Migrações, religiões e violência - Por Roberto Marinucci
A questão religiosa tornou-se
novamente objeto de amplos e acirrados debates em nível mundial devido aos
recentes atentados contra o Charlie Hebdo na França, a violência do Estado
Islâmico, a perseguição de minorias religiosas em vários países, os crimes
cometidos na Nigéria pelo Boko Haram, entre outros fatores.
Em todos esses casos parece haver
um estrito nexo entre religião e violência. De forma específica, boa parte das
manchetes e dos artigos dos jornais do mundo ocidental enfatizam a crescente
difusão do assim chamado "fundamentalismo islâmico”, bem como da relação
entre a religião muçulmana e o "terrorismo internacional”.
O binômio terrorismo/islã acaba
envolvendo também a questão migratória. A suposta violência do islã está se
difundindo pelo mundo mediante as migrações internacionais?
Há quem acredite
num lento processo de islamização da Europa, conforme a "profecia”
atribuída a Kadafi: "há sinais de que Alá garantirá a vitória ao Islã na
Europa sem espadas, sem armas, sem conquistas. Não precisamos de terroristas ou
de bombas homicidas. Os mais de 50 milhões de muçulmanos da Europa a transformarão
num continente islâmico em poucas décadas”.
Esta última afirmação traz à tona
um último aspecto: a questão da integração ou incorporação dos imigrantes nas
sociedades de recepção. Em outros termos, a expressiva presença de estrangeiros
oriundos de países com uma diferente cultura e religião prejudica a assim
chamada "identidade nacional”?
Apesar da amplitude e
complexidade dos assuntos supracitados, alguns aspectos merecem aqui ser
destacados. Em primeiro lugar, a relação entre violência e religião não nos
parece automática e tampouco evidente.
As religiões, por vezes, disponibilizam
a gramática do discurso religioso (PACE, 2004) para sustentar as políticas de
identidade nacional e étnica ou legitimar determinados conflitos, que são
geralmente motivados por razões políticas, econômicas ou sociais em decorrência
de determinadas circunstâncias (TODOROV, 2010).
Perguntamos-nos, nesta ótica,
até que ponto a assim chamada "islamização dos problemas sociais”
(RAMADAM, 2008) não tenha se transformado em uma ferramenta que visa encobrir
as reais causas dos conflitos, causas que podem ser facilmente identificadas
nas sangrentas políticas de cunho neoliberal, nas violências e nas humilhações
do período colonial (TODOROV, 2010) ou, mais propriamente, na irresponsável
política externa do mundo ocidental em relação aos países árabes e/ou
muçulmanos na segunda metade do século passado e no começo do atual.
Enfim, estamos diante de um
conflito de civilizações (HUNTINGTON, 1997) ou dos efeitos colaterais da nova
ordem mundial de cunho neoliberal e do imperialismo ocidental? O mundo
muçulmano, com 1,6 bilhão de fieis espraiados pelo mundo inteiro (PEW RESEARCH
CENTER, 2012), pode ser julgado e essencializado a partir do comportamento de
0,0019% de seus seguidores (estima-se que o Estado Islâmico seja formado por
cerca de 30 mil membros)?
A complexidade dessas perguntas
deve nos alertar sobre respostas demasiado simplistas. Eventos sociais que
envolvem questões relacionadas com a política, a economia, a cultura, a
religião, as relações internacionais, e até a psicologia, devem ser analisados
com o devido cuidado.
No entanto, é importante enfatizar como a unilateralidade
e miopia da mídia ocidental está alimentando um clima de generalizada
islamofobia que frequentemente confunde causas e efeitos, vítimas e carrascos,
correndo o risco de fortalecer as causas reais da violência, física e
simbólica, individual e estrutural.
Esse clima tem evidentes repercussões no
âmbito da política, como atestado pelo expressivo aumento de leis que
marginalizam a população islâmica e dificultam cada vez mais a prática de seus
preceitos religiosos, por exemplo, a proibição do abate Halal na Dinamarca, em
2014; a decisão do Tribunal Estadual de Colônia, na Alemanha, em 2012, de
proibir a circuncisão masculina enquanto lesão corporal, decisão posteriormente
modificada mediante uma emenda de lei; a assim chamada "lei
anti-mesquitas” da região Lombardia, na Itália, em 2015, que criou numerosos
empecilhos à ereção de novos locais de culto.
Estas últimas reflexões nos levam
para a questão migratória. Na ótica islamófoba a imigração muçulmana provoca
uma degradação das identidades nacionais europeias, uma degradação que só pode
ser evitada reduzindo os fluxos e estabelecendo rígidas políticas de
assimilação (ZEMMOUR, 2015), mesmo que isso implique a explícita violação da
liberdade religiosa.
O que não deixa de ser paradoxal, pois a teoria dos
"Clash of Civilizations” e, sobretudo, o assim chamado "capital do
medo” (BAUMAN, 2007), acumulado desde os atentados contra as Torres Gêmeas, são
utilizados de forma instrumental a fim de legitimar políticas que, ao
contrário, seriam consideradas como sendo abertamente contrárias à
"identidade europeia”, uma identidade focada na imprescindível defesa dos
direitos humanos.
Na realidade, uma leitura mais
objetiva e fundamentada do fenômeno religioso revela que a religião, inclusive
aquela muçulmana, pode exercer um importante papel em termos de integração dos
migrantes nas sociedades de acolhida, oferecendo sentido e paradigmas de
interpretação da nova realidade; fortalecendo o migrante diante dos desafios
inerentes ao deslocamento e, desta forma, evitando sua desestruturação
psíquica; garantindo redes sociais e étnicas que, em geral, constituem pontes entre
o velho, da sociedade de origem, e o novo, da sociedade de acolhida, além de
constituírem espaços de relações primárias de solidariedade e de orientação
profissional.
É verdade que o risco do gueto étnico/religioso está sempre
presente. Mas é bom frisar que, com frequência, o isolamento é favorecido ou
até induzido tanto pelas rígidas políticas de exclusão e discriminação (AMNESTY
INTERNATIONAL, 2012) quanto pelas atitudes xenófobas e islamófobas, que acabam
tornando o grupo étnico/religioso o único recurso disponível de sobrevivência.
Bibliografia
ANISTIA INTERNACIONAL (2012).
Elección y prejuicio: discriminación de personas musulmanas en Europa. Madrid:
AI.
BAUMAN, Zygmunt (2007). A vida
líquido-moderna e seus medos. In: Tempos líquidos. Rio de Janeiro: ZAHAR.
HUNTINGTON, Samuel (1997). O
choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Rio de janeiro:
Objetiva.
PACE, Enzo (2014). Perché le religioni
scendono in guerra? Roma/Bari: Laterza.
PEW RESEARCH CENTER (2012). The
Global Religious Landscape A Report on the Size and Distribution of the World’s
Major Religious Groups as of 2010. PRC: Washington.
RAMADAM, Tariq (2008). Islam e
libertà. Einaudi: Torino.
TODOROV, Tzvetan (2010). O medo
dos bárbaros. Petrópolis: Vozes, 2010.
ZEMMOUR, Éric (2015). Sii
sottomesso. Casale Monferrato: Piemme.
Fonte: http://site.adital.com.br
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