Meias verdades, grandes mentiras - Por Matheus Pichonelli
Diariamente, crimes são cometidos
em nome de nossos totens e tabus. Mas é mais fácil acreditar que só os
muçulmanos levem a cabo o próprio fanatismo.
"Esses caras são tudo louco.
Não pode provocar." "Ninguém é obrigado a respeitar a cultura deles.
Eles que se mudem." "Se depois desses atos as pessoas continuam
defendendo o Islã, é porque compactuam com os crimes." "Toda mesquita
deveria ser apedrejada." "Não adianta agora os líderes pedirem
perdão: eles criaram os monstros."
Repare no teor das frases acima,
retiradas de conversas informais e manifestações em redes sociais após o ataque
à sede do jornal Charlie Hebdo, em Paris, que deixou 12 mortos, entre
eles o editor-chefe do semanário e três de seus principais ilustradores. As
manifestações deixam dúvidas sobre quem são os responsáveis por tornar o mundo
uma grande área de risco: a religião. Não qualquer religião, mas o islamismo.
Agora pegue todas as sentenças do
primeiro parágrafo e troque pelas palavras “cristãos”, “papa”, “igreja”.
Troque
o atentado de quarta-feira pelos crimes de abusos sexuais ocorridos dentro da
Igreja Católica, casos que levaram muitas de suas vítimas, a maioria crianças,
ao suicídio. Pela lógica das manifestações ao longo da semana, todos os
cristãos, do coroinha ao papa Francisco, são potenciais criminosos.
Afinal,
todos ouviram falar dos crimes praticados pelos clérigos católicos e ainda assim
continuam a frequentar a missa e a espalhar seus dogmas, a começar pela leitura
cinzenta (e violenta) do Velho Testamento.
Compactuam, assim, com os mesmos
crimes, e merecem ter suas sedes apedrejadas, ainda que o papa tenha pedido
perdão publicamente, no dia 7 de junho de 2014, pelos atos que “profanam a
imagem de Deus”.
De duas, uma: ou nenhum desses
argumentos faz o menor sentido ou passaremos a aceitar que pertencer a uma
religião, qualquer que seja, é pertencer a um grupo de risco, deliberadamente
passível a fanatismos movidos a lavagens cerebrais.
Prefiro a primeira opção
por um motivo simples: quando um marido mata uma mulher por ciúmes, ninguém sai
às ruas contra a instituição do casamento. Quando um bêbado atropela um
pedestre, ninguém destrói a sede da General Motors ou da AmBev. Quando um
posseiro define uma propriedade pela bala, ninguém sai por aí arrebentando
cercas.
A tragédia de 7 de janeiro
despertou em uma multidão o mesmo espírito que ela julga combater: a
irracionalidade. Quando esta é praticada pelo "outro", é
fundamento; quando ocorre dentro das estruturas das quais fazem parte, é
desvio, notadamente manifestado por problemas mentais.
Sim: o que aconteceu na sede do
semanário francês é um absurdo, que coroa um período sombrio de entendimentos
truncados, ofensas gratuitas, xenofobia latente e violência.
As investigações
ainda são inconclusivas, mas tudo leva a crer que os crimes tenham sido
motivados pela suposta ousadia dos cartunistas em retratar Maomé.
Sim: há
lunáticos no mundo capazes de combater a chacota da tinta com a ponta de uma
Kalashnikov. Há lunáticos que colocam símbolos sagrados acima das vidas humanas
que os profanaram. Uns são religiosos, outros não.
Ou seria outra a motivação
do marido que estrangula a mulher quando sua “honra” é profanada?
Ou de
posseiros que promovem emboscadas motivadas por conflitos de terra?
Ou do
sujeito que mata uma desconhecida no estacionamento da festa para defender o
próprio carro? (Foi em Santo André, e não no Iraque).
Em todos os casos, a vida valia
menos do que o acerto de contas e pelo mundo não faltam exemplos de
assassinatos movidos a motivos torpes. Todos os algozes, de alguma forma,
tiveram seus símbolos sagrados para defender.
Passaram a vida toda dizendo
serem capazes de matar quem profanasse suas propriedades, mexesse com suas
mulheres, riscasse seus veículos. Alguns levam a cabo a promessa, para depois
argumentar, diante do juiz, que perderam a cabeça.
O casamento, a propriedade e
nossas posses não são o problema em si, mas sim, a forma como as relações de
poder são criadas a partir deles. Isso, desgraçadamente, ocorre também no
interior das religiões, seja quando um clérigo usa a suposta interlocução com o
divino para convencer a criança a agradá-lo, seja quando um seguidor deturpa um
livro sagrado para referendar sua vingança.
Diariamente, crimes são cometidos
em defesa de nossos totens e tabus. A começar pelo conceito de honra, que
leva qualquer santo ou ateu a empunhar a arma dentro do bar. Mas é mais fácil
acreditar que somente os muçulmanos, esses seres estranhos que vivem do outro
lado do mundo, são capazes de levar a cabo seu próprio fanatismo.
A sensação
enganosa nos poupa de imaginar que, no limite, somos também responsáveis por
cometer arbítrios contra quem profana nossas honras e objetos sacros.
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