Teologia: A fé que busca sua inteligência – Por Maria Clara Bingemer*
Não, não é por dever de ofício
que defendo a importância da teologia.
Não se trata do fato de
haver sido conquistada há muitos anos pelo amor que me inspirava quando via no
cerne do momento histórico brasileiro – feito de cinzas e chumbo - minha Igreja
de inspirada profecia.
Não, não é por vício intelectual de quem não se
apercebe dos problemas simples da humana sensibilidade.
Sucede que creio na importância
do diálogo entre a fé e a razão. Acontece que não acredito em crença ou
religião que, à força de afastar-se da reflexão, desvertebra-se e definha em
magra moral e atrofiada doutrina.
Veja o leitor, acredito na centelha que o
Criador acende nas mentes humanas, as quais a partir daí são convidadas a
decifrar os enigmas da natureza, produzir sínteses articuladas e, também e não
menos, buscar respeitosa e reverentemente penetrar nos mistérios da
Transcendência que se desvelam provocando razão e coração. E acredito que a
experiência do mistério ao qual chamamos Deus pode e deve ser conhecido também
com a razão.
Toda essa apologia da sacra
ciência à qual me dedico por décadas, na docência e na pesquisa, surgem-me da
continuada reflexão sobre os recentes dados do Censo de 2010 a respeito da
religião no Brasil. Como tantos, encontro-me perplexa com a imensa
diminuição dos fiéis das fileiras católicas e protestantes históricas. Mais
ainda, quando o êxodo se dá em direção às comunidades evangélicas de corte
pentecostal.
O perfil das mesmas é conhecido:
muitos cantos, manifestações exteriores afetivas e catárticas, línguas que se
desatam proferindo discursos incompreensíveis, liturgias ruidosas.
Aparece pouco ou quase nada o silêncio, a reflexão, a interioridade e a
atenção ao caminho que a Palavra e o Espírito realizam em cada um e na comunidade
reunida.
As análises são taxativas.
O povo brasileiro e sobretudo os jovens desejam experiências religiosas
mais afetivas. Há toda uma reconstrução da identidade religiosa em marcha,
feita de pluralidade, múltipla pertença e mobilidade. Parece que o
discurso religioso unívoco e unilateral encontra sérias dificuldades em
fazer-se ouvir em uma sociedade tão movediça como a brasileira.
Creio, no entanto, que estamos
nos esquecendo de algo importante. Nos anos 1980, quando a produção
teológica era pujante, vivendo ainda das vigorosas relíquias do Concílio
Vaticano II, o cristianismo histórico encontrava cidadania mais forte em meio à
secularidade e à pluralidade que já fazia sentir sua presença.
A perda de
espaço e de fiéis das igrejas históricas coincidiu com uma perda da existência
de um discurso teológico articulado, que enfrente as questões da sociedade e da
Igreja, pensando-as à luz da fé e articulando-as em coerente discurso.
Por isso é que, desde dentro de
uma pertença católica herdada ao nascer e abraçada continuamente, sempre de
novo, ao longo desta já longa vida; humildemente perplexa como tantos ao
procurar ler e entender os dados do Censo, eu diria que há um passo a mais que
talvez seja importante para entender a queda dos números.
O cristianismo
histórico tem que recuperar sua vocação pensante! Há que pensar a própria
experiência e a própria fé. Pensá-la em diálogo e com o auxílio das diferentes
formas da cultura, da arte e de tudo que o gênio humano produziu em sua
historia. Pensá-la diante dos grandes desafios globais que hoje a sociedade
lança aos que lutam por um novo mundo possível.
Pensá-la diante da fome e
sede de nossos contemporâneos que desejam e esperam sínteses
plausíveis e razoáveis da enorme fragmentação em que nos encontramos
mergulhados.
Os mais de 2000 anos de
cristianismo histórico tiveram isso muito claro por longo tempo. Assim,
formaram e forjaram uma matriz cultural que configurou esta metade do mundo
chamada Ocidente. Houve pecados pelo caminho, como o de não valorizar ou
dialogar com as culturas autóctones, não incluir ou integrar outras culturas
mais longínquas e outras religiões.
Porém, isso prova mais fortemente
ainda que religião sem cultura simplesmente não existe. A fé – especialmente a
fé cristã – sempre encontrou seu meio de expressão e crescimento nas culturas
onde entrou. E quando digo cultura, digo também aquele movimento que faz
o ser humano refletir sobre suas experiências, esforçar-se para compreendê-las,
buscar e encontrar um quadro de referência onde situá-las e apropriar-se delas.
Só assim poderá transmiti-las a outros e outras de forma atraente e plausível.
Dá-me a impressão de que entre o
que faz as novas gerações afastarem-se do catolicismo está, além do desejo às
vezes frustrado por uma experiência espiritual profunda, a assustadora lacuna
de uma reflexão consistente e vigorosa sobre os conteúdos desta experiência.
A inteligência da fé, também chamada Teologia, encontra-se aí
poderosamente convocada a elaborar um discurso que tenha algo a dizer nesta
situação. Oxalá esteja à altura deste chamado!
Fonte: http://www.jb.com.br
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia
da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed.
Rocco). -mhpal@terra.com.br
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