‘A partir de d. Paulo mudou tudo’, diz Frei Betto sobre apoio da Igreja ao golpe – Por Ricardo Galhardo e Gisele Silva
O religioso, um dos principais
nomes na luta contra a ditadura, conta que foi o arcebispo quem levantou a
bandeira em defesa dos direitos humanos após as denúncias de torturas.
No primeiro momento, a Igreja
Católica e outras organizações religiosas apoiaram o golpe militar de 1964.
Alguns religiosos, como o então cardeal de São Paulo d. Agnelo Rossi, chegaram
a encobrir torturas e outras atrocidades.
Foi só com o passar do tempo, o
surgimento de denúncias rotineiras sobre desrespeitos aos direitos humanos e a
caracterização cada vez mais clara do regime como uma ditadura, que a Igreja
mudou de lado e passou a ser um dos pilares na defesa da democracia. A opinião
é do escritor Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, testemunha e
personagem desta história.
Durante a conversa com o iG na
sala de música do convento dos dominicanos, um oásis de árvores e passarinhos
encravado no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, Frei Betto disse que a
situação mudou a partir da intervenção direta do papa Paulo VI, que substituiu
d. Rossi por d. Paulo Evaristo Arns. “A partir de d. Paulo mudou tudo”,
afirmou.
iG - Em vários momentos a Igreja
Católica e outras organizações religiosas ajudaram no combate à ditadura
militar. Havia uma articulação entre elas?
Frei Betto – Na verdade,
quando houve o golpe em 1964 a Igreja Católica, através da CNBB, apoiou
agradecendo a Nossa Senhora Aparecida ter livrado o Brasil da ameaça comunista.
Ocorre que setores da Igreja, em especial a JUC (Juventude Universitária
Católica) da qual eu era dirigente e a JEC (Juventude Estudantil Católica), que
faziam parte da Ação Católica, estavam muito identificados com a esquerda e
contra a ditadura. Eles já haviam inclusive dado origem a um dos grupos de
esquerda duramente reprimidos, a Ação Popular, da qual Betinho (o sociólogo
Herbert Souza, morto em 1997) foi um dos fundadores.
Então a repressão, que no
início ficou muito confortável com o apoio da CNBB, passou a achar que a Igreja
fazia jogo duplo. Porque ela fazia um discurso de apoio aos militares, mas na
prática estava contra. Para vocês terem uma ideia, nós da JUC e JEC morávamos
juntos no Rio de Janeiro e fomos presos no dia 6 de junho de 1964, isso tudo eu
descrevo no livro “Batismo de Sangue”.
E porque fomos presos? Havíamos feito
algum movimento contra a ditadura? Não. Fomos presos na chamada noite do
arrastão da Ação Popular. Para o Cenimar (órgão de inteligência da Marinha),
Ação Católica e Ação Popular eram a mesma coisa. Ficamos 15 dias presos. Não
houve processo nem nada.
iG – Como a Igreja reagiu a isso?
FB - Aí começou aquilo que
aos olhos da ditadura era jogo duplo e com atitudes de bispos progressistas
cada vez mais críticos à repressão na medida em que ela vai crescendo. A partir
daí muitos bispos, com destaque para a atuação de d. Helder Câmara, começam a
defender as vítimas e vai se alargando o fosso entre a Igreja Católica e a
ditadura. Isso também acontecia em menor escala com outras Igrejas.
E o caldo
entornou com a prisão nossa, dos dominicanos, em 1969, e o assassinato do padre
Henrique Pereira Neto, da pastoral da juventude do Recife. Ele foi torturado,
assassinado e jogado no campus universitário. E nós torturados, Frei Tito
massacrado, depois veio a morrer em consequência disso.
iG – O apoio continuou quando
surgiram as denúncias de tortura?
FB - Tínhamos algumas
figuras de proeminência na Igreja Católica como o cardeal Vicente Scherer no
Rio Grande do Sul e o cardeal Agnelo Rossi aqui em São Paulo do lado da
ditadura, dizendo que não havia tortura.
Tanto que quando o Rossi foi nos
visitar no Dops ele nos viu todos quebrados, nós dissemos que havíamos sido
torturados, o delegado disse “não eminência, eles caíram da escada” e o Rossi
saiu do Dops e disse à imprensa que não houve tortura.
iG – Houve participação do
Vaticano na mudança de postura da Igreja brasileira?
FB - Roma nos apoiou na
figura do o cardeal Agostinho Casarolli, segundo na hierarquia do Vaticano.
Portanto, o papa Paulo VI nos apoiou. O governo geral dos dominicanos em Roma
também nos apoiou e quando o papa ficou sabendo do episódio no Dops decidiu
tirar o d. Rossi de São Paulo com aquele esquema que a Igreja usa de promover
para remover. O papa pediu para o cardeal Rossi ir a Roma e então aconteceu um
episódio folclórico.
O Rossi ficou hospedado no mesmo lugar onde sempre ficam
os brasileiros, chamado Pio Brasileiro, e celebrou uma missa dizendo no sermão
que no Brasil não havia tortura, que tudo era uma campanha comunista. Em
seguida, depois do sermão, na oração dos fiéis, os seminaristas brasileiros
começaram a dizer “rezemos por fulano, assassinado pela polícia nas ruas de São
Paulo segundo o ‘Observatório Romano’, rezemos pela sicrana que foi muito
torturada segundo a ‘Rádio Vaticana’”, etc.
