Bioética e Religião: uma interface - Por Rogério Jolins Martins*
O pensamento no século XX
culminou na luta da modernidade em conceber uma ciência autônoma, isolando-a
das instituições religiosas, da metafísica e também da filosofia, com temor de
que estas pudessem contaminá-la com ideias supersticiosas e dogmáticas.
Entretanto, o imperativo de que a ciência e a técnica podem mais que aquilo que
se deve, levaram alguns pensadores à análise da sua não neutralidade, fazendo
emergir o discurso ético como parâmetros e balizas nas discussões.
A bioética
surgiu neste ambiente histórico conturbado e mais precisamente devido a fatores
fundamentais tais como a proteção dos sujeitos vulneráveis nas pesquisas
científicas, em decorrência do distanciamento entre as ciências e as
humanidades, que tornou a ciência incompleta em seu objetivo fundamental de
servir ao homem.
Para alguns autores, a bioética se caracteriza como um ramo da filosofia. Para outros, trata-se de um campo de reflexão próprio. Outros buscam sua interação com a teologia moral ou vice-versa. Para alguns, a ética normativa ou a bioética prescindem de Deus, mesmo considerando que existe uma proximidade na reflexão sobre valores e religião dentro da chamada experiência moral.
Sobre esta relação, filósofos e
teólogos com inspiração cristã, ou simplesmente não religiosos, mostram a
marcante contribuição da religião para o desenvolvimento da ética e,
posteriormente, da bioética. Um exemplo que pode ser dado neste diálogo é o
texto publicado por Fermin Roland Schramm, autodeclarado agnóstico, intitulado: Espiritualidade e bioética: o lugar da transcendência horizontal do ponto de
vista de um bioeticista laico e agnóstico[1].
A experiência moral como
construção humana se desenvolve independentemente do espaço em que se situa o
homem: seja na religião ou em outros espaços que se procuram refletir acerca
dos saberes, da historicidade da ética e da preocupação bioética, a opção
pluralista do reconhecimento das diferenças, algumas mais fundamentadas com
expressões básicas tais como as que caracterizam a responsabilidade na
perspectiva de Hans Jonas[2], a justiça a partir de John
Rawls[3], a alteridade na visão de E. Lèvinas[4]e o respeito que no avanço de uma ciência eticamente
livre e responsável.
Posicionamentos considerados pouco racionais, tais como
emoções, valores, crenças e tradições, emergem como contributo de experiências
diversas que, a partir do seu campo próprio de reflexão, torna a bioética mais
completa e mais complexa em suas interpretações.
Na religião a teologia, com sua
linguagem e interpretação, busca clarificar para si e para os outros sua
compreensão acerca da realidade humana e sua interação com todo o Universo. Com
seu pressuposto claro, estará apta a uma presença credível na discussão
bioética.
Martins aponta duas condições necessárias para esta interlocução[5]: a primeira condição é conseguir uma exposição
compreensível e plausível das suas posições, acessível com os instrumentos
racionais comuns à generalidade dos interlocutores. Essa disposição consiste em
colocar à disposição da comunidade que dialoga elementos da reflexão teológica
que possam ser integrados numa estrutura argumentativa comum.
A segunda
condição é mostrar em que consiste a especificidade do seu contributo no
contexto do discurso ético. No debate interdisciplinar, não basta que cada
participante proponha uma perspectiva genérica sobre o tema, mas espera-se que
cada interveniente dê um contributo capaz e enriquecer a discussão, com os
elementos específicos de cada um.
Na interface com a bioética, a
teologia pode oferecer um grande contributo quando, para ela mesma é importante
a compreensão de certos fenômenos como os fundamentalismos religiosos, e,
inclusive, científicos. Dos Anjos chama atenção para a dificuldade de aceitação
do discurso religioso veiculado pela teologia na bioética, que é recebido de
forma variável, entre a simpatia e a antipatia, a indiferença, a desconfiança,
a integração e a total separação[6].
