A morte e a busca por sentido – Por Michele Müller
Jornalista com especialização em
neurociências, escreve para a revista Psique e outras publicações de conteúdo
científico.
Existe uma comum falta de
consciência, entre os médicos brasileiros, de que a morte nem sempre é algo a
ser evitado a qualquer custo. Se os pacientes fossem mais escutados e
orientados, o prolongamento da vida se mostraria, muitas vezes, menos
importante que o bem-estar, garantido pelo simples cuidado e suporte emocional.
O homem que dedicou grande parte
dos seus 81 anos à busca pela essência do ser humano, tantas vezes escondida
debaixo de entraves biológicos, honrou o título de "poeta da medicina
contemporânea" ao ver morte tão de perto.
O neurologista britânico Oliver
Sacks dividiu com o mundo a perceptiva lúcida e serena de quem ganhou a chance
de se despedir da vida. Disse que sentiu imediata mudança de foco. Que a
prioridade agora seria ele, seus amigos, seu trabalho.
Em seu tempo, mais valioso que
nunca, deixou de caber o que não é essencial. Ao se pronunciar sobre a fase
terminal, demonstrou que é possível conciliar o amor pela vida com uma sensação
de desapego a ela.
"Eu tenho conseguido ver a
vida de uma grande altitude, como se fosse uma paisagem, e com um profundo
senso de conexão de todas as suas partes", descreveu, contrapondo a
sensação com sua imensa vivacidade e necessidade de aprofundar ainda mais sua
relação com aqueles que importam. Como se a busca por significado, latente no
dia a dia mais ordinário, de repente se mostrasse mais simples e mais nítida.
O ganho da gratificação, da
serenidade, muitas vezes culmina na proximidade da morte, quando não
conseguimos mais tentar negar ou controlar as transformações da vida. Não é a
única, mas é uma das principais vias que nos transporta para um estado de
consciência que torna mais fácil aceitar a transitoriedade e a finitude.
Para o
neurologista e filósofo Sam Harris, autor de Waking Up (Acordando: Uma Guia
Para Espiritualidade Sem Religião), essa é a verdadeira experiência espiritual:
descobrir que se pode estar confortável nesse mundo sem um real motivo,
transcendendo os limites aparentes do próprio ser.
A morte se aproxima zombando da
pressa, aliviando a ansiedade que tira o foco da mente, derrubando relações
superficiais e muitas vezes conceitos arraigados. Em meio às incertezas e
tristezas, põe tudo em seu devido seu lugar, organiza prioridades e apresenta
belezas que a vida, quando parece infalível, não deixa enxergar.
"Depois do nascimento de um
filho, a contemplação da morte é a maior força transformadora do ser
humano", palavras de quem acompanha de perto, diariamente, a etapa final
de muitas vidas: a geriatra Ana Cláudia Quintana está entre os raros
profissionais brasileiros que escolheram se dedicar àqueles que a medicina já
não tem como salvar.
Fundadora, juntamente com três sócios, da Casa do Cuidar,
em São Paulo, é referência em cuidados paliativos em um país onde poucos sequer
ouviram falar dessa importante área da medicina.
A falta de envolvimento
institucionalizado de profissionais no fim da vida, assim como a pouca
transparência na relação médico/paciente, foram alguns dos principais quesitos
que colocaram o Brasil entre os três piores países do mundo em "qualidade
de morte", numa avaliação da Economist Intelligence Unit (EIU), integrante
do grupo que edita a revista The Economist, em 2010.
Em contrapartida, temos
uma legislação bastante favorável aos pacientes em fase terminal, sendo que
desde 2011 os cuidados paliativos são considerados área de atuação médica
regulamentada, o que pode apontar para uma melhoria nesse tipo de assistência.
Poucos têm uma visão tão realista
da morte como aqueles que preparam as pessoas para esse momento. Encaram todos
os dias o monstro para o qual fechamos os olhos a vida toda e o que encontram
na sua frente é, muitas vezes, um sentido maior para a própria existência.
