Violência em nome de Buda - Por Dandara Tinoco
Onda de refugiados gerada por
extremistas de religião pacifista em Mianmar surpreende planeta.
Abandonados em barcos sem rumo,
membros de uma minoria muçulmana expulsa de Mianmar por monges radicais são
personagens centrais de uma crise humanitária que põe à deriva também a
convicção do senso comum de que o budismo está sempre associado ao pacifismo.
Milhares de homens, mulheres e crianças rohingyas teriam sido impelidos para o
alto-mar, e carregados por meses em barcos de pesca, com pouca comida ou água,
sobretudo por um conflito ligado à ascensão do extremismo budista no país do
Sudeste Asiático.
O conflito põe em evidência recentes trabalhos acadêmicos que
estudam a violência no budismo. Especialistas avaliam que, embora tradicionais
textos da religião preguem a não violência, o uso da agressividade por grupos
de monges é bem mais frequente do que poderiam prever os ensinamentos de Buda.
Adeptos de distintas linhas praticadas no Brasil, por sua vez, reafirmam o
valor da tolerância.
“Trata-se mais de propaganda que
o budismo é relacionado ao pacifismo. A mídia ocidental e Hollywood têm nos alimentado
de uma imagem tranquila de um “budismo kung-fu”, mas, na realidade, o budismo é
tão propenso à corrupção como qualquer outra religião. Monges budistas atuais
estão longe dos ensinamentos de Buda, que pregam a igualdade e a não violência”,
dispara Sufyan bin Uzayr, escritor especialista em assuntos estrangeiros e
autor do blog "Political Periscope", em que publicou texto sobre o
assunto.
Para Uzayr, a principal causa da
eclosão do atual embate é a emergência de um discurso a favor de uma pretensa pureza
racial.
“Eles (extremistas de Mianmar)
sequer chamam o rohingya de "rohingya", mas de "bengalês",
alegando que deveriam se mudar para Bangladesh e deixar Mianmar. Muitos monges
birmaneses pensam que o país pertence somente a eles. Outra causa (do conflito)
são as falsas fronteiras que foram desenhadas pelos colonialistas britânicos.
Os estados de Arakan, Rakhine e outros deveriam ter sido declarados
independentes, mas foram fundidos à Birmânia (antigo nome de Mianmar)", opina.
Ele acrescenta que o governo do
país, em que os budistas chegam a 90% da população e há mais de 500 mil monges,
legitimou a ação de extremistas ao aprovar leis que proibiram membros da
minoria muçulmana de terem filhos sem a permissão do Estado e que lhes negaram
o direito a educação e saúde. Uma petição assinada por 1,3 milhão de pessoas
pregaria a eliminação dos muçulmanos no país.
Frank Usarski, professor de
Ciências da Religião da PUC-SP, reforça que é crescente o número de pesquisas
sobre violência e budismo:
“Esses estudos relativizam a
imagem do budismo como ultrapacifista. A ideia principal que prega é a não
violência, mas a religião é praticada por seres humanos e já estamos três mil
anos depois de Buda”.
Como exemplo recente ele cita a
apropriação de argumentos religiosos na Guerra Civil do Sri Lanka, iniciada na
década de 1980. Ao reagir contra os Tigres Tâmeis, organização separatista que
lutava pela independência de um território da minoria étnica tâmil, parte da
maioria budista cingalesa adotou o discurso da manutenção de uma suposta
autenticidade do budismo no país, atacando hindus e muçulmanos.
O professor
explica que crônicas dos séculos V e VI que falam sobre o recurso a ações
bélicas para manter a pureza da religião foram usadas por monges radicais como
argumento para convencer leigos. A guerra civil terminou em 2009 com a derrota
dos separatistas, mas os ataques de extremistas budistas aos muçulmanos
continuam.
O caso cingalês pode ter
influência no radicalismo de Mianmar, uma vez que alianças internacionais
estavam entre as propostas do grupo, continua. Sobre os últimos embates em
Mianmar, Usarski diz que motivações econômicas e sociais (Mianmar passou por
uma transição política de 2011), além do fortalecimento de um discurso global
anti-Islã, são ingredientes importantes na eclosão dos conflitos. Em meio a
esse cenário, ele destaca a criação do Movimento 969, fundado pelo monge
radical Ashin Wirathu, que se autointitula "Bin Laden birmanês".
