Crer é também pensar – Por Ed René Kivitz

Anselmo de Cantuária, teólogo e filósofo cristão do século XII, disse que teologia é “fides quaerens intellectum”, fé em busca de entendimento. Especialmente em se tratando da experiência religiosa cristã, essa questão ganha proporções de maior seriedade. A fé cristã é baseada na afirmação de que Deus se revelou aos homens.

Algumas pessoas testemunharam suas experiências com um Deus [Yahweh] que se lhes manifestou e com elas falou, como foi o caso de Abraão, Isaque, Jacó, José e Moisés. Os relatos desses homens foram sendo colecionados e transmitidos oralmente, e aos poucos foram formando a identidade de um povo que veio a se tornar a nação de Israel.

A tradição oral foi compilada em textos, que gradativamente ganharam status de norma para as crenças e conduta do povo que se estruturou em bases políticas, éticas e religiosas. Vieram os reis, os sacerdotes, os sábios e os profetas, que acrescentaram suas narrativas orais e escritas, até que se consolidou um texto considerado sagrado, que conhecemos como Escrituras, Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento.

O Antigo Testamento conta uma história de, aproximadamente, 4 mil anos, até surgir sua personagem central: Jesus de Nazaré, também chamado Cristo, que identificou a si mesmo como o Messias de quem falavam as Escrituras do povo hebreu. O próprio Jesus se compreendia como cumprimento de todo o propósito da revelação de Yahweh, e muitos creram em sua mensagem.

Os seguidores de Jesus se ocuparam em registrar sua biografia, que conhecemos como Evangelhos, interpretar as Escrituras hebraicas, e iluminar sua pessoa e obra em textos que ressignificaram todas as crenças antigas a respeito do Deus outrora revelado como Yahweh. Os novos textos, os Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Epístolas dos Apóstolos, mais o Apocalipse, foram definidos como sagrados para os cristãos e hoje os conhecemos como Novo Testamento.

A Bíblia Sagrada (Antigo e Novo Testamentos) é o fundamento das crenças cristãs. Mas as crenças não são o objeto da fé, pois a fé se destina à pessoa que revelou a si mesma. Isto é, os cristãos não creem na Bíblia, creem em Deus conforme revelado na Bíblia.

É verdade que Deus é sempre maior do que a revelação que faz de si mesmo, e maior ainda do que as interpretações que se façam a respeito de sua revelação. Mas ainda assim é incoerente afirmar que a revelação de Deus está aberta à subjetividade, isto é, livre da lógica intrínseca à Bíblia. 

Afirmar que a verdade revelada prescinde da lógica é transformar a pessoa revelada numa mancha de teste psicológico: cada um vê o que quer ver, o que implica esvaziar a identidade da pessoa revelada, deixando-a à mercê do intérprete. Afirmar “não importa o que você disse, mas sim o que eu ouvi”, equivale a dissolver você e o que você diz, isto é, você morre como pessoa que fala e eu me afirmo como pessoa que ouve, independentemente de você e do que você diz.

Imagine que você está em viagem, pergunta para que lado fica a cidade de Salvador, e o informante responde que depende de você, de sua percepção e crenças a respeito dos pontos cardeais, e de sua visão do sol: “Salvador fica no seu coração, meu rei, basta segui-lo”.

Você desconsideraria o informante em razão de ter recebido uma orientação absolutamente inútil ao seu propósito de alcançar um destino. Podemos dizer o mesmo a respeito da crença em Deus: a Bíblia Sagrada é o universo de referência para quaisquer que sejam as percepções a respeito dEle.

Mais do que simplesmente ter crenças a respeito de Deus, importa confiar em Deus, isto é, ter fé. Mas para confiar em Deus, é necessário acreditar em alguma coisa a respeito dEle, isto é, ter crenças. Crer é também pensar, e pensar respeitando os limites da revelação que Deus faz de si mesmo na Bíblia Sagrada e em Jesus de Nazaré.


Sob pena de se tornar mera superstição, crença sem fundamento, a fé e a crença em Deus devem ser articuladas na tensão entre o texto que revela a pessoa e a pessoa revelada no texto: a Bíblia e Deus, Deus e a Bíblia.




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