"Esse contato com a morte me estimula a buscar meus objetivos e, ao mesmo
tempo, me conforta", revela Ana Cláudia.
Das cerca de 1,01 milhão de
mortes anuais no Brasil, aproximadamente 800 mil são anunciadas. A maioria de
nós, portanto, terá a chance de viver conscientemente os momentos finais e, nas
palavras da médica, de "redimensionar a própria existência",
experiência que depende primeiramente do controle do sofrimento físico, um dos
mais básicos procedimentos no cuidado paliativo.
Proporcionar bem-estar físico
e ajudar o paciente a encontrar independência, muitas vezes desafiando o próprio
corpo, é uma parte do trabalho paliativo, que inclui ainda o conforto
emocional, familiar e espiritual, além do trabalho social, que compreende a
conscientização da sociedade com relação à importância de se preparar para essa
etapa da vida.
A busca de significado, tão
fortalecida pela chegada do fim, acontece de forma independente de religião.
"Nesse final, as pessoas põem à prova muitas das coisas em que acreditavam,
percebem, muitas vezes, que sua relação com a religião era mais cognitiva que
espiritual, de transcendência", conta Ana Cláudia.
Vivemos, no final, o momento da
verdade, mesmo que seja implícita e subjetiva como aquela que derruba certos
dogmas aos quais nos apegamos. Nesta etapa, ela se sobressai, por vontade
própria, a qualquer ilusão e remodela todas as dimensões do ser humano. Quem
trabalha com medicina paliativa sabe que, por mais dolorida que seja, a verdade
é aquilo o que os pacientes mais desejam ouvir.
Segundo Ana Cláudia, a maior
parte deles quer logo saber tudo sobre sua condição. Outros precisam de um
tempo maior de aceitação, mas eventualmente aparecem buscando a verdade.
Quando escreveu o premiado How
We Die (Como Morremos), em 1994, o cirurgião americano Sherwin Nuland,
morto no ano passado, teve a intenção de dar aos leitores a dignidade de saber
os que lhes aguarda no final da vida, com base nas transformações causadas
pelas doenças mais comuns.
"É terrível não saber o que
esperar (...). Se eu conto a um paciente exatamente o que esperar de um
procedimento, ele tolera muito melhor a dor e o desconforto. Por que isso não
seria verdade com relação aos meses ou semanas que temos antes de
morrer?", questionou em entrevista à jornalista Krista Tippet, no programa On
Being (2009).
A realidade que coloca o Brasil
entre os piores países para se morrer está refletida na comum falta de
consciência entre os médicos de que a morte nem sempre é algo a ser evitado a
qualquer custo. Se os pacientes fossem mais escutados e orientados, o
prolongamento da vida se mostraria, muitas vezes, menos importante que o bem-estar,
garantido pelo simples cuidado e suporte emocional.
Para comprovar isso, o Hospital
Geral de Massachusetts realizou, em 2012, uma pesquisa com 151 pacientes com
câncer de pulmão em estágio avançado. Metade deles teve cuidados paliativos,
enquanto a outra metade continuou recebendo apenas tratamento oncológico
convencional.
"Os que foram cuidados pelos
especialistas optaram por largar a quimioterapia mais cedo, experimentaram
menos sofrimento e viveram 25% mais. Em outras palavras, nossas tomadas de
decisão na medicina falharam tão espetacularmente que chegamos ao ponto de
infligir sofrimento aos pacientes ao invés de confrontar a mortalidade",
reflete o cirurgião Atul Gawande, autor de Being Mortal (Sendo
Mortal), um dos livros mais interessantes de não ficção lançados no ano passado
nos Estados Unidos.
Segundo Gawande, o pavor inerente
à morte não está nas perdas, mas principalmente no isolamento. Quando tomam
consciência de seu curto tempo, as pessoas não pedem muito, não se importam com
poder ou dinheiro. Elas querem poder continuar dando forma à história de sua
vida no mundo, "querem fazer escolhas e sustentar a conexão com os outros
de acordo com suas prioridades".
Fonte: http://www.brasilpost.com.br
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