São Jorge e o dragão: os dois lados do ser humano – Por Leonardo Boff*
Toda religião, também o
cristianismo, possui muitas valências. Além de se centralizar em Deus, elabora
narrativas sobre o drama paradoxal do ser humano, gerando sentido, uma
interpretação da realidade, da história e do mundo.
Exemplar é a lenda de São Jorge e
o combate feroz com o dragão narrada no artigo anterior. Primeiramente, o
dragão é dragão, portanto, uma serpente. Mas é apresentada alada, com enorme
boca que emite fogo e fumaça e um cheiro mortífero. É um dragão simbólico.
No Ocidente, representa o mal e o
mundo ameaçador das sombras. No Oriente, é positivo, símbolo nacional da China,
senhor das águas e da fertilidade (long). Entre os astecas era a serpente alada
(Quezalcoatl), símbolo positivo de sua cultura. Para nós, ocidentais, o dragão
é sempre terrível e representa a ameaça à vida ou as dificuldades duras da
sobrevivência. Os pobres dizem: “Tenho que matar um dragão por dia, tal é a
luta pela sobrevivência”.
Mas o dragão, como o mostrou a
tradição psicanalítica de C. G. Jung com Erich Neumann, James Hillmann, Etienne
Perrot e outros, representa um dos arquétipos (elementos estruturais do
inconsciente coletivo ou imagens primordiais que estruturam a psique) mais
ancestrais e transculturais da humanidade.
Junto com o dragão sempre vem o
cavaleiro heroico, que com ele se confronta numa luta feroz. Que significam
essas duas figuras? À luz de categorias de C. G. Jung e discípulos,
especialmente de Erich Neumann, que estudou especificamente este arquétipo (A
história da origem da consciência, Cultrix, 1990), e da psicoterapia
existencial-humanística de Kirk J. Schneider (O eu paradoxal, Vozes, 1993),
procuremos entender o que está em jogo nesse confronto. Ele ensina e nos
desafia.
O caminho da evolução leva a
humanidade do inconsciente para o consciente, da fusão cósmica com o Todo
(Uroboros) para a emergência da autonomia do ego. Essa passagem é dramática,
nunca totalmente realizada; por isso, o ego deve continuamente retomá-la caso
queira gozar de liberdade e vencer na vida.
Mas importa reconhecer que o
dragão amedrontador e o cavaleiro heroico são duas dimensões do mesmo ser
humano. O dragão em nós é o nosso universo ancestral, obscuro, nossas sombras
de onde imergimos para a luz da razão e da independência do ego. Por isso que
em algumas iconografias, especialmente uma da Catalunha (é seu patrono), o
dragão aparece envolvendo todo o corpo do cavaleiro. Numa gravura de Rogério
Fernandes (com.br) o dragão aparece envolvendo o corpo de São Jorge, que o
segura pelo braço e tendo o rosto, nada ameaçador na altura do de São Jorge. É
um dragão humanizado formando uma unidade com São Jorge. Noutras (no Google há
25 páginas de gravuras de São Jorge com o dragão), o dragão aparece como um animal
domesticado sobre o qual São Jorge de pé o conduz, sereno, não com a lança, mas
com um bastão.
A atividade do herói, no caso de
São Jorge, na sua luta com o dragão, mostra a força do ego, corajoso, iluminado
e que se firma e conquista autonomia, mas sempre em tensão com a dimensão
escura do dragão. Eles convivem, mas o dragão não consegue dominar o ego.
Diz Neumann: ”A atividade da
consciência é heroica quando o ego assume e realiza por si mesmo a luta
arquetípica com o dragão do inconsciente, levando-a a uma síntese bem sucedida”
(Op.cit., pág. 244), A pessoa que fez esta travessia não renega o dragão, mas o
mantém domesticado e integrado como seu lado de sombra. Por esta razão, em
muitas narrativas, São Jorge não mata o dragão. Apenas o domestica e o reinsere
no seu lugar deixando de ser ameaçador. Aí surge a síntese feliz dos opostos; o
eu paradoxal encontrou seu equilíbrio, pois alcançou a harmonização do ego com
o dragão, do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra, da razão com a
paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte e com a religião.
A confrontação com as oposições e
a busca da síntese constitui a característica de personalidades amadurecidas,
que integraram a dimensão de sombra e de luz. Assim o vemos em Buda, Francisco
de Assis, Jesus, Gandhi e Luther King.
Os cariocas têm grande veneração
por São Jorge, mais do que por São Sebastião, patrono oficial da cidade. Mas
este é um guerreiro, cheio de flechas, portanto “vencido”. O povo sente
necessidade de um santo guerreiro, corajoso, que vence as adversidades. Aí São
Jorge representa o santo ideal.
Por certo, aqueles que veneram
São Jorge diante do dragão não saibam nada disso. Não importa. Seu inconsciente
sabe; ele ativa e realiza neles sua obra: a vontade de lutar, de se afirmar
como egos autônomos que enfrentam e integram as dificuldades (os dragões)
dentro de um projeto positivo de vida (São Jorge, herói vitorioso). E saem
fortalecidos para a luta da vida.
* Leonardo Boff, teólogo e
escritor, coordenou a publicação da obra completa de C. G. Jung junto à Editora
Vozes.
Fonte: http://www.jb.com.br
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