A esperança nos move – Por Dom Orani Tempesta
Vivemos momentos complexos em
nossa sociedade! Perseguições, vilipêndios, martírios, intolerâncias,
fanatismos ideológicos, culturais, sociais e religiosos, laicidade mal
compreendida, o Estado ocupando o lugar da família na educação dos filhos,
promessas de solução da violência juvenil com encaminhamentos falaciosos,
intolerância religiosa em todos os níveis e certo anticatolicismo espalhado
pelo mundo.
Sabemos que nesse tempo de
“mudança de época”, todos estes conceitos e práticas arraigadas em filosofias e
visões do mundo, que já há séculos vêm sendo fermentadas na sociedade, devem
passar por uma reflexão profunda para que possamos escolher o melhor caminho
para o futuro. Estamos colocados diante de uma situação que necessita de um
grande discernimento.
Já há muito tempo que no Brasil e
no exterior acompanhamos as manifestações de intolerância religiosa em várias
modalidades e contra os mais diversos credos, mas também um aumento da
violência e insatisfação com revoltas.
Existe um clima da necessidade de tempos
novos no ar! Eis a oportunidade de uma séria reflexão e escolhas para o futuro.
Aparece um direcionamento para banir da sociedade em geral os valores humanos
transcendentais e sagrados em favor de um laicismo agressivo, fanático e
intolerante.
Quando recebi, no Palácio São
Joaquim, na manhã do dia 19 de junho, sexta-feira, a menina Kailane Campos, de
11 anos, que foi atingida por uma pedrada na cabeça por ser reconhecida pela
sua religião porque estava vestida com as roupas próprias do Candomblé, na Vila
da Penha, aqui no Rio de Janeiro, além do fato pessoal, pude ver no gesto com
uma criança uma terrível intolerância religiosa que chegou também em nosso
país, infelizmente.
No citado encontro, em nome da
Arquidiocese, ocasião em pude expressar a nossa solidariedade e reafirmar sua
abertura ao diálogo com outras religiões, contamos também com a presença da avó
de Kailane, Kátia Marinho, que estava com a menina no momento da pedrada.
Representantes da Comissão
Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso e da Comissão de Combate
à Intolerância Religiosa também participaram da reunião. Este foi um dos fatos
dentro de tantos outros que ocorreram aqui no Brasil e no exterior.
Neste ano em que comemoramos os
50 anos da conclusão do Concílio Vaticano II é bom recordar que “a Igreja, por
conseguinte, reprova toda e qualquer discriminação ou vexame contra homens por
causa de raça ou cor, classe ou religião, como algo incompatível com o espírito
de Cristo”. E ainda recorda, citando 1Ped 2,12: “Quanto deles depende,
mantenham paz com todos os homens, de modo que sejam verdadeiramente filhos do
Pai que está nos céus” (Nostra Aetate 5).
Os fatos atuais devem nos levar à
reflexão e à tomada de consciência quanto ao nosso respeito pelo próximo e
pelos valores religiosos que lhe são subjetivamente caros, dado que ele, na fé
cândida, pratica seu culto sem prejudicar o bom andamento da reta ordem e sem
desrespeitar os demais credos religiosos da sociedade pluralista em que vive.
Ora, se ele respeita, por que não mereceria reciprocidade?
Aliás, a própria Bíblia, Palavra
de Deus escrita, nos adverte sobre isso ao nos ensinar o seguinte: “Não faças a
ninguém o que não queres que te façam” (Tb 4,15), ou “Tudo aquilo, portanto,
que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os
Profetas” (Mt 7,12). Não está já aqui um importante ponto de reflexão sobre a
nossa conduta humana com relação a quem professa uma fé diferente da nossa?
Não pensemos, contudo, que são
fatos isolados estes que estamos abordando; não, eles parecem mais ou menos
organizados, como dizíamos, para derrubar tudo o que represente algo de sagrado
na humanidade, a fim de dar lugar a um secularismo doentio e desumano, pois,
feito para Deus, o ser humano não descansa enquanto não repousa n’Ele já,
provisoriamente, aqui neste mundo e, definitivamente, na eternidade.
Nós lamentamos muitas situações
de intolerância! Que se veja os martírios dos cristãos, que se reflita sobre o
vilipêndio e desrespeito aos templos queimados, a imagens religiosas tanto no
exterior como aqui entre nós. Em alguns lugares se proíbe e se destrói, em
outros (como aqui), além de quebrar, vilipendiam como que insultando todos os
que têm nesses símbolos um sinal querido e amado.
Creio que necessitamos de uma
reflexão aprofundada, que gostaria de iniciar mesmo sabendo que isso merece um
pouco mais de considerações. Vamos iniciar com uma abordagem sobre as
orientações laicas, que desejam manipular as religiões e seus ensinamentos.
