da blasfémia – Por Francisco Teixeira
A questão da blasfémia é mais
central do que pode parecer.
Poder blasfemar e isso ser legal é assumir que os
limites do real, aquilo que é divino e não pode ser tocado, afinal podem ser
empurrados para trás e desse modo permitir ampliar os limites do que é ser
humano.
Temos, então, se queremos que o humano seja mais que uma cristalização
logo no início, que nos define e definiu para todo o sempre, de insultar os
deuses, as religiões e a sua pretensão de definição totalitária e absoluta. E
sim senhor, a coisa não vai lá com proposições bem-educadas e trocas
argumentativas de tipo académico. Sem uma ampla iconoclastia as religiões
definem-nos para todo o sempre e não passaremos, para todo o sempre, de anjos
de cera, a amarelecer no altar.
Basta uma relativamente simples
análise histórica para perceber que a liberdade sempre se fez no confronto com
o religioso, o divino e as igrejas.
Foi esse confronto, ganho, pelo menos desde
1789, pelos democratas e liberais, que permitiu que as igrejas deixassem de ser
a medida das consciências individuais e da própria ideia de religioso.
Bem
entendido, não há pensamento sem mediação e algum tipo de relação comunitária
sempre terá que existir para que se possa pensar. Mas o fim do comunitarismo
religioso obrigatório foi, é, uma condição necessária da liberdade. Se eu não
puder imaginar outro Mundo, sem constrangimentos dogmáticos, nada é possível a
que ainda se possa chamar humano.
Se a blasfémia é dolorosa e
tensa? Sim, claro que é. Porque a democracia é, por natureza, agónica e,
portanto, tensional. Uma democracia de eterna primavera, sempre de céu azul e
sem espirros ou constipações não é mais que uma democracia dietética, um
fascismo suave, uma república do respeitinho e da higienização.
Precisamos, pois, de produtos com
sal a mais, gordura a mais, sabores intensos e poderosos, paixões assolapadas e
perdidas, que destranquem o humano e o real das naturalizações divinas e
sacramentais.
Que, porém, seja o Papa Francisco
a defender a proibição, e até a violência, contra a blasfémia, não nos deve
surpreender. Francisco é um dos papas socialmente mais progressistas da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR),
aprofundando vertiginosamente a doutrina social da Igreja.
Mas nem Francisco é
capaz de romper com dois mil anos de intolerância e medo da liberdade. Se todos
são assim e pensam assim, na ICAR? Claro que não. Por isso mesmo é que a ICAR
ainda é uma religião e não apenas uma máquina de obediência.
Francisco Teixeira - Professor
de Filosofia
Fonte: http://www.jn.pt
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