É grande a
resistência de alguns bioeticistas em assimilar para sua reflexão os
dogmatismos da reflexão teológica. Contudo, a mesma resistência deveria existir
em relação aos mais diversos campos do saber, pois precisa-se reconhecer que os
discursos da ciência também não são neutros e nem desprovidos de interesses em
suas proposições.
Para Dos Anjos o que de fato
incomoda, tanto em grupos religiosos como em comunidades científicas e
semelhantes, é a convicção transformada em pretensão de monopólio da verdade.
Esta corta as possibilidades de diálogo, torna as posições rígidas e confere um
perfil sectário às convicções. Este pode ser o principal fator responsável pela
suspeita que tem pesado sobre confessionalidades religiosas, mas que atinge
também outros tipos de grupo.
Para o grupo que não se abre ao
diálogo há uma forte tendência de isolamento, de modo a não perceber a
complexidade das realidades, quando se cresce sempre mais, a consciência de que
as realidades são por demais complexas para serem compreendidas por uma só
forma de saber isoladamente. Por isso, o diálogo será possível e proveitoso se
a teologia e as outras ciências se libertarem de alguns preconceitos.
Depreende-se que no intercâmbio
há a possibilidade do crescimento da teologia e da bioética. A reciprocidade,
dentro da pluralidade, tem na vida ética, e na reflexão bioética, a
possibilidade de aprofundar e amadurecer as particularidades, numa colaboração
mútua e contínua que ajuda ou eleva ao crescimento. Assim elas não se separam,
mas se juntam; não se dividem, mas crescem com a mesma finalidade. Não deve
haver lugar para disputas, pois ambas oferecem sua própria compreensão acerca
da realidade.
Ferrer e Alvarez dizem que
reduzir a teologia e a religião à ética é empobrecê-las, e reduzir a ética à
teologia e à religião constituiria um grave problema dentro da sociedade
pluralista e secular em que vivemos[7]. Para ambas, o
centro de preocupação é o homem que exige abertura para coexistirem e
dialogarem dentro do panorama da sociedade pós-moderna. É preciso, portanto,
que se assegure este centro de preocupação comum, sem o qual não há discurso
científico, teológico ou experiências éticas.
Precisa-se considerar que, as
reflexões bioéticas surgiram como necessidade da interação entre os mais
diferentes campos de saber na tentativa de que o agir humano não ponha em
perigo a continuidade de uma vida verdadeiramente humana sobre a terra[8].
*mestre e doutorando em Bioética
no Centro Universitário São Camilo/São Paulo, padre na Arquidiocese de Belo
Horizonte.
[1] SCHRAMM,
Fermin Roland. Espiritualidade e bioética: o lugar da transcendência horizontal
do ponto de vista de um bioeticista laico e agnóstico. Revista O mundo da
saúde. São Paulo, nº 31, Vol. 02, abr/jun 2007, p. 161-166.
[2] JONAS,
Hans. O Princípio Responsabilidade. LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz Barros. Rio
de Janeiro: PUC-Rio, 2006.
[3] RAWLS,
John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de PISETTA, Almiro e ESTEVES, Lenita. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
[4] LEVINAS,
Emmanuel. Humanismo do Outro Homem. Tradução de PIVATTO Pergentino S. (Coord.).
Petrópolis-RJ: Vozes, 1993.
[5] MARTINS,
Rogério Jolins. Teologia e bioética: convergências, limites e contribuições.
In: SALLES, Alvaro Angelo (Org). Bioética: velhas barreiras, novas fronteiras.
Belo Horizonte: Editora Mazza, 2011, p. 133-158.
[6] ANJOS,
Márcio Fabri dos. Bioética: Abrangência e Dinamismo. Revista Espaços,
1996, p. 131-143.
[7] FERRER,
Jorge José e ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a Bioética. Tradução de
MOREIRA, Orlando Soares. São Paulo: Loyola, 2005.
[8] JONAS,
Hans. O Princípio Responsabilidade. LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz Barros. Rio
de Janeiro: PUC-Rio, 2006, p. 18.
Fonte: http://site.adital.com.br
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