Dois pronunciamentos mais ou
menos recentes nos fizeram constatar isso e, por essa razão, é oportuno que nos
atentemos a eles, ainda que de passagem. O primeiro vem do Sr. Vincent Peillon,
ministro da Educação na França, em 2013, com as seguintes palavras:
“Até agora foi feita uma
revolução essencialmente política, mas não a revolução moral e espiritual.
Deixamos à Igreja Católica o controle da moral e do espiritual. Agora é preciso
substituir tudo isso (...). Jamais poderemos construir um país de liberdade com
a religião católica. É preciso inventar uma religião republicana que deve ir
junto com a religião material, religião que, de fato, é a laicidade. E é por
causa disso, aliás, que no início do século XX se começou a falar de fé laica,
de religião laica” (Obedecer antes a Deus que aos homens, p. 84).
O segundo discurso é bem recente,
parte da Sra. Hillary Clinton e foi proferido em 24 de abril último no Lincoln
Center de Manhattan. Ali, ela expôs de modo claro que “os códigos culturais
profundamente arraigados, as crenças religiosas e os enfoques culturais devem
ser modificados”, desde que privem a sociedade de desfrutar da “saúde
reprodutiva”, termo ambíguo denunciado mais de uma vez pela Santa Sé como fruto
de engenharia de linguagem para designar o aborto.
Indo além, a pré-candidata à
presidência dos Estados Unidos, na convenção de seu partido, defendeu um Estado
autoritário e controlador ao declarar que “os governos devem empregar seus
recursos coercitivos para redefinir os dogmas religiosos tradicionais”. Essa
coerção levaria à troca dos dogmas religiosos pelos do Estado laicista e
perseguidor das religiões, uma vez que estas lembram o Transcendental. Lembram
que nenhum poder têm os governantes deste mundo se ele não vier do alto (cf. Jo
19,11).
A fala da Sra. Clinton causou
grande repercussão nos Estados Unidos, de modo que Bill Donohue, dirigente da
Catholic League, pode declarar que “nunca antes se viu um aspirante à
presidência dos Estados Unidos atacar diretamente os ensinamentos da Igreja
Católica”, mas até aí chegou a intolerância religiosa naquele país que sempre
se arvorou em defensor das liberdades individuais ou do homem livre.
Esses discursos que não se
intimidam em deixar transparecer o ódio à fé católica e cristã em geral vão
além em outras falas ou escritos que também atacam a religião de uma maneira
mais ampla, como se fosse ela um grande mal para a humanidade e precisasse ser
extirpada a fim de que o ser humano pudesse ser feliz, segundo dizem. Na
realidade, porém, se dá exatamente o contrário, conforme asseguram renomados
estudiosos: a fé é um alimento propulsor da humanidade para o progresso desde a
Antiguidade até nossos dias.
Sim, o sinântropo, ou o homem de
Pequim, por ter os vestígios descobertos em Chou-Kou-Thien, a 50 km da atual
capital da China, intriga os estudiosos por revelar três aspectos muito
importantes:
a) sabia produzir e usar o fogo, algo impossível a infra-humanos;
b) utilizava instrumentos devidamente talhados ou trabalhados, reveladores de
capacidade de invenção e reflexão, dado que preparavam um objeto com
finalidades bem próprias;
c) expõem grande respeito perante o mistério da morte,
com ritos fúnebres, que dão a entender uma crença no além ou numa Divindade.
Daí constatar Bergounioux:
“Seria imprudente deduzir desses
fatos (os três atrás recenseados) conclusões demasiado precisas. Contudo, é
necessário registrar cuidadosamente essas manifestações de vida de uma tribo
ditadas por preocupações já não meramente materiais e já características de uma
consciência religiosa que veremos expandir-se e aprimorar-se no homem da etapa
seguinte” (Les Relligions des Prehistoriques et des Primitifs, coleção Je sais
– jê crois nº. 140. Paris, 1958, p. 14 apud E. Bettencourt, OSB. Teologia
Fundamental. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2013, p. 43).
O famoso psicanalista Carl Gustav
Jung, mais recentemente nos assegura o seguinte: “De todos os meus pacientes na
segunda metade da vida, isto é, tendo mais de trinta anos, não houve um cujo
problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude
religiosa. Todos, em última análise, estavam doentes por ter perda daquilo que
uma religião viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum se
curou realmente sem recuperar a atitude religiosa que lhe fosse própria” (cf.
N. da Silveira. Jung: vida e obras, p. 141s).
Visto isso, não é mais possível
negar o valor da religião, do sagrado entre os homens, pois sem Deus, como
instância superior, o homem se torna lobo do homem e se arroga no direito de
ocupar o lugar do Criador, a fim de menosprezar o seu próximo seja por
ideologias de cunhos totalitários que conseguiram chegar ao governo de alguns
países, seja por outras que, como a ideologia de gênero, vai tentando se
implantar nos programas educacionais de nossos municípios para procurar deixar
Deus e a natureza humana em segundo plano a fim de manipular o homem e a mulher
segundo os caprichos desses mesmos ideólogos de plantão. Mas toda religião bem
vivida se opõe a isso e a outras formas de opressão. Daí o desejo de removê-las
do caminho revolucionário de qualquer modo.
