Autoestima à mostra - Por Orlando Margarido
Numa definição formal, o Museu
Afro Brasil apresenta-se como a instituição que visa valorizar e preservar um
patrimônio cultural brasileiro, africano, e a relação de ambos.
Mas a quem
pergunte qual o papel da instituição que toca há uma década, o diretor e
curador Emanoel Arau-jo é breve e direto. “É um museu da autoestima.”
Engana-se
quem relacionar essa estima apenas ao negro, deste ou de outro continente,
medida quem sabe pelo tipo do próprio idealizador, um baiano de Santo Amaro da
Purificação, descendente de ourives e colecionador da arte que faz jus a seu
projeto.
O prédio do Parque do Ibirapuera abriga acervo, ressalva ele, tão ou
menos dedicado à cultura negra como qualquer outra entidade similar, e não
poderia ser diferente a um país miscigenado.
Exemplo desse desejo de abarcar
as raízes brasileiras em sua acepção mais ampla é a nova mostra aberta no
sábado 25/01. Da Cartografia do Poder aos Itinerários do Saber dá conta, em
parceria com a centenária Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, da
influência do conhecimento científico português na cultura dos povos e
territórios da Colônia, Brasil e África em primeiro plano.
A seleção
representativa da era do Marquês de Pombal às relações contemporâneas abre a
comemoração dos dez anos do museu, que pela primeira vez estende sua
programação a um espaço exterior ao edifício principal.
A vizinha Oca foi escolhida pelo
fato de o Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, de 11 mil metros quadrados, cedido
pela prefeitura, estar tomado por exposições temporárias e pelo acervo
permanente, o que dá a noção do ritmo do calendário e sua ambição. Entre as
primeiras, uma homenagem ao Mestre Didi, artista e sacerdote baiano morto em
outubro, e a dois pernambucanos, o escultor Francisco Brennand e o jornalista e
colecionador Odorico Tavares (1912-1980), radicado na Bahia.
As opções refletem um pensamento de formação e memória que norteia a curadoria. “Não se pode criar um museu de gueto, estigmatizar uma raça. Não existe isso em nenhum lugar do mundo. Temos o dever de lembrar aqui a junção de cultura e raças que este país parece querer esquecer”, diz Araujo.
As opções refletem um pensamento de formação e memória que norteia a curadoria. “Não se pode criar um museu de gueto, estigmatizar uma raça. Não existe isso em nenhum lugar do mundo. Temos o dever de lembrar aqui a junção de cultura e raças que este país parece querer esquecer”, diz Araujo.
Um símbolo
dessa união talvez única no mundo vem na imagem, lembra ele, da negra escrava
adornada com joias pelo sinhô de engenho, numa peculiar confluência de
papéis. Pode estar também no reconhecimento de personagens importantes esquecidos
na formação de nossa história, a exemplo do nobre português dom Luiz Antônio de
Souza Botelho e Mourão, o Morgado de Mateus, primeiro governador da Capitania
de São Paulo, a partir de 1765.
Em torno dele está um dos núcleos da nova
mostra, que reúne ainda peças de tribos de Angola, instalações do Benin, mapas
e documentos, além da arte de pintores modernos portugueses como José de
Guimarães e brasileiros contemporâneos, a exemplo de Tunga.
O conjunto trata da identidade
brasileira, e assim o diretor acredita tocar o público. Boa parte vem do
trabalho com escolas, e não raro se registram até 2 mil visitantes em uma
semana. No Dia da Consciência Negra, o número pode subir a 5 mil. Não é um museu
de recordes, avalia, mas de persistência.
Araujo experimentou o oposto na
Pinacoteca do Estado quando a dirigiu nos anos 1990 e festejou cifras nunca
antes vistas no então renovado prédio da Luz, com mostras como a de Rodin. Mas
o projeto atual era o de seus sonhos a partir do interesse a orientar sua
coleção particular.
Desde o início, a instituição
esteve tão vinculada a Araujo que se tornou difícil separá-la da figura do
colecionador. Em 2009, ele doou ao museu 2.163 obras. Há mais em comodato, que
poderão se juntar ao acervo de cerca de 6 mil itens. Tudo gira em seu entorno,
da simples decisão de conceder férias aos cem funcionários à revisão da
marcenaria para bancadas de exposição e, claro, a função de frente na busca de
apoio e patrocínio.
Ligado à Secretaria de Estado da
Cultura, o museu, organização social, tem um orçamento anual de 9 milhões de
reais, insuficientes segundo o diretor. Ele faz uso de seu prestígio angariado
com a bem-sucedida gestão da Pinacoteca e busca apoio de multinacionais e bancos,
por exemplo, alguns parceiros há mais de uma década.
Uma mostra como a
recém-inaugurada, para a qual reuniu fundos depois de os portugueses não
conseguirem levantar dinheiro, custa em torno de 700 mil reais. “É desolador e
extenuante correr atrás disso. Ninguém quer saber de memória no Brasil.”
Por isso a necessidade
prioritária de que cada exposição seja registrada também em catálogo. Um deles
acaba de sair do forno. Caprichado, o volume: Arte, Adorno, Design e
Tecnologia no Tempo da Escravidão reúne em 395 páginas 70 objetos da
mostra homônima em cartaz por tempo indeterminado, com possibilidade de se
tornar permanente.
São itens fabricados e utilizados por escravos no País, que,
como atenta Pietro Maria Bardi em texto, ao citar o historiador André João
Antonil, “devem ser apontados como escultores no modo bem singular no conceber
e executar o objeto, reduzindo-o à simplicidade de sua função, sua rigorosa
economia operacional, a estética não procurada”.
Essas ferramentas de marceneiros,
prensas para queijo, formas de tijolos e outros objetos foram coletados pelo
diretor durante cinco anos em diversos antiquários. Poderia ir diretamente aos
espólios das famílias e negociar, mas prefere comercializar com o valor de
mercado para não constranger com a representatividade do museu.
A mostra, que
recupera a tradição de pintores como Rafael Pinto Bandeira e Firmino Monteiro
têm poucas peças emprestadas de coleções privadas, uma delas a de Conrado
Malzone, dada a peculiaridade do período coberto. Isso leva o curador a outra
preocupação, a de doações. Elas são ínfimas no museu. “É outra
mentalidade que precisa mudar.”
Enquanto as colaborações de
fora não surgem espontaneamente, ele segue com as rédeas. No ano passado, foi
ao Benin para formatar a principal iniciativa da comemoração, uma mostra com
artistas contemporâneos que despontam no circuito internacional da arte, de
galerias a bienais, mas não aqui. “Todos se deram conta da importância desses
nomes, menos aqui no Brasil, que perdeu os laços com o Benin.”
Há uma tradição portuguesa,
lembra o diretor, que se mantém na nação africana, inclusive no nome da
capital, Porto Novo. O acervo permanente do museu reúne peças históricas e a
seleção prevista para ser exibida no segundo semestre trará o novo. Aos 73 anos,
Araújo tem certo que esta é sua vida, organizar instituições e mostras, ele
também um escultor de reconhecimento.
Na política cultural teve uma única
experiência rápida e tumultuada como secretário municipal de Cultura, e não
pretende repetir. Dedica-se a escrever um livro sobre sua gestão na Pinacoteca,
“para por os pingos nos is”, diz, enigmático. E preocupa-se em formar alguém
para dar continuidade ao Museu Afro Brasil. “Os feitos culturais no Brasil
também são esquecidos.” Infelizmente.
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