“Eles alegam que temem que o
budismo, religião nacional em Mianmar, está correndo riscos. Essa retórica faz
sucesso na população de leigos que já têm uma convivência problemática com
muçulmanos, por outras razões, como as econômicas”, elucida, enfatizando,
porém, que há resistência a esses grupos mesmo entre budistas. “Religião alguma
é totalmente pacifista. Há sempre tradições ambíguas dentro dos seus repertórios".
Budistas brasileiros rechaçam a
violência do grupo birmanês. Mesmo adeptos de escolas predominantes em Sri
Lanka e Mianmar, como a Sociedade Budista do Brasil, alinhada à teravada, dizem
discordar do radicalismo.
“Toda religião tem extremismos,
mas, no caso do budismo, isso é totalmente contra a doutrina, que prega a não
raiva, a não provocação. Esses extremistas podem ser budistas de carteirinha,
mas duvido que se sentem, pratiquem a meditação e revisem suas mentes”, afirma
José Arlindo Bezerra, membro da sociedade.
Consultor da Associação Brasil
Soka Gakkai Internacional, organização ligada ao budismo japonês nitiren, Pedro
Paulo da Silva afirma que, em todas as ramificações da religião, o ensinamento
é de não perseguição e tolerância.
“Casos como esse são
manifestações da escuridão fundamental que todo ser humano tem. Mas, o que o
budismo prega é que todos devem revelar seu potencial positivo”, argumenta,
contando que violência praticada por monges no exterior costuma ser seguida de
perguntas de curiosos "É esse o grupo ao qual você pertence?". “Explico
que o fundamento do budismo nitiren é o respeito à dignidade humana".
O monge Jyunsho Yoshikawa, do
chamado budismo primordial, faz eco: “Isso que estão praticando não é
budismo. O ensinamento da religião é que a iluminação é para todos,
independentemente de religião, raça, orientação sexual. Através da prática, é
possível ter equilíbrio. Essas pessoas estão escolhendo outros caminhos”.
O budismo militante
Mianmar: Desde a década de
1990, o Movimento 969 e o Exército Democrático Budista dos Karen realizaram uma
onda de ataques terroristas anti-islâmicos, que resulta na perseguição à
minoria muçulmana rohingya. O governo, que não reconhece o grupo como minoria,
é acusado de estimular os ataques.
Sri Lanka: Desde a guerra
civil, entre 1983 e 2009, monges estimulam a luta contra os separatistas da
etnia tâmil. Nos últimos anos, o grupo nacionalista budista Bodu Bala Sena tem
realizado ataques a capelas cristãs e a propriedades de muçulmanos. O governo
também é usado para destruir templos, inclusive hindus e mesquitas.
Tailândia: Nos anos 1970,
durante a Guerra do Vietnã, grupos de monges budistas defendiam que matar
comunistas não violava os preceitos da religião. Em 2004, o movimento budista
militante voltou a ganhar força com a insurgência islâmica no Sul do país, onde
os muçulmanos são maioria. O governo transformou monastérios em postos
militares e incentivou a criação de milícias budistas.
Butão: Até 2008, o governo
butanês restringia a construção de templos não budistas e a entrada de
missionários estrangeiros. Desde o começo dos anos 1990, mais de cem mil
pessoas da minoria hindu foram expulsas para o Nepal e a Índia, devido a uma
limpeza étnica promovida pelo governo.
Japão: Guerreiros budistas
existem no Japão desde o período Heian (794-1185). Durante o século XX,
instituições zen budistas legitimaram o militarismo expansionista do país tanto
na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) como na Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Mais tarde, várias pediram desculpas pelo papel que desempenharam.
Tibete: Tensões
entre os nativos tibetanos, que professam o budismo, e os membros de outras
etnias, sobretudo os hui muçulmanos, têm levado a confrontos. Em 2012, uma
multidão de cerca de 200 monges surrou um grupo de huis, em retaliação ao
pedido da minoria de construção de uma mesquita.
Fonte: http://oglobo.globo.com
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