Eles acabaram com o Rossi, pois as
fontes eram os próprios veículos de imprensa do Vaticano. Quando Rossi voltou
para São Paulo na chegada ao aeroporto foi comunicado por jornalistas sobre sua
demissão e que d. Paulo Evaristo Arns, que era auxiliar dele, era o novo
arcebispo. E a partir de d. Paulo mudou tudo.
iG - As tensões diminuíram?
FB - Não. Se agravaram
porque d. Paulo bateu de frente com a ditadura todo o tempo. Foi ele quem
fundou o grupo Clamor, a Comissão de Justiça e Paz, o Brasil Nunca Mais. Uma
série de instrumentos que ele foi criando para defesa dos direitos humanos. E
assim a Igreja foi se afastando até o ponto de emitir notas contra a ditadura.
iG – A preocupação com os
direitos humanos ficou acima das ideologias políticas?
FB - Tinha um padre da TFP
(Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) que nos
visitava e não acreditava na existência de tortura até o dia em que viu o Frei
Tito chegar do DOI-Codi todo arrebentado. O padre entrou em parafuso porque era
um homem honesto.
iG – A ditadura tentou impedir a
ação da Igreja?
Frei Betto conta que d. Paulo
bateu de frente com a ditadura 'todo o tempo' e denunciou as violações
FB - Proibiram que
estrangeiros nos visitassem porque nós, os dominicanos, éramos a caixa de
ressonância mais forte na Europa sobre os arbítrios da ditadura. Nós tínhamos a
Igreja por trás. Ninguém na esquerda tinha algo parecido. Tanto que nos
separaram. Ficamos dois anos como presos políticos e os dois últimos anos como
presos comuns. Fomos parar no Carandiru e depois em Presidente Venceslau.
Depois da proibição aos estrangeiros o bispo de Lins foi nos visitar no
presídio Tiradentes com o cardeal holandês Bernardus Alfrink, um dos mais
progressistas da Igreja. Sabendo da proibição aos estrangeiros o bispo falou
que o cardeal era seu sacristão.
O cardeal então nos entrevistou, anotou tudo,
na mesma noite embarcou para a Holanda e ao chegar a Amsterdam toda a imprensa
já estava convocada para uma coletiva na qual foi tudo denunciado. E assim a
posição das igrejas foi mudando até chegar ao ápice com o livro Tortura Nunca
Mais (com mais de mil relatos colhidos clandestinamente entre 1979 e 1985 com
apoio de d. Paulo, o rabino judeu Henry Sobel e o pastor protestante Jamie
Wright).
iG – O cerco maior foi em torno
dos dominicanos?
FB – Não só. Temos o caso
dos padres franceses, a tentativa de assassinar d. Pedro Casaldáliga e aí eles
mataram um outro padre jesuíta lá em Rio Bonito. Havia uma festa, dom Pedro
estava com roupas normais e o padre vestido de clérigo. Acharam que o padre era
o bispo e o mataram. Teve muitos outros episódios que foram tão fortes quanto o
nosso.
iG – Havia algum respeito dos
militares pelo fato de vocês serem da Igreja?
FB – Não. De jeito nenhum.
Ao contrário. Por que o Frei Tito morreu em função da tortura? Nossa prisão foi
igual à dos demais. A repercussão foi muito grande.
Saiu na imprensa do mundo
todo. O que aconteceu foi que quando a ditadura se deu conta da repercussão ela
percebeu que não tinha sustança para justificar a violência com que fomos
presos e decidiu que nós tínhamos que assinar um documento assumindo que
havíamos participado de operações armadas.
O primeiro a ser retirado do
presídio Tiradentes para assinar o documento foi o Frei Tito. Ele não assinou,
foi três dias torturado dia e noite até o ponto em que ou ele cedia ou morria.
Então ele cortou o pulso com uma lata e com isso impediu que os demais
passassem pela mesma coisa. Mas a partir daí ele ficou todo quebrado psicologicamente.
Isso teve uma repercussão imensa. A revista Look deu ao Frei Tito o prêmio de
melhor matéria do ano de 1971.
iG – O papel da Igreja na luta
contra a ditadura no Brasil estava dentro do contexto da América Latina?
FB – Sim. As histórias se
repetem em alguns países. Mas na Argentina, por exemplo, foi o contrário. Lá a
Igreja apoiou oficialmente a ditadura. Embora padres e bispos tenham ido
contra, a conferência episcopal apoiou a ditadura até o fim ao ponto de nomear
capelães que participaram de sessões de tortura e dos voos da morte. Mas em
geral a Igreja da América Latina foi contra as ditaduras.
iG – A Igreja ajudava a
conscientizar os fiéis sobre as arbitrariedades do regime?
FB – No primeiro momento, a
Igreja foi totalmente a favor da ditadura. Chegaram a permitir a vinda do padre
Patrick Peyton, americano, que era agente da CIA e promoveu aquelas marchas da
família com Deus pela liberdade usando a imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Depois a Igreja foi recuando e se tornando crítica.
Aqui na nossa igreja, por
exemplo, a missa aos domingos lotava porque o sermão feito pelo Frei Chico era
sempre crítico à ditadura. Ele tinha o cuidado de mimeografar para distribuir
na saída.
Tinha gente até na calçada de uma igreja em que cabem 800 pessoas
sentadas. Não era por fé. Ali era um espaço onde se respirava liberdade.
Enquanto isso ocorria um outro fenômeno que eram as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) crescendo por baixo, sem chamar atenção da repressão.
E elas são a
sementeira de todo movimento social que veio depois. Hoje é difícil encontrar
um político de extração popular que não tenha origem nas CEBs. O Lula é uma
exceção.
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