Religiões e seitas: o que nos dizem sobre nossa vida em sociedade? – Por Anna Carolina Lo Bianco
As religiões propõem obrigações
morais e sacrifícios do prazer imediato; as seitas oferecem serviços e bens,
com satisfação em curto prazo.
Basta uma superficial olhada na
paisagem das principais cidades brasileiras para vermos a profusão de
monumentais construções que abrigam um sem número de templos das mais variadas
seitas. Surgidas, em geral, há pouco mais de duas décadas, indicam a ubiquidade
do que podemos considerar novas formas de religião.
Um olhar psicanalítico nos
permite localizar no constante recurso às novas religiões e no sucesso que
alcançam, uma importante dimensão do tipo de vínculo que prevalece na nossa
vida em sociedade.
Cientistas sociais muitas vezes
apontam para o poder organizador não desprezível desses movimentos. E não seria
difícil, na comparação entre famílias que se afiliam às seitas e as que não o
fazem, reconhecermos os efeitos positivos que o pertencimento a um grupo
religioso frequentemente traz. Sobretudo se pensamos em uma sociedade violenta,
com os alarmantes índices de criminalidade e de homicídios como os que
caracterizam nossas grandes cidades e suas populações, acreditamos ver nas
seitas efeitos apaziguadores que, no entanto, devem ser questionados. Pois eles
próprios, numa reviravolta nem muito complexa, poderão ser encontrados quase
sempre nas mesmas raízes dos fenômenos de violência.
Por isso é interessante nos
perguntarmos que subjetividades estão aí implicadas e como elas se articulam e
sustentam os laços sociais que habitamos. Mesmo que de forma um tanto
esquemática, podemos esboçar uma diferença relevante e uma inflexão marcante
que se anunciam na vida social, refletindo-se nas instituições religiosas, que
deixam então de ser consideradas apenas como uma resposta homogênea ao
mal-estar e ao sofrimento com que nos defrontamos no dia a dia da cultura, para
serem indicadores privilegiados das circunstâncias da própria vida cultural.
A religião do pacto
Ao criar o que foi considerado o
último mito moderno, Totem e tabu, Freud encontra os meios para falar da
primeira forma de manifestação religiosa: o totemismo. Reconhece então a sua
articulação necessária com configurações sociais e obrigações morais que
constituem estas últimas.
Macho e forte, o pai era senhor
da horda inteira, possuía todas as mulheres e exercia poder ilimitado e
violento sobre os filhos, os quais acabaram por assassiná-lo. Entretanto, se o
haviam odiado, o veneravam como arquétipo e, em realidade, cada um deles queria
ocupar o seu lugar.
Ao parricídio se sucedeu uma época em que os irmãos lutavam
entre si pela herança paterna; mas logo a lembrança da façanha que os havia
livrado do estado de avassalamento em que se encontravam, assim como o
sentimento que partilhavam acerca daquela época, os levou finalmente a se
unirem e a fazerem um pacto.
Freud diz que “nasce assim a primeira forma de
organização social com renúncia do pulsional, reconhecimento de obrigações
mútuas, estabelecimento de certas instituições que se declararam invioláveis
(sagradas); vale dizer: os começos da Moral e do Direito”. Desta maneira, se
estabeleceram o tabu do incesto e as leis da exogamia que sustentam a
organização social.
É nesta configuração social
regida pelo pacto que surge o totemismo, a primeira indicação da religião na
história humana, que encontra no totem a figura paterna e tem no banquete
totêmico a expressão da ambivalência de sentimentos para com o pai assassinado
e amado.
A força do mito de origem
freudiano está nas condições que ele oferece para que venham a se alinhar no
mesmo fio todas as religiões que então se sucederam. Elas sustentam, ao mesmo
tempo que revelam, o pacto sobre o qual se erige a sociedade.
A instauração dos
monoteísmos, elegendo um deus-pai único que governa sem limitação, bem como o
rito da comunhão onde os fiéis incorporam a carne e o sangue de Jesus, são
exemplos que repetem o sentido e o conteúdo do antigo banquete totêmico e
guardam a dimensão de partilha dos mesmos sentimentos os quais garantem um lugar
simbólico para o pai, entre os irmãos da horda.
