Marina e a discriminação dos evangélicos - Por Rui Martins
rejeição dos evangélicos é uma questão de exclusão social e não doutrinária.
Faz uma semana, quando
decidi votar em Marina, a candidatura da acriana negra, pobre e com "cara de fome", no dizer de Rita Lee, era apenas um protesto sem
futuro. Hoje, ao escrever de novo sobre ela, não me pergunto se meu texto
poderá convencer algum eleitor a votar em Marina, porque, em apenas sete
dias, o quadro mudou e sua vitória é quase certa.
Isso me livra da responsabilidade
de fazer proselitismo e me deixa à vontade para escrever sobre esses poucos
dias que reviravoltaram a campanha presidencial.
Desnecessário dizer do espanto
com que alguns receberam minha decisão, mas o exercício do jornalismo me deu
uma extraordinária sensibilidade e experiência em termos de política, enquanto
o exílio e a vida em diversos países me aguçaram o sabor pela liberdade e pela
escolha de caminhos não batidos.
Nestes dias, nos quais
praticamente se consumou uma revolução, o que me chamou a atenção, nas redes
sociais, foi o estilo agressivo e rancoroso de tantos imãs e jiadistas,
revoltados com a virada do destino.
E leio, como um remake de filme
de doze anos atrás, quando a grande imprensa, os políticos da elite brasileira
e até atriz de telenovela alertavam quando ao risco de chegar à presidência um
analfabeto, operário de quatro dedos, que não entendia bulhufas de
administração e ainda por cima tinha o apoio da esquerda. Haverá logo uma crise
institucional, alertavam, propagando o medo, porque ele é um incapaz.
Falavam do nosso querido Lula,
que com toda sua "ignorância" questionou o regime das capitanias
hereditárias, vigente fazia mais de quatrocentos anos no país, e apeou as
elites para dar ao povo sua chance de chegar ao governo, enquanto iniciou o
pagamento da dívida contraída com a escravidão e a ainda recente
semiescravidão.
Agora ressurgem as mesmas frases,
a mesma campanha de desestabilização, a mesma provocação do medo com relação
a Marina, em cujo rosto e gestos se podem ler as marcas e chagas deixadas
por sua infância de menina pobre e sofrida, seringueira analfabeta até a
adolescência, retrato fiel e conforme de tantas mulheres e de tantos homens de
um Brasil ainda recente.
E um outro defeito maior se
ajunta à soma dos defeitos da pobre acriana, ela é evangélica, pior portanto
que Lula. E o ser evangélica, logo é traduzido como sinônimo de reacionária,
retrógrada criacionista, homofóbica e assim por diante.
Eu pessoalmente não sou
praticante de nenhuma religião e sou um defensor da laicidade. Porém, ao me
debruçar sobre o significado de tanta intolerância, num país democrático, onde
cada pessoa pode escolher e professar qualquer religião, descobri que, na
verdade, não se trata de uma intolerância religiosa, mas na rejeição de sempre,
a exclusão social.
Os franceses huguenotes tentaram
criar no Rio de Janeiro, na época de Mem de Sá, um lugar onde pudessem fugir da
perseguição religiosa. Não conseguiram e o protestantismo só começou a existir
no Brasil por volta de 1850 com a chegada dos primeiros missionários
presbiterianos e batistas. Mas nunca chegaram a ser muitos.
Os primeiros
pentecostais chegaram em 1910 e as denominações evangélicas populares do tipo "cura divina" só começaram a vir ao Brasil na década 1950, quando
começou o processo de compras de rádios e, mais tarde, em 1970, com compras de
canais de televisão.
O crescimento dos evangélicos é
recente e enquanto as denominações tradicionais como presbiterianos e batistas
reúnem cerca de 3 milhões de fiéis, os evangélicos de todas as tendências são
mais de 30 milhões.
E uma constatação é marcante,
comprovada por pesquisadores, esse fenômeno religioso se manifesta nos
segmentos pobres da população, cerca de 70% dos evangélicos ganham apenas um ou
dois salários mínimos. O crescimento vertiginoso dos evangélicos ocorreu nas
profissões mal pagas, empregadas domésticas, choferes, trabalhadores em
construções, com nível escolar mínimo.
No evangelismo mais popular não
há uma direção central e cada igreja se comporta como uma célula independente.
Por isso, não há necessidade de teólogos como pastores, mas a leitura das
chamadas Sagradas Escrituras é suficiente junto com “o dom da palavra”, mesmo
porque “a mensagem vem do Senhor”.
Ou seja, o evangelismo é
carimbado e considerado como uma religião dos pobres e humildes, a religião dos
cidadãos de segunda classe. E é essa a razão da discriminação e da
estigmatização dos evangélicos, a de não ser uma religião das patroas e dos
patrões, mas da classe inferior. Estamos, portanto, no terreno dos preconceitos
sociais.
Mesmo porque, em termos de dogma
ou sacramentos, não há grandes diferenças entre doutrina evangélica e católica.
O novo Papa tem mostrado aberturas, mas os anteriores João Paulo II e Bento XVI
eram a encarnação de uma rigidez religiosa das mais estritas, a Igreja continua
sendo contra o aborto, contra o casamento dos homossexuais e contra os avanços
tecnológicos em matéria de concepção.
Portanto, não há nenhuma grande
diferença dogmática entre o credo da igreja Católica e a igreja dos evangélicos
na qual, na verdade, os pobres buscam um refúgio e conforto, que para a classe
média pode ser dado pelo psiquiatra.
Quanto ao criacionismo, lembro-me
de noticias dando conta da crença criacionista de Garotinho e sua esposa, que
pretendiam colocar no currículo escolar. Ora, na sua entrevista para a Tv
Cultura, no programa Roda Vida, Marina afirmou não ser criacionista, mas
acreditar ter sido Deus quem criou o mundo. Ora, tirando-se os ateus como eu,
há um consenso geral nisso.
Marina não é, portanto, a
retrógrada religiosa pintada por alguns. Ao contrário, comunga numa religião
cuja maioria são pobres e excluídos sociais e isso lhe dá ainda mais
autenticidade.
Rui Martins jornalista e
escritor, editor do Direto da Redação.
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