Deus e o diabo no teatro político – Por Gaudêncio Torquato
No Estado-espetáculo até Deus é
usado como bengala de apoio aos representantes políticos. O ditador Francisco
Franco, que governou a Espanha de 1939 a 1975, usava a Providência Divina para
afirmar sua legitimidade:
"Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa
pátria para que a governemos". Não satisfeito, mandou cunhar nas moedas
"caudilho pela graça de Deus". Idi Amin Dada, o cabo que se tornou
marechal em Uganda, sanguinário e paspalhão, dizia ao povo que falava com Deus
nos sonhos. Um dia deparou com a pergunta de um jornalista: "O senhor tem
com frequência esses sonhos? Conversa muito com Deus?" Lacônico, o cara de
pau respondeu: "Sempre que necessário".
A História é cheia de casos
de atores políticos que organizam o próprio culto, ornando sua aura com
atributos divinos. Nietzsche chegou a proclamar: "A apoteose da aventura
humana é a glorificação do homem-Deus".
Mas o diabo também é avocado como
protagonista do teatro da política fosforescente. A desastrada declaração do
deputado pastor Marco Feliciano (PSC-SP) de que antes de presidir a Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados ela era dominada por
Satanás comprova a tese.
Nos últimos tempos, pelas nossas
bandas, impulsionados por uma onda midiática que entra nas noites e madrugadas
construindo um novo pentecostalismo, bispos, pastores e apóstolos não medem
esforços para organizar exércitos do bem para enfrentarem as forças do mal. Do
alto de uma montanha de dízimos, os comandantes da guerra contra as trevas
estruturam impérios religiosos, ganham concessões do Estado (para execrar,
frequentemente, o próprio Estado), locupletam cofres, organizam partidos e
aumentam a fatia política com bancadas cada vez mais gordas. A expressão
radical torna-se a arma de combate e de engajamento de milícias. Já a defesa de
posições conservadoras funciona como escudo. A índole discriminatória explode.
Essa é a composição que explica o imbróglio envolvendo o novo presidente
daquela comissão.
Flagrado postando mensagens
homofóbicas e racistas nas redes sociais, Feliciano arremata, em inflamado
sermão, que "pela primeira vez na História desse país um pastor cheio de
espírito santo" conquistou espaço dominado pelas tropas de Belzebu.
Destemperado, o deputado jogou no fogo do inferno companheiros que já
comandaram aquele território "satânico". E assim comete um pecado
ético, deixando transparecer a ruptura do princípio republicano que estabelece
a separação entre igreja e Estado. É evidente que o verbo messiânico tenta
desenhar a figura de um "herói" sob proteção divina. Maquiavelismo. A
linguagem cortante, claro, resultará em bacia cheia de votos em 2014.
Atente-se para o espírito do
nosso tempo: culto da personalidade, competitividade entre igrejas,
organicidade social, multiplicação de grupos de pressão, expansão da democracia
participativa, abertura da locução social. Com o foguetório o pregador consegue
chegar aos píncaros da visibilidade, meta ambicionada por qualquer parlamentar.
Vale lembrar que ele foi eleito
pelos pares para comandar a Comissão de Direitos Humanos. Até aí, tudo bem.
Inaceitável é o uso (e abuso) de peroração discriminatória dentro de um
organismo criado exatamente para defender os postulados da igualdade e da
pluralidade.
Resta observar que o
"enviado dos céus" ultrapassou seus 15 minutos de fama. E parece
querer mais, ampliando espaços midiáticos e sendo eleito como o bastião da
resistência evangélica no Congresso Nacional. Multiplicará o rebanho e
consolidará a imagem de "guerreiro do Espírito Santo"? Não há
certeza. Mas a ambição desvairada pelo poder acabou turvando a visão do ator.
O deputado pastor caiu na
tentação de ultrapassar os limites do bom senso. Ao trazer Satanás para a mesa
da política e identificá-lo com seus pares, abriu caminho para ser examinado
sob a lupa ética. A imbricação de política e religião, na forma espetacularizada
como o fez, e logo dentro da comissão que espelha direitos humanos, pode ser
motivo para seu afastamento.
Não é de hoje que objetos
sagrados e profanos são embalados pelo celofane da política. No Brasil a
amálgama tem sido rotineira, a partir das concessões na área de rádio e TV a
grupos e igrejas. Os dois territórios se mesclam sob o olhar complacente de quem
tem poder para evitá-lo.
Até se admite que a concorrência
entre católicos e pentecostais estimule os contendores a aprofundar as relações
com o Estado, como se vê na recente proposta do deputado evangélico João Campos
(PSDB-GO) que garante às entidades religiosas o poder de contestar a
constitucionalidade de leis no Supremo Tribunal Federal. (Por que não estender
o privilégio aos ritos afro-brasileiros?) Mas deslocar a religião para o palco
central da política no molde feliciano é pregar abertamente a ilicitude dentro
da própria Casa que faz as leis e deve dar exemplo de disciplina.
Não se pretende defender postura
apolítica de igrejas e credos. Seu papel missionário implica tomar partido,
lutar por ideários e convicções, ações que inescapavelmente entram nos
corredores do Parlamento. Podem até sugerir a eleição de perfis identificados
com os valores da República. Constituem motivo de aplauso, igualmente, ações
sociais pela elevação e promoção do ser humano, particularmente dos
contingentes marginalizados. Essa é a visão abrangente da política que as
igrejas podem perseguir.
Outra coisa é política
partidária, usar a religião como instrumento de negócios lucrativos, ímã para
atrair fiéis e incluí-los nas siglas. A invasão religiosa do espaço público
ameaça manchar o escopo republicano, apesar de sabermos que o ativismo
eleitoreiro de certas igrejas acabará acentuando tal tendência. Urge dar um
basta na construção da "igreja-Estado".
Foram-se os tempos em que líderes
religiosos coroavam e descoroavam reis e rainhas. O bom senso aconselha: srs.
políticos, muito cuidado para não trombetearem dentro da politicagem o nome de
Deus em vão.
* Jornalista, Professor Titular da
USP, Consultor Político de Comunicação. Twitter: @gaudtorquato
Fonte: http://www.estadao.com.br
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