Marina e o destino – Por Alexandra Lucas Coelho
Marina Silva é daquelas figuras
tão frágeis que parecem quebrar-se nos abraços. A caminho dos 60, tem leveza e
voz de menina. Tudo nela, mesmo quando exausta, resulta gentil, com a firmeza
de quem vem dos confins, e o que ela andou para aqui chegar.
Entrevistei-a no
fim de 2010, depois de uma longa campanha, uma longa eleição, em que Marina foi
a perdedora ganhadora, ao forçar uma segunda volta, com 20 milhões de votos.
Quatro anos depois, neste Agosto tão intenso, pelo menos aqui no Alto Alentejo,
estava eu a pagar compras de supermercado quando ligou uma amiga brasileira a
dizer que o avião do Eduardo Campos tinha caído. Ao chegar a casa, a primeira
imagem que vi era de Marina. Parecia que muito mais do que quatro anos tinham
passado. Aquele era o dia em que tudo, de novo, a lançava para a frente.
“A Marina tem algo de
sebastianista”, diz o meu amigo Marcos Lacerda, via Skype. Já aqui falei dele,
sociólogo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, paulista amador do
Inverno, nunca realmente convertido ao Rio. O próprio Marcos tem algo de
sebastianista, diria eu. Mas ele já prosseguia, enquadrando:
“As manifestações
de Junho de 2013, a reaparição do anarquismo como força política, o surgimento
de novas narrativas políticas além do embate entre neodesenvolvimentismo e
neoliberalismo, o fiasco da selecção brasileira na Copa do Mundo e, por fim, a
queda do avião do Eduardo Campos.” Tudo isso culminando na reaparição da força
política de Marina, que muda o quadro eleitoral.
Depois, há a biografia: Marina
vem de uma família de 11 irmãos, nasceu e foi criada em casa de palafita,
trabalhou desde criança, inicialmente como empregada doméstica, e só foi
alfabetizada aos 16 anos; é uma cabocla do Acre, no Norte do país, um Estado
bem longe do “Sul maravilha”; é mulher e negra; é evangélica; e “não usa o
jargão que as classes médias cultas e socialmente privilegiadas aprenderam nas
universidades”, elenca Marcos.
Ao mesmo tempo, de forma tropicalista, digamos,
junta tudo isso “a um discurso conciliador, ao relativismo liberal, com apoio
de banqueiros e líderes seringueiros”. E ainda tem este nome: Maria
Osmarina.
Em suma, resume o meu amigo, há
nela “um quê de milenarista, de messiânico, com uma força estranha, como se ela
encarnasse um momento histórico específico”. E vale lembrar que no Brasil “o
milenarismo teve um papel fundamental na luta popular revolucionária”, desde o
início do século XX à guerrilha contra a ditadura civil-militar, personificada
pelo comunista Carlos Marighella, a quem Antonio Candido chamou “Santo Laico”,
e que na canção dos Racionais MC aparece como “o novo Messias”. Remata o
Marcos: “Agostinho da Silva dizia que nós escolhemos o lugar onde nascemos, que
há um destino na nossa vida. São muitos sentidos concentrados na Marina, muita
coisa ligada à história recente do Brasil que ela encarna.”
Isto, ressalva, “no
meio de muita bobagem sendo escrita sobre ela, muita política rasteira, muito
preconceito com a fé religiosa dela”, quando “a comunidade evangélica é bem
heterogénea, não se resume aos grupos mais conservadores”.
Há muita gente que à primeira não
votaria em Marina ou tem objecções quanto a ela, mas que votaria nela apesar de
tudo, numa segunda volta
Depois de em jovem ter querido
ser freira, Marina diz que se mantém próxima da Teologia da Libertação e amiga
de Leonardo Boff e Frei Betto, mesmo tendo-se convertido há muito à Assembleia
de Deus, a maior igreja evangélica do Brasil. E não será a fé a impedir Marcos
de votar nela daqui a 35 dias (ele vai votar nulo).
Nem a perspectiva
milenarista (embora, idealmente, para o Marcos, esse milenarismo devesse ser
“de esquerda popular revolucionária”). O que o afasta, explica, são “as
limitações do programa político, as contradições das alianças partidárias que,
de resto, estão presentes em todos os outros candidatos”. Ou seja, um programa,
que sendo de centro “flerta com a direita e timidamente com a esquerda”.
Marina, que ia ser vice de
Eduardo Campos, e por causa da queda do avião o substitui, está com nada menos
que o triplo das intenções de voto que ele tinha. De acordo com as sondagens,
passa à segunda volta, e pode mesmo ganhar a Dilma. Uma das suas grandes
vantagens é a baixa rejeição, ou seja, a pouca quantidade de gente que nas
sondagens diz que não votaria nela de forma alguma.
Enquanto 18 por cento não
votariam mesmo em Aécio Neves, 36 por cento não votariam mesmo em Dilma, e
apenas 10 por cento não votariam mesmo em Marina. Isto significa que Marina,
que já vai alta nas previsões, tem a maior margem de crescimento. Há muita
gente que à primeira não votaria em Marina, ou tem objecções quanto a ela, mas
que votaria nela apesar de tudo, numa segunda volta.
Na entrevista que lhe fiz em
2010, Marina disse: “Venho de uma trajectória de esquerda e defino-me como uma
pessoa que superou a ideia de que o supremo bem está na esquerda e o supremo
mal está na direita.”
Além da economia, as zonas onde Marina perde mais votos à
esquerda são descriminalização do aborto, legalização da maconha e casamento
homossexual. Quanto ao aborto, a posição dela é ser contra, mas defender um
plebiscito. Voltando à entrevista:
“Entre criminalizar e descriminalizar, o que
se pode fazer para evitar? Que as pessoas possam ter melhor planeamento
familiar, que as adolescentes possam ser melhor assistidas. Defender a vida é
um princípio, mesmo que não tivesse fé, defenderia isso. Então, quero favorecer
a vida, e que a gente se responsabilize por ela, saber quais são as informações
que precisamos trazer para esse debate, e não a satanização de quem é a favor e
contra.”
Já em relação ao casamento
homossexual, parece ter havido uma alteração no discurso. Em 2010, na mesma
entrevista, ela diz:
“Pelas minhas objecções de consciência não sou favorável.
Mas direitos civis, sim, A comunidade gay tem direito ao seu plano de saúde
conjunto, à herança, porque tiveram o património de uma vida juntos. Quanto ao
casamento, para mim, é algo que acontece entre um homem e uma mulher.” Desde
então, o casamento gay foi reconhecido. E agora leio que a posição oficial da
campanha dela é:
“Marina considera que as relações homoafetivas estáveis devam
ter os mesmos direitos civis que as relações heteroafetivas. O Supremo Tribunal
Federal já deu a essa união o estatuto de casamento civil. A questão legal
sobre o tema está, portanto, resolvida no Brasil. De maneira similar, Marina é
a favor da adoção de crianças por casais homossexuais.” Mais do que muitos
crentes portugueses podem dizer.
Fonte: http://www.publico.pt
Comentários