Uns optam por ridicularizá-la
intelectualmente, outros por persegui-la a partir de sistemas de governo
autoritário, outros ainda por meio de recursos de manipulação de linguagem ou
da hipocrisia verbal, que vai substituindo conceitos clássicos por novas
linguagens, desejam nos fazer crer, quase sem perceber, que é necessário apagar
da sociedade tudo o que ainda nos leve a Deus. Já alguns outros preferem o
ataque frontal com bombas, pedras, tiros, pichações em templos, destruição de
imagens ou símbolos religiosos diversos. É a intolerância em seus vários níveis
e que precisa ser combatida.
Daí, em 1º de janeiro de 2011,
por ocasião do Dia Mundial da Paz, o Papa Bento XVI pedia: “Diante das tensões
ameaçadoras do momento, especialmente a discriminação, o abuso de poder e a
intolerância religiosa que hoje atingem particularmente os cristãos, eu volto a
fazer um convite premente para que não cedam ao desânimo e à resignação”. (...)
“Eu exorto todos a rezar para que os esforços feitos por muitos lados para
promover e construir a paz no mundo tenha um bom resultado”, dizia.
Também o Papa Francisco nos
exorta: “No mundo e nas sociedades existe pouca paz, também porque falta
diálogo e há dificuldade de sair do horizonte limitado dos interesses próprios,
para se abrir a um confronto verdadeiro e sincero. Para que haja paz é preciso
um diálogo persistente, paciente, forte e inteligente, para o qual nada está
perdido” (...).
“Nós, líderes religiosos, somos
chamados a ser verdadeiros ‘dialogantes’, a agir na construção da paz, e não
como intermediários, mas como mediadores autênticos. Os intermediários procuram
contentar todas as partes, com a finalidade de obter um lucro para si mesmo. O
mediador, ao contrário, é aquele que nada reserva para si próprio, mas que se
dedica generosamente, até se consumir, consciente de que o único lucro é a paz.
Cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo,
extinguindo o ódio em vez de conservá-lo, abrindo caminhos de diálogo em vez de
erguer novos muros! Dialogar, encontrar-se para instaurar no mundo a cultura do
diálogo, a cultura do encontro”. (Papa Francisco. A Igreja da misericórdia:
minha visão para a Igreja. São Paulo: Paralela, 2014, p. 97-98).
Se essas palavras se fizerem
ações em nossa vida, na de todos os líderes religiosos, ou não, certamente o
mundo terá alcançado uma fase da civilização do amor e teremos menos guerra e
mais paz em todos os meios, a começar em nossa casa, na nossa rua, no nosso
bairro, na nossa cidade até estender-se pelo país e pelo mundo inteiro. Isso,
no entanto, tem de começar de nós, de nosso coração, de dentro para fora e não
o contrário.
Ainda recordando o cinquentenário
do Concílio Vaticano II é bom salientar que: “... ainda existem regimes que,
embora reconheçam em sua Constituição a liberdade do culto religioso, levam
assim mesmo seus poderes públicos a empenhar-se em afastar os cidadãos da
profissão da religião, dificultando ao máximo e pondo até em perigo a vida das
comunidades religiosas” (Dignitatis Humanae 15). E ainda:
“os homens todos devem ser imunes
da coação tanto por parte de pessoas particulares quanto de grupos sociais e de
qualquer poder humano, de tal sorte que em assuntos religiosos ninguém seja
obrigado a agir contra a própria consciência, nem se impeça de agir de acordo
com ela, em particular e em público, só ou associado a outrem, dentro dos
devidos limites” (DH 2).
Só assim será possível dizer um
basta bem forte a todo tipo de preconceito religioso ou social injusto, e
juntos afirmar que somos, realmente, filhos de Deus e irmãos e irmãs de verdade
querendo um mundo mais justo, humano e fraterno e agindo para que isso
realmente aconteça. As pedras, as intolerâncias, os vilipêndios, os martírios,
os escritos ou desenhos difamando símbolos religiosos, a compreensão maldosa do
estado laico e tantas outras situações nos fazem pensar sobre qual a direção de
nossa sociedade.
Verdi, ao escrever a ópera
Nabucco em 1842, fez com que o cântico do “coro dos escravos hebreus” servisse
analogamente para despertar o nacionalismo italiano quando estavam dominados
por forças estrangeiras, recordando a saudade da liberdade “ó minha pátria, tão
bela e perdida” sonhando com os pensamentos navegando por asas douradas! Para
nós, cristãos, hoje esse anúncio é claro: é nesse momento que nós anunciamos o
Cristo Ressuscitado e somos testemunhas da esperança neste mundo mudado,
cansado e abatido. Cristo venceu a morte e o pecado e n’Ele nós vivemos, nos
movemos e somos!
* Orani João, Cardeal Tempesta,
O.Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
Fonte: http://www.jb.com.br
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