A carreira ocupou o espaço da religião", diz a autora – Por Claudia Gasparini
A sensação de estar ocupado o
tempo inteiro é uma epidemia social. Mas por que não ter tempo para nada se
tornou um símbolo de status? Quais são as consequências mais profundas de viver
uma rotina sobrecarregada?
Foi movida por questionamentos
dessa natureza que a jornalista Brigid Schulte escreveu o livro: “Overwhelmed:
work, love and play when no one has the time” (em tradução livre,
“Sobrecarregado: trabalhe, ame e se divirta quando ninguém tem tempo”), pela
editora Sarah Crichton Books.
Casada, mãe de dois filhos e
repórter no jornal The Washington Post há 15 anos, Schulte diz já ter sido
pessoalmente afetada pela obsessão coletiva por trabalho.
No livro, que entrou para a lista
dos mais vendidos do jornal The New York Times, ela discute o delicado
equilíbrio entre carreira e lazer e propõe formas de fazer as pazes com o
tempo.
Confira a entrevista completa que
Schulte concedeu a EXAME.com, na qual ela expõe o que pensa sobre sucesso,
expectativas e prioridades:
EXAME.com: Qual é o significado
do trabalho para a sociedade atual? Por que precisamos dele?
Brigid Schulte: No passado,
precisávamos do trabalho para sobreviver. Foi assim durante toda a história da
humanidade. Precisávamos cultivar alimentos, caçar, nos defender. Estávamos
sempre preocupados em garantir as nossas necessidades básicas.
Isso mudou drasticamente. Agora
procuramos no trabalho um sentido para a vida. Para muita gente, a carreira responde
a diversas questões existenciais, e ocupou o lugar da religião na hora de
atender a dúvidas como “Quem sou eu?”, “Por que estou aqui?” ou “Que diferença
faço para o mundo?”.
Entre o fim do século 20 e o
começo do século 21, o trabalho adquiriu um significado muito poderoso. Hoje,
ele tem menos a ver com a luta pela sobrevivência, e mais com a busca por
identidade.
EXAME.com: E o lazer?
Qual é o sentido dele hoje em dia?
Brigid Schulte: Quando a
humanidade ainda estava preocupada em sobreviver na natureza, era muito difícil
ter lazer. Era quase um “trabalho em tempo integral” buscar comida ou fugir de
animais selvagens!
Mas os raros momentos de lazer
eram justamente aqueles em que conseguíamos imaginar, criar e sonhar. Não foi
enquanto estava caçando ou coletando raízes que o homem inventou a roda. Quando
está preocupado com a sua próxima refeição, você não tem tempo de ter ideias
muito brilhantes!
O que quero dizer é que os
momentos de ócio foram muito importantes historicamente para o desenvolvimento
da própria civilização. Foi graças a eles que criamos a arte e a filosofia.
Hoje, o significado de lazer
mudou muito. De forma geral, não existe mais tanta preocupação com a
sobrevivência básica na natureza. Então, para muita gente, o trabalho ocupa o
espaço do lazer. Nossas carreiras envolvem atividades que gostamos de executar.
Isso é um grande problema. Uma das razões pelas quais trabalhamos tanto é
justamente o fato de gostarmos das nossas profissões.
EXAME.com: O lazer “verdadeiro”
se tornou então um motivo de culpa e vergonha?
Brigid Schulte: Sim. Basta
pensar no ditado “Cabeça vazia é a oficina do diabo”. Existe a sensação de que
você não pode ficar sem fazer nada. Em muitos países, existe um culto muito
grande à exaustão e ao trabalho exagerado. As pessoas usam esse excesso como
uma espécie de medalha de honra. Se você tira férias longas, é comum ouvir
“Nossa, deve ser ótimo!”, com um tom sutil de desdém.
O que escapa a muita gente é que,
se você trabalhar o tempo inteiro, mesmo amando o que faz, corre o risco de
cair em estafa - o que acaba transformando você num profissional pior.
EXAME.com: A senhora afirma
que estar sempre ocupado se tornou um símbolo de status. Como mudar a cultura
que valoriza a falta de tempo?
Brigid Schulte: É um enigma
de difícil solução. Se analisarmos a questão globalmente, temos algumas pistas.
Os dinamarqueses têm bastante tempo livre, comparados ao resto do mundo. Como
eles conseguem?
Bem, na Dinamarca há leis que
prevêem um período curto de trabalho, mas também há uma questão cultural. Eles
entendem que, se você não consegue terminar o seu trabalho em 30 e poucas horas
por semana, você é ineficiente. O que importa é a performance, não o número de
horas passadas no escritório.
Em outro país nórdico, a Suécia,
todos tiram férias coletivas por um mês, durante o verão. É uma política
pública, que eles chamam de “restauração coletiva”. Funciona muito bem. As
vendas de antidepressivos caem radicalmente nesse período.
Já num outro país, como os
Estados Unidos, se você tira férias minimamente longas, será reprovado pelos
outros. Isso porque está imerso numa cultura de devoção excessiva ao trabalho.
Mas, se todos tirassem férias ao
mesmo tempo, como na Suécia, o profissional não se sentiria tão inadequado.
Pense na semana entre Natal e Ano Novo. A sensação desse período é ótima,
justamente porque todos estão descansando juntos.
O desafio é, de alguma forma,
tornar aceitável que muitas pessoas tirem férias ao mesmo tempo. É uma
expectativa bem alta, eu reconheço, mas é uma ideia interessante para se ter em
mente.