E, certamente o sujeito que
resulta de tal arranjo social é propriamente sujeito ao pacto. Vale dizer, é
aquele que deixa de resolver os conflitos com os meios da violência exercida
por um só, ou por indivíduos, e se submete ao Direito que expressa o poder de
uma comunidade.
As leis dessa nova associação determinam agora a medida em que
cada um deve renunciar à liberdade individual de obter o seu bem a qualquer
custo, para que venha a ser possível a convivência em sociedade. Surge, nas
boas hipóteses, o sujeito obrigado a afastar ou pelo menos a manter sob
controle suas demandas, suas tendências e inclinações que serão atendidas
apenas até o ponto em que não se sobreponham ao bem comum.
O conflito, não tendo sido
eliminado, é claro, pois como Freud lembra, há uma “desigualdade inata e não
eliminável entre os seres humanos” que constantemente gera tensões insolúveis,
ainda assim terá que ser domado ou regulado.
Temos aí de forma breve, mas
clara o bastante, as razões para considerarmos que as religiões são paralelas
aos progressos culturais do gênero humano, ao mesmo tempo que acompanham e
revelam as expressões subjetivas e as alterações da vida em comunidade.
As seitas dos contratos
Serão estes sujeitos ao pacto os
mesmos que as seitas que vemos disseminadas por nossas comunidades evidenciam?
Estudos etnográficos cuidadosos
como o de Emerson Giumbelli em O fim da religião (Attar, 2002) dão
testemunho preciso do que nós mesmos cansamos de ver nas diuturnas pregações
dos pastores nas televisões. Tudo se passa na dimensão da troca: os fiéis pagam
o dízimo para obter um milagre e são incentivados a cobrarem de Jesus a
operação dos milagres pelos quais pagaram. Há mesmo relatos de templos em que
se encontra na porta o aviso: “seu milagre garantido ou seu dinheiro de volta”.
À dimensão do pacto se substitui
agora a de um acordo regido pelos serviços dos bens. Acordo que visa à
satisfação completa das partes envolvidas, tomadas ademais em uma relação
igualitária, horizontalizada.
Trata-se aqui de alguém que se reivindica o
suposto direito à igualdade em todas as esferas do cotidiano e as relações cada
vez menos reconhecem diferenças como as geracionais ou as sexuais. Não há um
terceiro por referência ao qual a ordem se estabeleça e venha a se assentar na
renúncia à satisfação imediata. Na verdade, passa-se até mesmo a se exigir e a
se contar com a fidelidade de Deus! Os adesivos nos carros comprovam que “Deus
é fiel”.
As religiões, se ainda podemos
chamá-las assim, falam agora de uma sociedade onde vigoram novas relações
contratuais. É a época em que o Direito que se instalara com o pacto,
implicando em obrigações morais e sacrifícios do prazer imediato, tende a ser
ultrapassado por um “direito do consumidor”.
Trata-se então de garantir a
satisfação demandada pelo cliente que, afinal, tem sempre razão. As seitas se
oferecem como prestadoras de serviços e bens e vivem de fazer promessas de
satisfação em curto prazo. Não estaríamos “nesse momento a que chegamos na
civilização” frente a um sujeito de direitos, um sujeito-consumidor?
Acreditamos, portanto, que para
além das semelhanças que unem religiões tradicionais e movimentos religiosos
recentes, marcados todos pela mesma busca da felicidade e do alívio para o
mal-estar, ou seja, articulados todos para garantir os meios de apaziguamento
do sofrimento, há diferenças acentuadas entre ambos, que apontam para distintas
configurações do laço social.
Ainda uma última palavra para
lembrarmos que, enquanto nas religiões tradicionais se trata da referência a um
pai morto que, portanto, ocupa um lugar que é simbólico, encontramos agora nos
membros das seitas uma convicção obcecada acerca do saber e da autoridade de um
fundador encarnado que vem prometer a facilidade do encontro com os objetos da
satisfação inadiável.
De um assujeitamento ao simbólico, a esse “pai morto”,
passa-se assim à adesão a um líder. As consequências dessa afiliação cega, no
mais, nos trazem imediatamente à memória o filme de horror já visto no nazismo
que marca o século XX, e marcará todos os outros depois dele.
Anna Carolina Lo Bianco - é
professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Membro
do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.
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