Cristo Redentor fere espírito da Constituição, diz parecer de 1921 - Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
No início da década de 1920, o
então Consultor-Geral da República respondeu consulta a propósito de projeto
referente à construção de um monumento ao Cristo Redentor, no alto do
Corcovado.
Registra-se que houve, à época, alguma dúvida sobre a
constitucionalidade da iniciativa. O Consultor-Geral da República opinou pela
impossibilidade de se erguer o referido monumento, que significaria resistência
ao Estado laico.
O Governo não ouviu a opinião do Consultor-Geral. O monumento
foi erguido. E hoje é símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Segue o parecer.
Gabinete do Consultor-Geral da
República — Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1921.
Excelentíssimo Senhor Ministro de
Estado dos Negócios da Fazenda — Com o Ofício, sem número, de 6 do corrente,
submeteu Vossa Excelência a meu estudo o processo relativo ao requerimento da
Comissão que pretende erigir um “Monumento a Jesus Cristo Redentor” no alto do
Corcovado.
Parece-me, Senhor Ministro, que
há evidente embaraço constitucional para o deferimento do pedido. O Cristo é o
símbolo de uma religião. O Poder Judiciário já aqui o reconheceu quando, em
consequência dos incidentes de 1892, teve de se pronunciar sobre a legalidade
da permanência de sua imagem nas salas do Júri. O caso foi que, negado o pedido
de retirada dessa imagem feito por um jurado não católico, foi um dia essa
imagem destruída por outro jurado violento e fanático.
Eu mesmo tive de me pronunciar a
respeito, por isso que, sendo então Procurador da República neste Distrito, foi-me
o inquérito remetido para a instauração do processo pela Justiça Federal e eu
deixei de oferecer denúncia por entender que o caso não incidia no art. 111 do
Código Penal, em que havia sido capitulado, por me parecer contraria à
Constituição a ordem para permanência de símbolos religiosos no Júri. Em meu
despacho, que foi longo, eu escrevi estas palavras que podem ter aplicação ao
caso atual:
Os publicistas que mais
competentemente têm estudado a questão oferecem muitos bons argumentos mesmo
para provar que fato algum fora dos templos ou dos lugares reservados ao culto
se deve permitir, porque esses fatos, mesmo quando o culto seja o da grande
maioria da população, ofendem e oprimem a consciência da minoria, e em matéria
de consciência não pode prevalecer o direito da maioria, que é a força do
número, porque as questões de consciência são questões essencialmente
individuais.
Definido meu modo de ver, o caso,
entretanto, não morreu com essa minha promoção, pois que os promotores públicos
de então promoveram o processo perante a justiça local, onde, aliás, o meu modo
de ver foi sancionado, pois que, denunciados os figurantes no caso, um como
mandante ou inspirador do inqualificável procedimento do outro, foi o delito
desclassificado do art. 111, porque se julgou que a ordem para colocação do
Cristo no Júri “não era conforme a Constituição e as Leis”. Essa decisão foi
proferida pelo Conselho Supremo da Corte de Apelação concedendo habeas corpus
ao jurado processado como mandante e preso preventivamente, e mais tarde o
mesmo princípio foi sustentado pelo despacho de pronúncia do autor do atentado,
não nesse artigo, pelo mesmo fundamento da decisão do Conselho, mas no art. 185
que se refere a “ultraje à confissão religiosa, desacato ou profanação de seus
símbolos, publicamente”.
Parece que esse caso pode ser
considerado como precedente em relação ao caso atual. Considerado o Cristo como
símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação
num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e
inalienável (Código Civil, art. 66, nº I, e 67). O Estado é leigo. A
Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto “relações de
dependência ou aliança ou conceder-lhe subvenção oficial”. Bem certo o
deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num
logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos
constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu
espírito porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício
de uma Igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos
seus símbolos mais significativos.
É este, Senhor Ministro, o
parecer que submeto ao critério superior de Vossa Excelência a quem, devolvendo
os papéis, tenho a honra de reiterar meus protestos de elevada estima e
distinta consideração.
Rodrigo Octavio
Fonte: http://www.conjur.com.br
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