EXAME.com: No passado,
acreditava-se que a evolução da tecnologia nos daria mais tempo para o repouso
e o lazer. Hoje, vivemos rodeados por aparelhos e máquinas, mas estamos cada
vez mais atribulados. Como explicar essa contradição?
Brigid Schulte: Acho que a
tecnologia é, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. Na década de 1950, uma
das grandes promessas da indústria era fazer as donas de casa ganharem tempo
com a ajuda dos eletrodomésticos. Mas veio a publicidade e disse “Agora que
você tem todos esses aparelhos eficientes, tudo tem que ser ainda mais limpo!”.
Então o padrão de exigência por limpeza aumentou muito, anulando aquela suposta
economia de tempo.
Esse exemplo esclarece muito do
que vivemos hoje. Vamos pensar no email. Ele foi feito para tornar nossa
comunicação muito mais rápida, fácil e descomplicada. Mas o que aconteceu? Hoje
recebemos milhares de emails por dia, e grande parte deles é lixo. E não
conseguimos desligar.
EXAME.com: Como isso se
manifesta no ambiente de trabalho?
Brigid Schulte: A tecnologia
eleva muito o nível de ansiedade no escritório. Mesmo durante as férias, as
pessoas ficam angustiadas para saber o que está esperando por elas na caixa de
entrada do email.
A sensação é de vigilância
constante e você sente que nunca pode se livrar completamente daquele peso.
Alguns ambientes transmitem a sensação de serem muito mais agitados e
estressantes do que precisariam ser, simplesmente por causa dessa expectativa
por respostas imediatas.
EXAME.com: A senhora defende
que, já que o tempo é um recurso escasso, nossas expectativas também precisam
ter limites. Isso significa que precisamos fazer uma escolha? Ou somos excelentes
pais ou somos excelentes profissionais, por exemplo?
Brigid Schulte: Eu já fui
vítima dessa armadilha, e eu tenho evitado recair nela. Prefiro me ver como um
ser humano autêntico, completo. Você é mais do que só o seu trabalho ou só a
sua família. Se você trabalhar com bom senso e inteligência, consegue ter uma
performance excelente, sem precisar "se matar" por causa isso. Você é
capaz de chegar em casa num horário decente e ter tempo suficiente para a sua
família.
Quando nós achamos que precisamos
“escolher” um único tipo de realização, é porque estamos comprando a ideia de
que o trabalho precisa ser maníaco, louco. Eu discordo disso e estou tentando
aplicar essa ideia à minha própria vida.
EXAME.com: Qual é o seu
conselho para quem se sente sobrecarregado?
Brigid Schulte: O mais
importante é perceber que você não está sozinho. Eu me senti solitária por
muito tempo. Achava que todo mundo tinha vidas bem estabelecidas, e que eu era
a única inadequada, desorganizada e neurótica. Mas a verdade é que todos são
pressionados a trabalharem demais, a serem os melhores pais e a estarem sempre
ocupados.
Quando você está se sentindo
sobrecarregado no dia a dia, é preciso parar, respirar fundo e reavaliar a sua
situação. Aquilo que nós achamos que precisa ser feito agora, neste minuto,
muitas vezes pode esperar. Procure se perguntar: “Por que estou fazendo essa
escolha? Isso é importante para mim? De quem é essa expectativa?”. É importante
perceber as forças externas que atuam sobre as suas decisões, e questioná-las.
EXAME.com: As mulheres ainda
são mais sobrecarregadas do que os homens?
Brigid Schulte: Sim. As
mulheres entraram para a força de trabalho, em massa, na década de 1970. Porém,
em muitos países, quase nada mudou do ponto de vista cultural. As mulheres ainda
são vistas como as responsáveis pela casa e pelos filhos.
Mas isso está mudando. O excesso
de trabalho têm se “espalhado” pela sociedade. Solteiros também têm se sentido
sobrecarregados, por exemplo. Os próprios homens também estão sentindo
dificuldade em equilibrar vida pessoal e profissional. Eles estão começando a
experimentar o dilema que as mulheres conhecem há 40 anos.
Isso é bom, porque, assim, mais
pessoas conseguem entender que esse desequilíbrio não é só um “problema de
mãe”. Quanto mais pessoas se perceberem afetadas, mais chances temos de escapar
dessa armadilha enquanto sociedade.
EXAME.com: A senhora
acredita que, no futuro, saberemos usar melhor o tempo?
Brigid Schulte: Sim, sou otimista. É claro que faz parte da natureza humana essa necessidade de se ocupar constantemente. A perspectiva de morrer um dia é muito dura para nós. Então preenchemos os nossos dias para não ter que pensar nisso.
Brigid Schulte: Sim, sou otimista. É claro que faz parte da natureza humana essa necessidade de se ocupar constantemente. A perspectiva de morrer um dia é muito dura para nós. Então preenchemos os nossos dias para não ter que pensar nisso.
Mas, ao perceber que a sua vida
não vai durar tanto, você muda as suas escolhas, usa o seu tempo para o que é
mais importante. Sob essa perspectiva, você pode descobrir que a sua prioridade
hoje é assistir ao seu filho de três anos estourar bolhas de sabão, dar uma
caminhada ao ar livre ou reparar na cor do céu. Tenho esperanças de que
conquistar essa sensibilidade é possível.
Fonte: http://exame.abril.com.br
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